NÃO SOU QUANDO NÃO ESTÁS AQUI

Apontamentos das intervenções de Davide Prosperi e Julián Carrón
na Jornada de Início de Ano dos adultos e dos estudantes universitários do CL.

Mediolanum Forum, Assago (Milão), 27 de Setembro de 2014

L’illogica allegria
Amare ancora
La strada



DAVIDE PROSPERI

Damos as boas-vindas a todos os presentes, aqui em Assago e nas cidades ligadas em Itália e no estrangeiro. Nestes dias pensava no valor de um gesto como este, que em si pode parecer repetitivo, na verdade fazemo-lo todos os anos! Mas, dizíamos há dois anos, o primeiro propósito de recomeçar, para quem caminha, é não perder o gosto do caminho. Há apenas um único motivo pelo qual o iniciar ajuda a não perder o gosto do caminho, e é porque no início está sempre o critério de tudo. O início é um dom, uma predilecção, tal como o início da vida é um dom não merecido, é o sinal maior da relação com quem nos quis. Por isso, cada início é sempre uma ocasião privilegiada para fazer memória do facto de que somos queridos, que não estamos no mundo por acaso, que existe alguém, Um, que nos quer agora, que nos quer ainda precisamente agora, e este é o primeiro factor de certeza na vida de um homem.
Hoje, talvez mais do que nunca na história, a certeza de que o homem precisa não é apenas uma compreensão intelectual, dogmática das coisas, mas, como lhe chamava Dom Giussani, um conhecimento afectivo da realidade, ou seja, totalmente apoiada na relação viva com Aquele em que a realidade consiste em última instância.
A passagem que mais me ajudou neste Verão a perceber melhor isto foi uma intervenção da Assembleia Internacional dos Responsáveis do CL, que teve lugar nos primeiros dias de Setembro em La Thuile. A nossa amiga Rose de Kampala relembrou uma conversa que teve com Dom Giussani, em que este lhe disse: «Ainda que só existisses tu no universo, Deus teria vindo buscar-te para que o teu nada não se perdesse». E ela comentava: «Para mim, quando se fala de Beleza com B maiúsculo, é ali onde o meu nada, a minha vida, ganhou esta beleza, este valor que não depende do meu nada, mas depende desta preferência que Deus teve por mim. E dizer que agora estou realizada, que estou afectivamente realizada, não é uma coisa inventada, mas um facto; que eu esta manhã respire é possível precisamente porque alguém me quis esta manhã e não tem medo daquilo que sou, mas tem piedade, quer que eu seja». E quem a vê, vê aquilo que ela é, vê aquilo que ela faz e não tem dúvidas de que isto é verdade, como me contavam também a Monica Maggioni e o Dario Curatolo (que, juntamente com o Roberto Fontolan, realizaram o vídeo sobre os sessenta anos do movimento, que sairá com a Tracce de outubro), depois de terem ido a Kampala.
O eu renasce num encontro onde acontece esta escolha, esta predilecção, que é o factor de certeza da vida, porque esta escolha é uma iniciativa do Ser que me quer. A nossa incerteza – que pode ter a ver com as relações (aliás, normalmente tem a ver com as relações), mas que também pode ter a ver com a nossa capacidade de iniciativa e, portanto, ser uma insegurança numa presença ou num juízo – nasce do facto que, não fazendo experiência desta relação com o Ser que me quer agora, procura-se preencher o vazio com outra coisa, com outras relações que se substituem a esta, ou com iniciativas nossas.
Com efeito, na Jornada de Início de Ano do ano passado fomos provocados exactamente sobre isto, com a história do episódio de Madalena – lembramo-nos bem – que se dirige ao sepulcro onde espera encontrar o corpo sem vida de Jesus para o venerar, e em vez disso ouve o Senhor ressuscitado a «chamá-la pelo nome». É precisamente neste ser chamado pelo nome, dizia-nos o Carrón, que renasce o eu e jorra o desejo de O comunicar aos outros e de tomar iniciativas no mundo.
