JOVENS PREDILECTOS

Oratórios, escolas, paróquias... São mais de duas mil as obras salesianas espalhadas por 132 Países. No bicentenário do Santo educador, o padre ÁNGEL FERNÁNDEZ ARTIME, Superior da Congregação, conta porque é que o carisma está cada vez mais vivo
Paola Bergamini

“Nem sabia fazer o sinal da cruz. É preciso fazer imediatamente alguma coisa por estes jovens necessitados. Precisam de encontrar Deus para descobrir e realizar sua dignidade”, pensa Bosco, jovem sacerdote, vendo ir embora o rapaz que acabou de conhecer, vestido de farrapos. Corre o ano de 1841 e desse primeiro encontro, na igreja de São Francisco, em Turim, nasceu a obra salesiana. O Padre Bosco, de cujo nascimento se celebra este ano o bicentenário, provavelmente não imaginava, aos vinte e seis anos, que aquilo que o Espírito Santo havia suscitado chegaria aos extremos confins da terra. Do Nepal à Patagónia, nos 132 Países onde os salesianos estão presentes, ao longo dos últimos cento e cinquenta anos nasceram quase três mil obras educativas, entre escolas, oratórios e centros de formação profissional. “E há um pormenor. Onde quer que vamos, respondemos às necessidades que encontramos, por isso a nossa obra é tão diversificada”, explica o padre Ángel Fernández Artime, nascido em 1960, desde 2014 Superior Maior da Congregação Salesiana. Com esta entrevista tentaremos descrever o que significa ser salesiano, hoje, no mundo.

o Padre Artime faz parte da família salesiana há trinta e seis anos. Como nasceu a sua vocação?
Nasci em Gozon-Luanco, nas Astúrias, Espanha. Meu pai era pescador e o meu destino, achava eu, era tomar o seu lugar. No entanto... Eu era menino quando uma senhora que passava as férias na nossa cidade e se tinha tornado amiga de meus pais, lhes disse: “O vosso filho tem talento. Ele devia continuar os estudos. Conheço religiosos que poderiam ajudá-lo”. Os meus pais não sabiam quem eram os salesianos, mas confiaram. Assim comecei a minha jornada. E aos vinte anos pensei que aquele poderia ser o meu caminho. Quando disse isto aos meus pais, eles responderam: “Se é bom para ti, avança”. Estou convencido de, que na vida, o Senhor age através de “mediações” humanas. O encontro com aquela mulher e sobretudo a disponibilidade dos meus pais foram importantes. Eles poderiam ter dito não e exigido que eu voltasse para casa e eu, na época, não estava tão firme na minha escolha. A minha liberdade de decisão foi, por assim dizer, acompanhada.

Em 2009, o senhor foi nomeado responsável da Província da Argentina, com sede em Buenos Aires, onde conheceu o então cardeal Bergoglio.
Rezámos muitas vezes juntos. Concelebrámos a Eucaristia. Posso dizer que o que impressiona, hoje, no Papa Francisco, é a mesma coisa que impressionava quando era Cardeal: a sua profunda simplicidade e a sua preferência pelos últimos. Naquela época, já era tudo visível. Agora, naturalmente, tem mais repercussão.

Em 2014, veio a nomeação. O seu predecessor, padre Pascual Chávez, no momento da eleição, disse: “Caríssimo padre Ángel, Deus, através dos confraternos, chamou-te para seres sucessor de Dom Bosco”. O que significa, hoje, ser o décimo sucessor do fundador, isto é, manter vivo o carisma?
Por um saudável realismo, repito sempre: atenção, Dom Bosco é um só. A nós, Superiores Gerais, cada um com sua personalidade, formação, origem, é pedido guiar a família salesiana como Dom Bosco o faria hoje. Procuramos prosseguir procurando descobrir o caminho de fidelidade àquilo que o Espírito Santo suscitou nele.

O que é que isso significa?
Dom Bosco foi um padre diocesano, um homem de Deus que o Espírito Santo “usou” para criar um espaço de encontro para os jovens, um espaço de salvação. E de entre os jovens, os mais necessitados. Viver uma fidelidade ao carisma significa ser muito humanos, ser homens do nosso tempo sem, porém, nos esquecermos que somos religiosos e, portanto, testemunhas de Deus. Tendo o coração salesiano, tenho uma predileção pelo bem dos jovens. Estar com eles significa perguntar-se: o que ele faria nesta situação? Procuramos entender a realidade procurando responder com o coração de Dom Bosco.

Em que sentido?
O afecto e o amor são importantes, mas o fundamental é a nossa identidade salesiana. Antes de mais nada, vem o sentido de Deus na nossa vida, depois, buscar nos jovens o seu bem, o que concretamente quer dizer fazer deles – segundo o binómio de Dom Bosco – cidadãos honestos e bons cristãos. Isto é, educá-los, educar à liberdade e ao sentido de Deus.

