CONVIDADO PARA CASA

Trabalha com idosos há vinte anos. Há seis que faz visitas domiciliárias em Miami, entre casas da periferia e apartamentos na praia. ENRICO GRUGNETTI fala da aventura que começa quando bate à porta dos pacientes.
Alessandra Stoppa

Quando bate a uma porta, tudo o que ele sabe é: nome, idade, sexo. Há sempre uma incógnita para lá das varandas panorâmicas de uma cobertura à beira mar, de um apartamento nos subúrbios ou atrás das redes mosquiteiras das cabanas de madeira em estilo country, no meio do verde pantanoso. É Miami, um caldo de culturas no clima primaveril que dura seis meses por ano, e é aqui que o enfermeiro Enrico Grugnetti, 46 anos, italiano, visita por profissão os idosos doentes em domicílio. Deixou a sua marca na última Med-Conference de Nova Iorque, em meados de Outubro, contando, diante de médicos, enfermeiros e estudantes dos Estados Unidos e de várias partes do mundo, as provações e a beleza do seu trabalho, a surpresa de quando “há um clic”, como ele diz, de quando se estabelece uma relação com os pacientes, e a companhia que eles se tornam para a sua vida. “Os idosos são surpreendentes”, diz. Trabalha com eles há vinte anos, primeiro num serviço de cirurgia cardíaca, depois num centro de assistência, e agora indo às suas casas. Encontra o velhinho do Haiti que só fala crioulo, os latinos, os afro-americanos que acreditam mais nos ritos de magia do que na medicina ou o ex-moço de recados do Alabama que não suporta estrangeiros. “A pessoa é una. Não só o paciente, eu também”, disse em Nova Iorque: “Quando encontro uma pessoa, encontro uma pessoa. Seria preciso realmente um esforço tremendo para separá-la do seu problema de saúde”. E para separar o seu trabalho de si mesmo.

Necessidade de Mozart. Juan é um verdadeiro gentleman, cubano, como tantos aqui que fugiram logo a seguir à Revolução ou chegados aos Estados Unidos há pouco tempo. Está sentado em silêncio a um canto da sua casa em Miami Beach enquanto Enrico escuta a cuidadora a enumerar os problemas e, depois dela, a mulher, cansada e abatida. Pedem que ele venha mais vezes, não conseguem acompanhar aquele homem em quem só vêem o Parkinson e a anca fracturada. Enrico visita Juan, faz a avaliação médica, indica os tratamentos. E, enquanto isso, conhece-o e descobre que era jornalista, crítico de música lírica. “Qual é a sua ópera preferida?”, lhe pergunta. "As Bodas de Fígaro". É também a sua paixão. Olham-se e começam a cantar juntos Non più andrai farfallone amoroso, de cor, do início ao fim. “Naquele momento tudo mudou. Tudo se desanuviou. Continuávamos a ser nós quatro naquela sala, mas já não havia ansiedade. Havia a percepção da possibilidade de que algo entre na vida, a surpreenda e abrace. E isso não somos nós que o fazemos, acontece”. A mulher pára de se lamentar e acompanha Enrico até a porta: “Volte novamente. Venha cantar com ele. É disso que ele precisa”.
Encontros como este podem inspirar simpatia. Mas, mais do que isso, têm a força de transformar a vida de Enrico e a sua profissão. Os pacientes, com os corpos e as almas frágeis, atiram sobre ele todas as suas necessidades. Têm doenças graves, às vezes crónicas, são instáveis. Frequentemente são hospitalizados e Enrico cuida deles quando recebem alta: “Acompanho essa passagem, procuro entender suas necessidades, ajudá-los a aceitar a perda da autonomia, o que traz muito sofrimento, e criar as melhores condições para ficarem em casa, que é o lugar onde querem estar”. Todos os dias visita cinco ou seis idosos; actualmente acompanha cerca de quarenta. Normalmente são os familiares que fazem tudo: preparam a comida, assistem-nos, dão banho, administram dos remédios. “Olhar, escutar e educar os familiares é parte essencial do meu trabalho”. Alguns pacientes, porém, moram sozinhos e Enrico é a única pessoa que os vai ver, e muitos são pobres: são quase sempre os americanos d.o.c., impregnados de cultura africana, ou aqueles que vivem no subúrbio noroeste de Hialeah, que é 100% cubana.
Todos os idosos têm uma história para contar. E saberiam contá-la da mesma forma dezenas vezes. Friedrich era judeu, 90 anos: a sua história era a sua vida. Rocambolesca e dramática. Enrico nunca se cansou de a ouvi repetir. Austríaco, fugiu do nazismo ainda menino, esteve na guerra e acabou nos Estados Unidos onde, do nada, levantou uma empresa e enriqueceu. “Um homem inteligentíssimo, que todos os dias preparava os remédios para si mesmo e para a mulher, diabética”. Uma manhã troca os remédios e encontram-no caído, na rua, com uma crise hipoglicémica. “A primeira vez que o visitei era quase noite. Lembro-me que quis adiar aquele último paciente para poder ir para casa mas depois disse para mim: ‘Tudo bem, eu vou, faço uma visita rápida’. Fiquei com ele durante horas”. Era mal-humorado, irascível, nada sentimental, um tipo durão que não se deixava ajudar. Enrico foi à sua casa uma vez por semana durante três anos. Certo dia, Friedrich disse-lhe: “Você é o meu amigo”. “Para mim, foi um golpe. Quem sou eu para ter entrado assim na vida extraordinária desse homem? Ele estava a exprimir uma coisa que eu nunca tinha pensado claramente: a relação com qualquer pessoa pode ser uma amizade verdadeira, íntima, para a vida”. Friedrich morreu há dois anos, e Enrico pensa nele muitas vezes: “Não como uma coisa que passou, mas porque é o caro companheiro que Deus me deu na viagem da vida”.

