«VOCÊS ESTÃO NO CORAÇÃO DA IGREJA»

Há muito que o Médio Oriente está a ferro e fogo mas nos últimos meses a situação piorou, em especial para os cristãos. A Síria está mergulhada numa guerra civil há mais de três anos e em Mossul, pela primeira vez em dois mil anos, já não se celebra Missa
P. Luis Miguel Hernández

Félix Lungu é casado e tem duas filhas. Nascido na Roménia, tem também nacionalidade portuguesa já que vive em Lisboa há uns 20 anos. Trabalha incansavelmente para a organização católica, dependente do Vaticano, Ajuda à Igreja que Sofre, cuja missão é ajudar e informar mesmo os católicos do que acontece nos lugares onde a Igreja é perseguida. O P. Luis Miguel Hernández colocou-lhe algumas questões para melhor entender o que se está a viver hoje e que ele muito bem acompanha e conhece.

Resulta difícil compreender o alcance do que se está a passar no Iraque e na Síria. Pode dar-nos um quadro sintético da situação actual?
Há muito tempo que o Médio Oriente está a ferro e fogo mas nos últimos meses a situação piorou, particularmente a situação dos cristãos. A Síria está mergulhada numa guerra civil há mais de três anos. Existem mais de dois mil grupos de combatentes que procuram derrubar o Governo de Bashar al Assad. Os cristãos são um alvo a abater por serem identificados como próximos do regime, mas de facto nesta guerra são o elo mais fraco e por isso são uma das comunidades mais castigadas.
No Norte do Iraque, precisamente na Terra de Abraão, os cristãos estão a ser perseguidos por combatentes fundamentalistas do autoproclamado "Estado Islâmico". Em Mossul, a segunda maior cidade do Iraque, neste momento já não há cristãos. Pela primeira vez em dois mil anos deixou de ser celebrada a Missa porque os 30 mil cristãos fugiram para o Curdistão Iraquiano para salvar as suas vidas.
Em Erbil estão neste momento mais de 120.000 refugiados que vivem em condições muito precárias. A Igreja foi a primeira instituição a abrir as suas portas para acolher todas estas pessoas e de facto há muitos cristãos a viver dentro de igrejas, nas escolas e centros paroquiais, em tendas ou ao ar livre, nos parques da cidade.
Temos recebido relatos horríveis da crueldade destes combatentes jihadistas que fazem a guerra santa e que confiscaram todos os bens dos cristãos e de outras minorias religiosas, profanaram e destruíram as igrejas e mataram centenas de pessoas. A situação das mulheres é muito delicada, pois são presas e vendidas no mercado como escravas para serem compradas e para casarem com os combatentes muçulmanos.

Quais são as raízes culturais desta situação? E quais os principais factores que a desencadearam?
Não é fácil resumir toda a história do conflito do Médio Oriente, mas podemos identificar algumas razões como a fragmentação e o não entendimento entre as várias tribos árabes; a divisão e o ódio que existe entre as duas grandes famílias do Islão, os sunitas e os xiitas; a cobiça e as guerras pelos recursos naturais, principalmente pela água e pelo petróleo; o conflito israelo-árabe, a humilhação e as feridas abertas que persistem depois da derrota sofrida na guerra dos 6 dias; a situação da Palestina; a ingerência dos países ocidentais, particularmente a ocupação e a guerra iniciada pelos EUA em 2003; o comércio de armas e o aparecimento de potências emergentes como o Catar e outros estados árabes que querem influenciar a política da região.
De alguma maneira a situação caótica que se vive no Iraque foi desencadeada pela invasão das tropas americanas em 2003. Contudo, o que se passa actualmente no norte do Iraque e na Síria tem muito a ver com a chamada "Primavera Árabe", que começou por ser um movimento democrático à procura de um maior espaço de liberdade para os cidadãos dos países do Norte de África e Médio Oriente, mas que acabou por se tornar um fenómeno violento e confuso, com a agravante de deixar um grande vazio de poder oportunamente preenchido por grupos fanáticos de bandidos e pessoas sem moral nem escrúpulos.