O primeiro passo de consciência do alcance deste anúncio que nos chegou foi colocado este ano com a carta que o Carrón enviou a toda a Fraternidade do CL, depois da audiência privada com o Papa Francisco, na qual ele resumia a preocupação fundamental do Papa: é preciso centrarmo-nos no essencial, que é o encontro com Cristo (cf. Carta à Fraternidade, www.revistapassos.pt).
O desafio do essencial surgiu logo como factor decisivo para continuar a construir a presença cristã no mundo. Deste ponto de vista, a publicação do livro de Savorana Vita di don Giussani e as apresentações que se seguiram em toda a Itália demonstraram ser um instrumento formidável para novos encontros, bem além dos nossos esforços, porque esta capacidade de encontro está na origem do carisma. Tanto é verdade que nos é precisamente pedido que permaneçamos fiéis a esta origem, se não queremos perdê-la.
O convite do Papa ao essencial acompanhou-nos, depois, no percurso feito para dar um juízo sobre as eleições europeias, que culminou na intervenção do Carrón na Feira de Milão (e que depois foi a Página Um da Tracce de Maio, «Europa 2014. É possível um novo início?»). Dizia-se, retomando Dom Giussani: «A solução dos problemas que a vida apresenta todos os dias não advém diretamente enfrentando os problemas, mas aprofundando a natureza do sujeito que os enfrenta”». E o Carrón comentava: «Este é o grande desafio diante do qual se encontra a Europa. A grande emergência educativa demonstra a redução do homem, o seu esquecimento, a sua falta de consciência de quem é verdadeiramente o homem, de qual é a natureza do seu desejo, da desproporção estrutural entre aquilo que espera e aquilo que consegue alcançar com as suas forças» (Tracce, n. 5/2014, p. VI).
Este juízo foi objecto de trabalho em muitas das nossas comunidades este Verão. Claro que o maior testemunho disto, que tivemos e temos diante dos nossos olhos já há semanas, é o dos nossos irmãos cristãos que sofrem perseguições, que sofrem e correm diariamente risco de vida por afirmarem a sua fé. No seu testemunho vemos o que é o essencial, o que é essencial para eles para viverem naquela situação. Lemos na Tracce a entrevista ao Arcebispo de Mossul: «É possível viver cada instante com plena esperança e plena alegria». Perguntam-lhe: «Como compreendeu que era possível?» «Comecei eu por viver assim. E comecei a comunicar isto nas minhas homilias e nos encontros. Com o passar do tempo, notei que as pessoas iam mudando». «Como é que reparou que os cristãos mudaram de comportamento?». «Pelo modo de viver. Foram eles que começaram a dizer-me que tinham necessidade de estar mais agarrados à nossa fé. Eram eles a dizer-me que tinham voltado a viver entre as inúmeras dificuldades. Eles diziam-mo por palavras e eu, pelo olhar deles, compreendia que era verdade». (A.S. Nona, «Pelo olhar deles sei que vivem», entrevista de L. Fiore, Tracce, n. 7/2014, p. 27-28, disponível em revistapassos.pt).
Aqui percebe-se finalmente o que é o testemunho (que, não por acaso, é o significado original da palavra «martírio»): um juízo de amor e de bem, pelo qual se dá a vida, antes de mais porque a vida muda devido a um olhar novo sobre si próprio, sobre o próprio destino e sobre o destino do mundo; dá-se a vida pelo olhar que a fé introduz na própria existência. Este testemunho ajuíza-nos, porque mostra claramente que, através do juízo sobre a experiência que se vive, pode arriscar-se a pele sem se ser herói, onde quer que se esteja, pelo simples facto de que, sem defender esta experiência, a vida seria menos do que viver! E isto é um despertar para todo o povo cristão, que é também uma das tarefas da nossa amizade: que o eu seja despertado, não que seja consolado, ou melhor, também isso, mas não da forma como nós entendemos este termo, como que a dizer: «Sim, vá lá, vais ver que amanhã tudo será melhor». Não é isto. O único consolo que nós procuramos é o de estarmos diante do significado da vida. Nada menos do que isto nos poderá verdadeiramente consolar, porque por menos do que isto, ou seja, sem este significado, a vida é solidão.