Dar um nome. Um dia vai à casa de Luís. É a segunda vez que o visita, e na casa está também a filha com a netinha de três anos, Mia. Enrico mede a tensão, a temperatura, ausculta o coração e os pulmões, depois fala com a filha sobre a situação. Enquanto isso, Mia aproxima-se e dá-lhe sua boneca. Quer que ele também a consulte. Enrico, um metro e noventa, inclina-se e começa a auscultar com cuidado o coraçãozinho de pano, o pulso, a barriga. “A tua boneca está óptima!”. Mia fica feliz. “Quando estava a ir embora, acenei-lhe da porta com a mão, mas ela correu até mim e abraçou os meus joelhos”. Podia ser apenas um episódio queridinho, mas nele aconteceu algo mais. A vida inteira passou-lhe pela frente. “Naquele momento, reparei que tudo o que me tinha acontecido, tudo, me tinha levado até ali, com aquelas pessoas, para reconhecer com elas que só existe o presente e que no presente há uma medida eterna”. Estatisticamente ele nunca as teria conhecido: cresceu em Portoscuso, no Sulcis, província de Cagliari e em pequeno olhava os mapas e perguntava-se se algum dia veria Roma; há seis que mora na Flórida e é enfermeiro “por acaso”, porque uma amiga lhe disse: “Vou fazer o teste. Queres vir?”, e ele, que tinha abandonado a escola, foi com ela. “Posso dizer que as pessoas que encontro são parte da minha vida, porque me dou conta de que o Destino está presente e nos junta”. Não sabe por que aconteceu naquele abraço e não noutro momento, “mas sei que se estou disponível é uma possibilidade que existe sempre, sempre. É simples”.
Cresce nele o desejo de poder viver assim todos os dias: “Não ter a ânsia de chegar e organizar as coisas, mas deixar-me surpreender pela vida que acontece e que tem um respiro infinito. Percebe-se isso na simplicidade de um encontro humano, através da fragilidade, minha e do outro. E isso é Jesus que vem”. Enrico jamais teria imaginado poder dar-lhe um nome: “Se eu não tivesse encontrado Cristo, a vertigem de dar-me conta de que a pessoa que está na minha frente existe permaneceria apenas um pensamento confuso. Porém, é o olhar que Jesus tem sobre as coisas. Posso viver sem a consciência profunda da realidade, mas esses factos desvendam-me a sua verdadeira natureza: a realidade é o Mistério que acontece e nos toca”.
A relação entre médico e paciente é delicada. “Se não se é sustentado, não se consegue encarar o drama. Sobretudo aqui, onde a pressão do sistema é muito forte e, para nossa salvaguarda, nos cingimos às prescrições dos tratamentos. Mas não basta dizer: estes são os remédios a tomar”. Mesmo concordando, os doentes não os tomam, em particular se são idosos, mais ainda se são sozinhos. Emma, uma senhora cubana, quando começou a confiar nele, tirou de sob a mesa uma bolsinha onde escondia os remédios: tomava quatro dos vinte prescritos. “Assustam-se com os efeitos secundários, outros não acreditam na medicina tradicional ou fazem confusão e pode ser perigoso. Se uma pessoa vai lá só para repetir que se têm de tratar, não fez nada”. Ao passo que estabelecer um relacionamento tem consequências práticas excepcionais, permitiu-lhe aperceber-se de problemas que tinham escapado aos médicos. “É uma profissão que requer inteligência, conhecimento e afeição. Esses aspectos não são separados. Aliás, só na relação descubro quando e o que posso fazer”. Mesmo onde, para conquistar a confiança do paciente, precisa primeiro de conquistar o afecto do cão dele. Ou mesmo onde lhe parece ter falhado. Como com aquele pobre homem, doente terminal, a quem a família dava piri-piri em pó, segundo uma velha tradição caribenha. Não tinham percebido que lhe ia para os pulmões. “Mas não aceitaram ajuda e eu não tive a paciência, as palavras e o olhar necessários. Deixei de ir àquela casa porque para eles eu era mais um problema do que uma ajuda”. A única coisa que pôde fazer por ele foi dar-lhe banho: aquele homem tinha dores onde quer que fosse tocado e ninguém se atrevia a lavá-lo.
“Deus feito homem é um enfermeiro”, disse recentemente o Papa Francisco: “Deus envolve-se, inclina-se sobre as nossas feridas e cura-as com suas mãos. É um trabalho de Jesus, pessoal. Deus não nos salva apenas por decreto, por lei; salva-nos com ternura, salva-nos com carinho, salva-nos com a sua vida, por nós”.

Sim ou não. O primeiro paciente a domicílio de Enrico foi D. Giussani. Cuidou dele, juntamente com outros, durante três anos, nos quais aprendeu a estar disponível, a não colocar objecções à realidade. “Tudo para ele era relação com o Mistério, mesmo as coisas contra as quais me revolto e digo: isto não, isto tem de se ajustar, tudo óptimo, mas isto não... Para ele, todas as coisas eram dadas e olhar para ele era participar do olhar que é de Cristo, que faz tudo novo”. Não está a falar de uma mística, mas de conhecer as coisas como realmente são. Quando está na casa de seus pacientes, as suas necessidades mudam-no. “O outro tem dois olhos que me olham e me perguntam: está aí? Não é uma coisa que eu calculo. E talvez não esteja presente. Mas a realidade convida-me a estar presente, e eu posso dizer sim ou não. O meu maior desejo é aceitar o convite”.