Ângela, uma rapariga portuguesa que está no Iraque, escreveu: "A guerra santa é a única esperança da humanidade". Como se explica esta afirmação?
Não sou um conhecedor profundo do Islão mas quero acreditar naquilo que o meu professor da História das Religiões, o P. Peter Stilwell, me ensinou. O Islão é uma religião da paz. Qualquer religião, para ser autêntica, deve ser promotora da paz. O Alcorão começa assim: "Em nome de Deus o Clemente, o Misericordioso." Portanto, os muçulmanos devem ser precisamente os mensageiros da misericórdia de Deus.
O Alcorão foi revelado e escrito numa época específica e é natural que contenha influências culturais daquela época. Por esta razão aparecem relatos sobre a guerra, assim como este conceito concreto da "guerra santa" ou "jihad". No início esta guerra dizia respeito à expansão do Islão, portanto era uma guerra contra os infiéis, contra todos aqueles que não eram muçulmanos e muito particularmente contra os cristãos. Mais tarde, e sobretudo a partir de algumas correntes moderadas, dos sábios sufis por exemplo, a guerra foi entendida como uma luta interior de qualquer muçulmano contra as suas próprias limitações e pecado.
A afirmação da jovem Ângela pode parecer um grito de esperança, mas de facto é uma afirmação forte que traduz algum desespero e mostra uma total desilusão com os valores ocidentais. Na minha modesta opinião também mostra uma total desorientação de alguém que acabou por se converter a uma religião que não conhece, foi viver para um país estranho sem sequer saber falar a língua árabe e revela, de facto, que percebe muito pouco do que se passa ao seu lado.
No entanto é de assinalar o seu desejo de algo bom que é esta vontade de ver uma humanidade melhor. É pena que seja através da violência gratuita e da eliminação dos outros que são diferentes.

Ao falar dos cristãos perseguidos, o senhor qualificou-os como a "elite da Igreja". Pode descrever melhor o que entende com esta expressão?
A Igreja sempre soube identificar este traço maior da santidade que se manifesta misteriosamente através do sofrimento.
Recentemente, o Papa Francisco, ao dirigir algumas palavras aos cristãos perseguidos no Iraque disse: "vocês estão no coração da Igreja; a Igreja sofre com vocês e tem orgulho de vocês, orgulho de ter filhos como vocês; vocês são a sua força e o testemunho concreto e autêntico da sua mensagem de salvação, de perdão e de amor."
A Igreja Católica sempre foi uma Igreja de mártires. Jesus Cristo foi condenado à morte por blasfémia e morreu na cruz. Todos os discípulos de Cristo tiveram a mesma sorte do Mestre. Durante os primeiros séculos do cristianismo os seguidores de Jesus foram perseguidos e a própria aceitação do baptismo era um acto de coragem pois implicava a possibilidade ou quase a certeza de ser condenado à morte.
Os mártires sempre foram considerados a elite da Igreja precisamente porque são configurados com Cristo. Os cristãos perseguidos são as pessoas que mais se assemelham com Jesus Cristo, o Servo Sofredor que padeceu e deu a vida por nós.
Naturalmente que há diferença entre os cristãos perseguidos e os mártires que dão a vida pela fé, mas de facto há um denominador comum, algo que os une e que é precisamente a paixão e o sofrimento por causa da fé em Jesus Cristo.

Em que sentido somos responsáveis e devemos agir em relação a esta situação? O que fazer?
Ensina-nos São Paulo que quando um membro da Igreja sofre todos os outros membros sofrem com ele. Circula entre nós o mesmo Espírito que nos torna irmãos uns dos outros e filhos do mesmo Deus. Por isso, o que se passa neste momento com os cristãos perseguidos não deve deixar-nos indiferentes.
Partilhamos com eles a mesma fé, o mesmo baptismo, o mesmo pão da comunhão. Com eles devemos partilhar também a nossa solicitude através da oração e da caridade. De facto o que mais esperam de nós os cristãos perseguidos é precisamente a oração e saber que não nos esquecemos deles e que não os abandonamos.
Em concreto, a Fundação Ajuda à Igreja que Sofre está no terreno a ajudar os cristãos refugiados no Norte do Iraque, mas também na Síria, no Líbano e na Jordânia. E todas as pessoas de boa vontade podem e devem juntar-se neste esforço. Toda a ajuda é bem-vinda!
Num primeiro momento ajudámos com bens de primeira necessidade, com água, medicamentos e comida. Também estamos a organizar, junto com as Irmãs que lá trabalham, uma grande festa de Natal para cerca de 15.000 crianças. A cada uma delas vamos oferecer um cabaz de Natal com alguma roupa, livros e lápis para colorir, uma pequena bíblia e alguns doces. É pouco, mas é um sinal concreto do nosso amor e representa também um grande sinal de esperança que queremos transmitir a estas crianças que sofreram tantos traumas.
Um cabaz custa apenas 30 € mas qualquer pessoa pode colaborar nestes projectos, conforme as suas possibilidades, através de um donativo que pode ser feito em www.fundacao-ais.pt ou directamente para o NIB 0032.0109.00200029160.73.
Ninguém é tão pobre que não tenha algo para dar, mas o mais importante é a oração. Neste Advento vamos ter presentes nas nossas intenções de oração todos estes nossos irmãos que sofrem, como Maria e José, por não encontrarem um lugar na estalagem.