Lisboa: quando entra algo de novo

Cerca de quarenta pessoas estiveram reunidas num fim de semana em Troia para o encontro anual com o Padre Julián Carrón
Davide Perillo

«Não. Eras tu!». Na sala há um sobressalto generalizado. Rosaria, uma italiana transplantada na Grécia, acabava de contar o encontro com uma amiga que lhe confessou todas as suas penas, abrindo o coração como nunca na vida o fizera: «Ela falava, dizia-me: quem és tu, porque me tratas assim? Mas era Cristo que agia, não eu...». E Julián Carrón interrompe-a energicamente, com um sorriso nos lábios mas um «não» que não deixa lugar a dúvidas: «Eras tu, Rosaria. Temos de dar-nos conta. Senão estamos a deitar fora o que Cristo faz: gerar sujeitos assim. Uma pessoa encontra-os e percebe que pode abrir o coração. Eras tu. Esse tu é feito por Outro, mas és tu. É preciso dar-se conta».
Sujeito. Pessoa. Eu. Dar-se conta. São as palavras que mais se repetem, nestes quase dois dias de encontro entre os responsáveis do movimento na Europa. Pouco mais de quarenta pessoas, num sítio de uma beleza rara (a península de Troia, a três quartos de hora de Lisboa, ferryboat incluído) e um diálogo em roda livre, intenso, sem parar nem durante as refeições. Como entre amigos.

Encontramo-nos assim todos os anos, desde há uns tempos. Vem gente da Grã-Bretanha e da Albânia, da Bélgica e da Polónia, da Alemanha, de Malta e de toda a Europa ocidental. Vai mudando o cenário (em 2014 foi a Espanha, um ano antes a França e o castelo de Claudel), não a finalidade. «A coisa mais importante é que cada um esteja aqui por si próprio, não pela gestão da comunidade» recorda Carrón, introduzindo: «A comunidade só a construímos pela superabundância que vivermos em nós». É a mesma superabundância que há ali. Em primeiro lugar, de acontecimentos. Sofia fala da exposição feita no Meeting de Lisboa. Nascera do desejo de aprofundar a “Página Um” sobre a Europa «e sobretudo da questão que abriu em mim: porque é que os “novos direitos” têm este fascínio sobre uns e a outros, como eu, causam aversão?»
«Ora bem, sucede qualquer coisa com uma pessoa; esta fica impressionada, é leal face à pergunta que nela nasce e que lhe abre a razão de par em par», observa Carrón: «Isto é o início. O resto – o trabalho, a exposição, aquilo que nasce – são consequências. Mas nós temos de dar-nos conta da nascente». Um encontro que desperta o eu: «Se não acontece, podemos fazer todos os documentos que quisermos, mas o conteúdo não passa».

Da Espanha relata-se o percurso feito sobre as eleições; de outros pontos, encontros inesperados: o ex-padre que deixou o hábito e que, no vídeo de Giussani, «reencontrou o caminho para Cristo», o colega que desabafa e acaba por falar da doença de que não falou a ninguém… «O que terão visto para se abrirem assim? Que certeza começaram a intuir para poderem confiar?», insiste Carrón: «Vejam, diante dos factos que acontecem é necessário dar-se conta. Porque senão ficamo-nos pelo impacto sentimental, mas continuamos como dantes: não se cresce. Pensávamos A, aconteceu B, e nós continuamos a pensar A, como se não tivesse sucedido nada. A questão fundamental do acontecimento não é o impacto, mas se entra algo de novo, algo que mexe com o conhecimento». E o que é que favorece este dar-se conta? «Se não trabalhamos o instrumento do pensamento, estas coisas nós sonhamo-las. O verdadeiro trabalho é este: submeter continuamente a razão à experiência, àquilo que aconteceu».

Prossegue-se à mesa, no bar, durante os passeios na praia. Ou nos intervalos da futebolada. Carrón insiste na necessidade de não deter-se na beleza da companhia: «É evidente que um lugar como o movimento é um oceano de humanidade, comparado com o deserto à nossa volta. Mas isto pode fazer-nos ficar pela rama, dar por satisfeitos». Fala-se da liberdade dos filhos e da diaconia, da autoridade («é concedida por Deus: a nós compete-nos reconhecê-la») e da corresponsabilidade («que só acontece se concebemos o outro como um bem»). Até dos gestos, de cuidar a sua preparação. Com Carrón partindo da experiência, fala muito de si: da vez em que Dom Giussani lhe pediu a ele e a outros para relerem e corrigirem até ao fim o texto de um testemunho que ia dar num encontro («percebem o cuidado nos gestos, até ao pormenor?»), da utilidade que encontra no confronto com os amigos, da disponibilidade para mudar.
O tempo passa depressa. Até de mais. Damos por nós já na missa de Pentecostes, onde se reza pelos cristãos perseguidos. E na altura de tomar o ferry, de volta a Lisboa, de volta a casa. E ao trabalho de dar-se conta.