Pelo contrário – pensava nisto este Verão – quando na nossa existência entra o amor da vida, quando uma pessoa tem um encontro capaz de despertar o eu, se for verdadeira diante do que lhe aconteceu, está pronta a dar a sua vida por isso. Não hesitaria em dar a vida e começa a fazê-lo colocando-se a si mesma, a todas as suas energias, à disposição deste objectivo. E começa a sentir a vida como sacrifício, ou seja, como tendo sido dada para um objectivo grande, que não é um propósito imaginário, mas é amar Quem te amou a ponto de te salvar do teu nada, como dizíamos antes. Comecei a perceber que tudo isto é apenas uma introdução, porque faz-nos perceber aquilo para o que somos feitos; uma introdução a descobrirmos que há mais, que pode haver mais. A vida pode mesmo ser mais profunda do que isto, uma pessoa pode amar o amor da sua vida mais do que este ímpeto heróico. Porque para nós o sacrifício tem ainda dentro de si como que um último equívoco, ou seja: nós estamos prontos a dar a vida segundo a modalidade, a forma, até talvez grande, de quem precisa, como serviço que podemos fazer. Mas há um sacrifício ainda maior, que é dar a vida aceitando o como e o quando Ele decide. Tu talvez não estejas pronto, não te sentes pronto para aquilo que te é pedido duma forma diferente daquela através da qual já estás a dar a vida, mas é-te pedido tudo ali. E então compreendes que o instante – como tantas vezes nos dissemos, mas começas a descobri-lo nas dobras da tua experiência – adquire um valor infinito quando o dar a vida está no como e no quando o amor da tua vida to pede. É uma disponibilidade que se aprende e que só cresce através de todos aqueles teus sins, ainda que pequenos, que por amor começaste a dizer.
Então, este Verão surgiu, com diversas modalidades e várias vezes retomado entre nós, como é que o caminho que estamos a fazer se está a tornar o factor que permite «aprofundar a natureza do sujeito», como dizíamos antes. Mas muitas vezes damo-nos conta do afastamento entre este ímpeto heróico, que sentimos vivo, e a normalidade, que sentimos como uma espécie de realidade “menor”, ou entre o juízo sobre a realidade que nos é dado pela fé e a necessidade de olhar quem temos à frente para encontrá-lo verdadeiramente, e não duma forma dialéctica, como nos pede o Papa. Então perguntamos-te: o que é que torna uno o eu, para que possamos viver tudo aquilo que nos é dado, todos os desafios que temos pela frente, com plenitude e gosto de viver?


JULIÁN CARRÓN

O que torna uno o eu?
«Não sou quando tu não estás aqui», diz uma canção de Francesco Guccini que dá o título a este nosso encontro («Vorrei», letra e música de F. Guccini). De quem é que podemos falar assim? De quem é que podemos falar assim agora? Esta expressão impressionou-me por duas razões. A primeira é que eu dou-me conta daquilo que é essencial para mim não apenas quando falta, e isso vê-se no facto de que «fico só com os meus pensamentos», como prossegue a canção de Guccini. E a segunda razão é que aquela coisa essencial deve estar presente agora. Se não está presente agora, eu não sou. Parece-me que não existe outro critério para reconhecer o essencial a que o Papa nos chamou novamente na Mensagem ao Meeting de Rimini, se não este: uma presença que me faz ser; reconheço-o porque quando falta eu não sou, não sou mesmo. Vê-se logo que não é antes de mais um problema de coerência, mas de pertença a uma presença sem a qual eu não sou.