Como se concretiza isso?
As formas são as mais diversas: escolas, oratórios, centros de acolhimento para jovens da rua, centros profissionais. A primeira pergunta que um salesiano se deve fazer é: de que é que esse jovem precisa? Em África, por exemplo, construímos escolas agrícolas e técnicas. Na Argentina, na Cordilheira dos Andes, um Centro de ajuda aos jovens mapuches que não têm possibilidade de estudar nas suas localidades e nas suas famílias. É a realidade que dita o caminho. Mas, em tudo isso, nós vamos ao encontro dos jovens com a nossa opção de vida, que significa: eu quero consagrar a minha vida a Deus e é isso que te dou, eu sou isto. Sou educador, amigo, depois a escolha que fiz, que é também uma opção para vocês, jovens.

Uma das peculiaridades dos salesianos no âmbito educativo são as escolas e os centros profissionais.
O que é que Dom Bosco fez? Os seus rapazes eram pedreiros, pintores, acolheu-os, ficou com eles, ensinou-os a rezar, mas compreendeu que era necessário oferecer-lhes a oportunidade de aprender bem uma profissão para que não tomassem o caminho errado. A mesma coisa acontece hoje. Oferecemos-lhes a oportunidade de aprender um trabalho, mas, ao mesmo tempo, visamos a formação integral da pessoa. Que significa: educar à responsabilidade, à honestidade, aprender a ser pessoas livres, com a capacidade de reflectir, de descobrir Deus na própria vida. Isso permite-lhes ter instrumentos idóneos para enfrentar o futuro.

Concretamente, como se desenrola essa educação?
Para nós, o fundamental é um relacionamento amigável, familiar. Somos educadores, mas, ao mesmo tempo, amigos e, às vezes, pais. Três são os pilares que Dom Bosco indicou e que ainda hoje são válidos: razão, religião, amabilidade. É preciso ser sempre razoáveis naquilo que pedimos, não se pode dizer: “É assim porque eu estou a dizer”. Religião: Dom Bosco pensava que somente o sentido de Deus permite ao jovem crescer. Amabilidade: não só queremos bem ao jovem como ele se sente amado por nós. Esquecer um desses pilares significa trair o carisma salesiano. Renunciar, por exemplo, à dimensão religiosa por respeito à diversidade não educa. A liberdade do jovem é respeitada, mas ao mesmo tempo Jesus é anunciado de todas as formas possíves.

Esse parece-me um traço importante, que distingue o vosso projeto educativo.
Exactamente. Não somos assistentes sociais, mas homens de fé e queremos partilhar isto na mais absoluta liberdade. Eu penso que hoje devemos ser testemunhas muito respeitosas, mas sem temor. Isso faz a diferença. Só assim podemos ser exigentes, porque estamos a oferecer o sentido da vida através de muitos instrumentos e isso é possível, antes de mais nada, estando com os jovens. Sempre, dentro e fora da sala de aula, no recreio, na igreja, na rua...

Pode dar um exemplo?
Em Espanha eu era director de uma grande obra educativa e também professor de filosofia. Na hora do recreio ia ao pátio e estava com os miúdos. O meu tempo, todo o meu tempo era para eles e percebia que às vezes fora da aula o relacionamento era mais fácil. Quando me mudei para a Argentina, um grupo de alunos e ex-alunos, ao despedirem-se de mim, disseram-me: “Guardamos no coração três coisas. Primeiro: o padre Ángel chamava todos pelo nome, dos mais pequeninos de três anos, aos mais velhos de dezoito. E éramos muitos! Segundo: todos os dias o padre Ángel estava na porta para nos cumprimentar à entrada e à saída. Terceiro: sentíamos que o padre Ángel gostava de nós”. Ensinar era o meu trabalho, portanto, era quase óbvio fazê-lo de modo interessante, mas aquela gratuidade de bem permaneceu dentro deles, era um mais.

Sentiam-se únicos.
Esse é o ponto essencial, que Dom Bosco valorizava: cada jovem sentia-se predilecto. Para mim, é a mesma coisa hoje, depois de trinta e cinco anos que sou salesiano pelos jovens. Ou melhor, hoje talvez ainda mais. Por exemplo, eu nunca senti a falta de ser pai biologicamente, porque estou cheio de paternidade.

Dom Bosco e Dom Giussani foram dois grandes educadores, ambos tinham uma grande paixão pelos jovens. Na sua opinião, que característica tinham em comum?
A meu ver, algo que vem antes da educação: o sentido de Deus. Eles são testemunhas disso. A Igreja precisa disso. Pessoalmente, Dom Bosco é fascinante, porque acreditava. Via e sentia Deus no quotidiano e daí derivava toda a sua actividade. Desejo sempre que, depois do encontro, o jovem possa dizer de mim: esta pessoa tem algo importante a oferecer para a minha vida de homem. Isso é reflexo do bem de Deus. Digo aos meus salesianos: nós somos de Deus, consagrados. Depois fazemos isto e aquilo e, pelo modo como agimos e vivemos, os outros verão e entenderão que somos testemunhas de Deus.


o Padre Ángel Fernández nasceu em 21 de agosto de 1960, em Gozon-Luanco, nas Astúrias (Espanha). Foi ordenado sacerdote em 1987, em León, onde se formou em Teologia Pastoral e licenciou em Filosofia e Pedagogia. Foi delegado da Pastoral Juvenil, Superior Provincial da Espanha e Superior Provincial da Argentina do Sul. No dia 25 de março de 2014, no XXVII Capítulo Geral, foi eleito Reitor Maior da Congregação Salesiana e X sucessor de Dom Bosco.