Para introduzir a situação dos cristãos, de todo o povo sírio, só posso usar uma palavra: caos, desordem total. Alepo está dividida em dezenas de áreas, controladas por diversos grupos jihadistas. Nós vivemos na zona da cidade sob a alçada do Governo. Falta-nos tudo, a começar pela segurança, porque há bombardeamentos dos milicianos que não poupam casas, mesquitas e igrejas, crianças e velhos. Várias zonas da cidade estão completamente destruídas, como a que fica junto à nossa, a do cristianismo, da antiguidade, que agora só tem ruínas. Os bombardeamentos aproximam-se do nosso convento, da nossa belíssima igreja de São Francisco: estamos propriamente na linha de fogo e não sabemos quando seremos atingidos. Estamos na mira. A hemorragia continua e vai semeando a morte: muitos mutilados, muita emigração, muito terror e amargura no coração.
Os preços da comida são exorbitantes e é muito difícil comer. Os mais ricos já foram embora, connosco ficaram os mais pobres. Além disso há falta de medicamentos e de serviços de saúde, porque muitos médicos deixaram o país. Há falta de água. E é uma falta mortal, que tem vindo a piorar. Os grupos jihadistas controlam as estações de bombagem e deitam a água ao rio para impedir que a gente beba. Nas casas não há nem água nem electricidade.
Como se pode convencer um cristão a ficar? Por que havia de ficar? Mais vale fugir. Surpreendeu-nos que muitos dos nossos jovens cristãos, com estudos superiores, tenham aceitado fazer-se ao mar para chegar a algum país seguro. São cada vez mais os que deixam o país ou o vão deixar. Para nós, cristãos do Médio Oriente, em particular de Alepo, é como viver o Apocalipse, que eu medito quase todos os dias: os cavaleiros da morte, da sede, das doenças chegam de modo imprevisível, imprevisto. A instalibilidade é total.
Nós, frades, a apenas 50-60 metros das milícias, que havemos de fazer? A gente pobre volta-se para nós e espera, espera de nós imensas coisas. As respostas não só apenas “passivas” – em sentido positivo: há que ter paciência, carregar a cruz de cada dia – mas também imediatas. A nossa resposta, que é a resposta da fé, da Ressurreição, significa também estar sempre atentos ao sopro do Espírito, às necessidades das pessoas, cristãs e muçulmanas. Quando uma senhora nos bate à porta a pedir água, não interessa se usa o véu ou não, interessa que tem sede. O mesmo com as crianças famintas, com quem escapa às bombas e precisa de segurança.
Eu e os meus confrades sofremos imenso, não só pelo nosso sofrimento pessoal, que é muito valioso e importante, mas porque vemos o homem despojado da sua dignidade: é o sofrimento de Jesus crucificado hoje, na humanidade, no cristão como no muçulmano. Escutando profundamente a voz do Senhor e o clamor dos inocentes, conseguimos perceber como responder. É verdadeiramente necessário, no momento da grande cruz, aprender de Jesus, que, durante a sua crucifixão de três horas, soube pensar nos outros, no futuro de Maria, de João e na salvação dos que estavam ao pé dele, do bom ladrão; pensou, apesar do sofrimento, em como salvar, não só o mundo inteiro com a obra redentora, mas ainda o que sofria junto dele; pensava numa coisa belíssima: o perdão. Perdoar os crucificadores que não o pediam.
A nossa resposta é criativa, vem da fé, do exemplo de Jesus. Por causa da falta de água contratámos motoristas e pequenos camiões-cisterna para levar água às casas. Da última vez havia 500 famílias na lista e nós só conseguíamos chegar a 30 ou 40 por dia. Abrimos o poço do convento e, com voluntários, de manhã à noite, distribuímos muitos litros diariamente. Vem gente de longe. Imensos velhos não conseguiam levar sozinhos a água para casa e assim, com um grupo de voluntários dos 12 aos 18 anos, levamos-lha pelo menos dia sim, dia não. Estamos transformados: às vezes olho para mim próprio e rio-me porque, amante do estudo e dos discursos teológicos, dou comigo a fazer de bombeiro, enfermeiro, vigilante e, só no fim, sacerdote; mas é muito bom porque é esta verdadeira a experiência do consagrado, como do leigo que se sente chamado a servir e a edificar a Igreja.
Reina o medo nos corações, o sofrimento é muito grande, não só para os cristãos como para os muçulmanos que sentem vergonha pelo que está a acontecer. Não sabemos quando irá terminar. Mas não importa quando e como termina, o importante é dar testemunho de Jesus Cristo. É preciso também pensar numa solução política, actuar, mas a nossa primeira obrigação é testemunhar a vida cristã, carregar a cruz amando, perdoando, pensando também na salvação dos outros.