Mas o que é que nos faz ser? Ser agora, nesta situação histórica em que nos encontramos a viver? Nada, nada nos pode impedir de refazermos na vida a mesma experiência que Giorgio Gaber conta na canção que ouvimos no início («L’illogica allegria», letra de A. Luporini, música de G. Gaber). Posso estar «sozinho», em qualquer lugar, «ao longo da auto-estrada», a qualquer hora, «nas primeiras luzes da manhã», até sabendo que «tudo está em ruínas», mas «pode bastar-me um nada / talvez um pequeno clarão / um ar já vivido / uma paisagem [...]. // E estou bem». Basta que a realidade, qualquer fragmento da realidade, quase um nada, entre no horizonte do nosso eu através duma circunstância qualquer, para o despertar e tornar possível a experiência deste bem. Um bem tão surpreendente que parece quase um sonho, que quase sentimos «vergonha». Mas uma evidência impõe-se: não posso negar que «eu estou bem / precisamente agora / precisamente aqui / não é culpa minha / se me acontece isto». É como se a realidade, um momento antes de nos podermos defender dela, antes de levantarmos um muro contra ela, conseguisse penetrar no eu para torná-lo ele mesmo, «precisamente agora, precisamente aqui». E encontro em mim uma «ilógica alegria». Com efeito, parece totalmente desproporcionado que «um nada / talvez um pequeno clarão / um ar já vivido» possa trazer à vida esta alegria. «Uma ilógica alegria / da qual não sei o motivo / não sei que coisa seja», de tal forma é real e ao mesmo tempo misteriosa. Porque se não fosse real, não poderia acontecer aquilo que Gaber diz depois: É come se «de repente / eu me tivesse dado o direito / de viver o presente». Alguma coisa entra na vida e torna-me presente no presente, «precisamente agora, precisamente aqui». Um nada que me prende de tal forma que me torna presente a mim mesmo. Eu estou todo uno, presente, quando tu estás aqui.
É difícil encontrar uma canção que exprima melhor o sentido do capítulo décimo de O Sentido Religioso. O eu, dando-se conta da presença inexorável da realidade, «despertado no seu ser», diz Dom Giussani, «pela presença, pela atracção e pelo espanto [pela realidade], [...] sente-se grato, contente» (O Sentido Religioso, Verbo, Lisboa 2008, p. 147) e está bem.
Quem não desejaria isto todas as manhãs, todos os instantes da vida? Um instante de plenitude com que uma pessoa se surpreende, como tantas vezes vivemos nós também. Naquela experiência simplicíssima, elementar, ao alcance de qualquer um, em qualquer momento, em qualquer lugar, em qualquer circunstância, ali reside todo o método. Uma presença que me faz ser. Nenhuma tentativa minha é capaz de me dar aquilo que aquele instante me dá. Não há outro critério para reconhecer o essencial se não este. Que é o essencial, vê-se porque me faz ser de tal forma que, quando falta, eu não sou, não sou mesmo! Mal aparece, sou, e estou contente, experimento uma «ilógica alegria», «precisamente agora, precisamente aqui», que me torna capaz de viver o presente.
Quando, pelo contrário, este método não prevalece, «que amargura, meu amor, / ver as coisas como eu as vejo [não é que o real mude, muda a forma de ver as coisas] [...]. // Que desilusão [...] viver a vida com este coração [tantas vezes encolhido] / e não querer perder nada» («Amare ancora», letra e música de C. Chieffo), vendo no entanto que tudo me escapa por entre as mãos.
Mas mudar é fácil: «Bastaria apenas voltar a ser criança e recordar... / E recordar que tudo é dado, que tudo é novo / e libertado». Bastaria perceber que a nossa primeira actividade é uma passividade, é este acolher, este receber, este reconhecer que tudo é dado. Basta um clarão para podermos dizer que alguma coisa nos é dada. Não é preciso nada de particularmente excepcional. Bastaria um pequeno clarão para que qualquer coisa, mesmo a mais pequena, documentasse que há qualquer outra coisa. «Eis o nosso método», diz Giussani no último livro da Equipe, In cammino «para clarificar o problema do homem como religiosidade – que é o problema mais profundo e totalizante do homem -: é necessário antes de mais tornar experiência pessoal a relação entre o homem e a realidade enquanto originada» (In cammino. 1992-1998, Bur, Milão 2014, p. 316).
