O meu nome é Alice (2014)O QUE ME RESTA, SE DEIXO DE SER EU MESMA?

O filme sobre a doença de Alzheimer gera discussões. Um retrato da burguesia ocidental a braços com uma questão: fará sentido viver enquanto a nossa consciência se dissipa? Uma longa-metragem que rendeu o Óscar a Julianne Moore.
Maurizio Crippa

É a festa dos 50 anos de Alice Howland, em que também está presente a sua bela família: o marido John, químico com ambições carreira académica, e os filhos Anna, Tom e Lydia. Alice é uma brilhante linguista da Universidade de Columbia, com razões suficientes para ser feliz por tudo o que construiu na sua vida. O seu ambiente é o da burguesia intelectual de novaiorquina, bem instalada e educada, imbuída dos sentimentos liberais mais nobres em relação a si mesma e ao mundo. A casa na cidade é elegante e acolhedora e a da praia ainda mais, cheia de luz e de recordações. As cores primaveris de Nova Iorque são suaves; não há sombra de drama nesta atmosfera aprazível, que sintetiza o melhor do nosso Ocidente. Julianne Moore é muito talentosa; não por caso venceu o Óscar e já recebeu outros prémios. Alex Baldwin, grisalho e obeso, também está perfeito no papel de marido e bom pai, apenas um bocado distraído pela carreira.

O drama irrompe com pequenos flashes, pequenos lapsos de memória e palavras despropositadas, ou que de repente não lembram, na vida perfeita de Alice. Vem o diagnóstico: uma forma particularmente agressiva, genética, de Alzheimer precoce. Realmente insólito para uma mulher naquela idade. Mas inexorável. Todo o filme (toda a vida), no seu nicho sem sobressaltos nem gritos, torna-se assim a história da progressiva e angustiante perda de si – perda do eu – vista pelos olhos de Alice, “do seu lado”, que se vê desaparecer na perda de cada lembrança e de cada percepção do real. A perda das palavras provocada pelo Alzheimer (para uma linguista, ainda por cima) é o início do esvair-se da memória e da autoconsciência. A perda de tudo. Uma doença diferente das outras porque priva exactamente do essencial: o eu pessoal. A autora do romance do qual O meu nome é Alice foi adaptado, Lisa Genova, é neuropsiquiatra; um dos realizadores, Richard Glatzer, sofre de esclerose múltipla: não se pode dizer que nesta obra faltem participação humana e competência particulares.

Esta é história que o filme conta. Mas afinal de que trata realmente o filme, que consegue interrogar e comover mesmo um público mais exigente? Para o entender é necessário que também nós nos esqueçamos de Alice por um momento, e prestemos atenção ao mundo em que ela vive. Às vezes, é a moldura que dá significado ao quadro. Então descobre-se que o filme fala de Alice, mas também fala da rectidão moral, se assim lhe podemos chamar, com que se tenta anestesiar esta doença hoje em dia. Fala do que o homem de hoje pensa sobre a vida (e sobre a morte) sob esse céu vazio que construiu. Quando é diagnosticada a origem genética da doença e também os filhos realizam o exame, a única que tem um comportamento positivo é a filha que está programando uma gravidez por meio de inseminação artificial. Prosseguir ou não? E como viver sabendo que um dia também vai desenvolver aquela doença? A medicina preventiva é um totem do nosso tempo: saber e programar com antecedência (poder “escolher”) não só os passos da nossa vida mas sobretudo os da nossa saída de cena.

Alice fala ao telefone com a filha e o ponto principal da conversa é um humaníssimo “sinto muito”. E é realmente um sentimento humano inevitável e radical essa consciência de dar, juntamente com a vida, também a raiz da sua incompletude. “Nasce o homem com custo / e é risco de morte o nascimento”. A diferença está no modo como esta dramática constatação do poeta Leopardi é acolhida ou ignorada. O nosso mundo, a civilização na qual estamos imersos e da qual este filme sabe ser – talvez sem intenção – um espelho sincero e transparente, é a civilização que, com grande desespero, tenta abafar até a irrelevância, até à não pertinência aquele grito, aquela dor, aquele “sinto muito”. Talvez não seja o caso da nossa Alice (talvez a continuação da história confirme esta intuição, talvez não). Mas o filme consegue, nesse ponto, trazer a pergunta essencial da realidade. E é a esta evidência que Alice deve, mas não quer, render-se.

Assim, deixa um vídeo à futura Alice-que-não-já-não-é-ela-própria, que eventualmente um dia poderá vê-lo. São as instruções, dadas com calma e em perfeita solidão, para se suicidar: “então, deita-te na cama e dorme um bom sono”. A perda de si, até a inconsciência, é de facto a maior das tragédias. Torna-se incomensurável, sem valor algum para si e para os outros, quando se desenrola sob um céu que ficou vazio de presença e de destino. Sob o lindo céu de Nova Iorque não existe nada além dos nossos singulares “eus”. Perdendo estes, perdemos realmente tudo. Assim, Alice sofre quase mais pela reprovação social dos outros – eras alguma coisa, agora não és nada – do que pela própria doença. “Vês, tu davas aulas ali, tu eras muito capaz”, diz John à esposa, já praticamente sem memória. E fala-lhe com amor, mas parece falar para o vazio

É realmente assim? Quando parece não restar mais nada de Alice, e mesmo John considera que deve seguir a sua estrada, há a filha, actriz e um pouco rebelde (até certo ponto), que volta para casa. Lê à mãe uma história e ela não entende. Fica somente o relacionamento entre elas. E este, no entanto, como a desdizer tudo o resto, vale muito. É como uma presença irredutível que rasga, impetuosa, o céu vazio. E vai mais além.


Título original: Still Alice
Realização: Richard Glatzer e Wash Westmoreland
Elenco: Julianne Moore, Alec Baldwin.
Ano: 2014
Baseado no romance homónimo de Lisa Genova (2007)