Estamos a 60 metros dos terroristas que semeiam morte e terror nos corações. Porém todos os dias, na nossa comunidade, oferecemos o sofrimento pela salvação deles, rezamos por eles, perdoamo-los. Uma senhora que vive perto da nossa igreja, onde a maior parte das famílias era cristã, queixava-se porque vieram muitos muçulmanos que alugaram ou compraram as casas dos cristãos. Ela sentia que tinha havido uma mudança enorme – o ambiente nas ruas, o olhar – e sentia-se incomodada. Disse-lhe: «Não será talvez o Senhor que permite que mudem as pessoas, o ambiente à nossa volta, para que a fragrância de Cristo chegue também a eles? Não será uma belíssima missão que o Senhor ressuscitado nos está a pedir? Portanto, não há mal-estar mas apenas o pensamento daquilo que nos pede o Mestre ressuscitado, de que podemos testemunhar a fé às pessoas que chegam».
Temos tanto para transmitir! Eu aprendi, também com a história da Igreja, que um cristão não tem medo de nada, do confronto, da diferença, de abrir as fronteiras. Não tem medo de viver com ninguém. O cristão tem um tesouro tão forte no coração que pode dialogar com todos livremente sem perder a sua natureza; aliás, a sua natureza é feita de diálogo. É o que nós, cristãos, ali no meio da cidade semi-destruída, procuramos fazer com todos, e às vezes somos bem-sucedidos sem sequer falar. Há poucos dias veio ter comigo um muçulmano, que sempre trabalhou connosco: «Padre, estou a ver como a gente vem tirar água, com um sorriso, com uma grande paz no coração, sem discussões, sem levantar a voz... Eu já dei a volta a Alepo e vejo o que se passa: matam-se para tirar água dos poços. Estou admirado: vocês estão cheios de paz, de alegria. Conseguem partilhar com os outros, até com muçulmanos, com tanta paz. Padre, vocês são diferentes».
Muitos sonham em fugir: é normal, experimentam todo o mal que se possa imaginar. Mas nós estamos convencidos de que se o Senhor plantou, num certo dia da história, no início da Igreja, a árvore do cristianismo na cultura da Síria, no Médio Oriente, nós cristãos de hoje não temos o direito de levar esta oliveira e plantá-lo noutro lugar, porque a vontade do Senhor é que demos fruto ali. Ali está a raiz da nossa fé, na terra por onde andou São Paulo: é a terra dos nossos mártires e muitas famílias estão convictas de que ficar é uma grande missão. Imaginem se todos os cristãos abandonassem o Médio Oriente e viessem para a Europa: quanto tempo levaria o Senhor, e o Seu Corpo Místico, a Igreja, para implantar de novo o cristianismo. A nossa presença é uma missão e nós ficamos. Não nos rendemos: amamos mais, perdoamos e testemunhamos mais. Com fé, esperança e caridade continuamos este nosso caminho que é uma Via Sacra.
Sabemos que a vida cristã não é um passeio, nem para vocês, aqui, para uma criança que tenta fazer uma caminhada séria com o Senhor, para quem vive em Itália, na Alemanha, nos Estados Unidos... É sempre caminhar pelo caminho estreito: tantas dificuldades, mas tantas vitórias. Começamos com o sofrimento, vivemos também a morte, mas não temos medo, porque temos a força da Ressurreição. Não é este o primeiro mistério cristão? Com a fé sabemos que os nossos sofrimentos têm um grande significado: significado redentor para nós e para os que nos matam, aliás para todo o mundo. Razão para viver, razão para morrer.
Pensando no título do Meeting, que é duma grande profundidade, eu em Alepo vejo muitíssimos sinais da Ressurreição: ter por exemplo missa diária desde que começou a crise até hoje, para mim já é um milagre. Estarmos ainda vivos é um grande milagre. Apreciamos melhor o dom da vida. Estamos cada vez mais agradecidos a Deus que nos dá muito.
Voltando à «falta» do título do Meeting: ver nos cristãos, nos sacerdotes, nos bispos a busca de Deus, a sede de viver em comunhão com Deus, para mim é sinal da Ressurreição. Também nos irmãos de outras religiões vejo o despertar duma grande busca, o sentimento duma grande falta. Diante do fundamentalismo surgem perguntas essenciais: o caminho que fazemos será a verdade? Quanta busca de Deus, também entre os nossos irmãos muçulmanos: os que nos vêm bater à porta, que se interrogam acerca de Jesus Cristo, que entram na igreja para escutar a Palavra. Tanto anseio, tanta sede que desperta. Na perseguição, nos sofrimentos que vivemos, estamos certos de que também isso é um grande sinal de que Jesus ressuscitado está presente, ainda lá, em Alepo.
(Texto não revisto pelo Autor)