Todos tivemos, nalguns momentos excepcionais, uma experiência deste género, mas perguntamo-nos: como é que isto se pode tornar estável? Como tornar experiência estável a relação ente o homem e a realidade enquanto originada? É aqui que se põe o problema do caminho. Com efeito, sem fazer um caminho podemos, também após momentos excepcionais, voltar ao rame-rame e tudo pode ficar novamente achatado, esquálido, reduzido. Nós pertencemos ao movimento para fazermos juntos este caminho, para nos sustentarmos neste caminho. Cada vez que nos encontramos, como o Davide dizia antes, é para continuar o caminho, pelo gosto pelo caminho, porque sem fazer um caminho, ou seja, sem uma educação, este método não se torna experiência pessoal, ou seja, não se torna meu. A realidade está ali, diante de todos nós, mas não é minha.
Chegados a este ponto, é preciso retomar a pergunta que nos tínhamos proposto para este Verão: «O que procurais?» Procurar é sinal de que uma pessoa está em caminho. Mas dissemo-nos: não demos por adquirida a pergunta «o que procurais?». Porque podemos pertencer ao movimento, estar aqui fisicamente e já não procurar; estar aqui e estarmos parados, bloqueados; isso vê-se porque, em vez da «ilógica alegria», prevalece a lamentação de viver.
É impressionante que todas estas experiências que nós vivemos são semelhantes às de qualquer pessoa que viva uma pertença. O mesmo Gaber, numa outra canção, Qualcuno era comunista, faz um extenso rol de todas as razões pelas quais se pode ser comunista: porque uma pessoa tem «necessidade dum empurrão», porque uma pessoa tem «a necessidade duma moral diferente», por «um desejo de mudar as coisas», porque precisa dum «impulso», etc.. O que é que ele procurava através da pertença ao partido? O que desejava? Superar aquele dualismo que tantas vezes carregamos connosco. «Era como que duas pessoas numa», diz. «Por um lado, o cansaço pessoal quotidiano, e por outro, o sentimento de pertença a uma raça que queria voar para mudar verdadeiramente a vida» («Qualcuno era comunista», G. Gaber e A. Luporini). A pertença tem uma finalidade: mudar a vida, o «viver que corta as pernas» (C. Pavese, Dialoghi con Leucò, Einaudi, Turim 1947, p. 166).
Depois, com o tempo, depois de anos de pertença, chega a dramática pergunta: «E agora?». E agora? Qualquer pertença precisa – queiramos ou não – de passar através da verificação do cansaço diário. Aquela pertença revelou-se capaz de responder aos desafios da vida, àquele desejo de mudança? Surpreende-nos a honestidade de Gaber ao reconhecer o resultado da verificação: «E agora? Também agora me sinto dividido em dois: dum lado o homem inserido, que atravessa obsequiosamente a miséria da sua própria sobrevivência diária, e do outro lado a gaivota, que já não tem sequer a intenção de voar, porque agora o sonho encolheu / duas misérias num corpo só» («Qualcuno era comunista», G. Gaber e A. Luporini).
Vejam como não é qualquer pertença que resolve a questão da vida. E tão pouco qualquer modalidade de viver uma pertença verdadeira resolve o dualismo. O problema da unidade da vida apresenta-se sempre. Não somos capazes apenas afirmando por palavras uma pertença, não somos capazes apenas insistindo voluntariamente nesta pertença. Podemos, com efeito, viver ainda uma divisão profunda em nós entre «a miséria da própria sobrevivência diária» e «a gaivota, que já não tem sequer a intenção de voar».
Nós, que pertencemos à realidade do movimento, temos o mesmo problema. E como o ser comunista teve que passar através da verificação da história, também nós fazemos a verificação da fé diante dos desafios do quotidiano e da história. E agora? «No nosso grupo de Fraternidade (mas ouvi a mesma coisa também de outros grupos)», escreve-me um de vocês, «é muitas vezes difícil viver aquela amizade fraterna que permite pôr em comum as experiências de cada um, de forma a que seja possível exprimir juízos comuns e que portanto o grupo possa ser útil a todos para encontrar “os olhos de céu” na própria vida. Mais do que procurar uma ajuda fraterna com este objectivo, limitamo-nos aos comentários, talvez do tipo intelectual. No final, porém, permanece a nossa insatisfação e perguntamo-nos o que convém fazer, como se a solução estivesse fora de nós mesmos». Como vêem, não é qualquer modalidade de viver a pertença que é satisfatória. Substituir a experiência pelos comentários não é útil para encontrar os «olhos de céu». Dom Giussani tinha-o previsto: «Uma fé que não pudesse ser encontrada e descoberta na experiência presente, e confirmada por esta, útil para responder às suas exigências, não seria uma fé capaz de resistir num mundo em que tudo, tudo [...] diz o oposto». (Educar é um risco, Diel, Lisboa 2006, p. 20). É o risco que se corre vivendo uma pertença que não responda às exigências da vida.
É impressionante a lealdade com que o próprio Gaber, noutra das suas canções, Il desiderio, reconhece que «não faz sentido [continuar a ] elencar problemas / e inventar novos nomes [“comentários, talvez do tipo intelectual”, como diz o nosso amigo] / ao nosso regredir / que não se detém continuando a falar. // Amor, / já não é necessário / se aquilo que falta / se chama desejo» («Il desiderio», G. Gaber e A. Luporini). Dramático! Não é que possamos parar o nosso regredir com as nossas conversinhas ou as nossas discussões, com a avalanche dos nossos comentários, porque isto já é, precisamente, o sinal do nosso regredir. Se nos falta o desejo, se nos falta aquilo que é o motor da vida – porque «o desejo», diz Gaber , «é o verdadeiro estímulo interior / [...] é o único motor / que move o mudo» -, quem é que o desperta? Se o nosso estar juntos não é útil para reencontrar os «olhos de céu» que nos permitem ainda voar, quem é que se pode tornar tão presente no presente para despertar toda a nossa nostalgia?
Impressiona-me sempre pensar que o primeiro dom que recebi de Dom Giussani foi o de poder ver que ele não tinha medo de dizer as coisas que todos vivíamos, mas que eram envergonhadamente mantidas escondidas, até de nós mesmos. Nós podemos olhá-las de frente, dizê-las, desafiá-las só por força daquilo que recebemos. Por isso cada um de nós, depois de anos de pertença ao movimento, deve ver se se encontra já na condição de «gaivota, sem ter sequer a intenção de voar» ou se ainda encontra em si mesmo o desejo de voar (porque o desejo é o motor que move tudo), com a consciência de que não apenas não «perdeu a vida vivendo», para citar Eliot, mas que a está a ganhar vivendo. Por isso a pergunta não é banal: procuramos ainda, ou estamos parados?

O Senhor não nos abandonou
Qualquer que seja o ponto do caminho em que nos encontramos, qualquer que seja o ponto do percurso em que cada um se encontra, o momento de dificuldade por que passa, o momento de alegria que vive, ainda hoje ouvimos o Papa dizer-nos, com toda a sua novidade, na Mensagem ao Meeting: «O Senhor não nos deixa sozinhos [ou seja, na miséria da nossa sobrevivência diária, ou a sermos gaivotas sem termos sequer a intenção de voar], não se esquece de nós. Nos tempos antigos escolheu um homem, Abraão, e indicou-lhe o caminho rumo à terra que lhe tinha sido prometida. E na plenitude dos tempos escolheu uma jovem, a Virgem Maria, para se fazer carne e vir a habitar no meio de nós. Nazaré era realmente uma aldeia insignificante, uma “periferia” a nível tanto político como religioso; mas Deus olhou precisamente para lá, afim de que se cumprisse o seu desígnio de misericórdia e de fidelidade» (Francisco, Mensagem ao Meeting para a amizade entre os povos, 24-30 Agosto 2014). Para nós este lugar, através do qual o mistério continua a preferir-nos – sabemo-lo bem -, é o nosso carisma, o lugar onde o Senhor ainda tem misericórdia de nós. É este o lugar onde continua a chamar-nos, através de cada gesto, cada palavra, cada tentativa.
«Caro padre Carrón, “não sou quando não estás aqui”», escreveu-me um de vocês ontem, assim que soube o título desta Jornada de Início. «Hoje dei comigo exactamente assim. Quando Cristo está no horizonte do meu olhar, do meu dia, eu “vivo”. Vivo até quando estou em viagem durante semanas longe da minha família e dos meus filhos. Vivo na mudança do fuso horário, de cama, nas dificuldades do trabalho. Vivo graças à “memória” de Cristo que é feita para mim de tantas maneiras – as mesmas que tu descrevias recentemente: os Sacramentos, as Laudes, um telefonema, a Escola de Comunidade, um encontro, até mesmo um testemunho feito no Meeting e visto no youtube em diferido... Até os gestos que dantes eu achava sinal de fanatismo, agora, dou-me conta disso, são um dom de companhia real e que amo -. É a memória de Cristo que ilumina tudo, até o momento mais simples ou mais difícil. Mas se Cristo não é a minha memória, de facto eu não sou. A sua ausência é um peso mortal, como nesta semana: embora estando em casa, ao abrigo das dificuldades da vida, nada basta. Estas linhas são para dizer o quanto espero pela Jornada de amanhã. Eu, de facto, não sou se tu não estás aqui».
A questão é como é que cada um de nós responde a esta modalidade histórica através da qual o Mistério ainda tem piedade do nosso nada. Não é certamente uma pertença formal aquela que mantém vivo em nós o desejo de voar, mas é um seguimento real. A única possibilidade de procurar ainda, de despertar o desejo, está no seguimento.
«Aproveito a ocasião para te agradecer pelos Exercícios da Fraternidade de Rimini de 2014, porque naqueles dias fizeste renascer em mim (voltaste a dar-me a vida, ousaria dizer...) o desejo sobre tudo. Antes de ti, antes de te encontrar, reduzia tudo e todos. Reduzia o cristianismo a um bom exemplo a dar, mas depois não era capaz e então estava sempre insatisfeito e, sem a graça de Deus, vagueava sozinho e na solidão como um vagabundo, sem uma verdadeira meta. Tinha até medo de estar sozinho... Naqueles dias de Rimini, porém, despertou no mais profundo de mim o dom da Sua presença e sinto que nada nem ninguém me pode deter... “Sinto a vida que me explode dentro do coração”, como recitava Chieffo. Obrigada, mesmo! Depois dos Exercícios de Rimini, de volta à verdadeira vida, no dia-a-dia, mergulhei (mergulhei literalmente...) no retomar dos Exercícios e alguma coisa começa a germinar: estou mais contente, continuo a aprofundar e a ler o texto, chego mais fundo e alguma coisa, uma luzinha de esperança, começa a iluminar as minhas trevas. Sou uma outra pessoa e agradeço a Deus por isso, porque agora, ao contrário do milagre que esperava há tantos anos, agora gosto de cada passo do caminho que tenho de fazer, na alegria e na dor».
O encontro com aquela Presença que me faz ser, para citar Dom Giussani, «ressuscita a personalidade, faz perceber ou voltar a perceber, faz descobrir o sentido da nossa própria dignidade, da dignidade da nossa própria personalidade. E como a personalidade humana é composta de inteligência e de afectividade ou liberdade, naquele encontro a inteligência desperta-se numa curiosidade nova, numa vontade de verdade nova, num desejo de sinceridade nova, num desejo de conhecer como é verdadeiramente a realidade, e o eu começa a vibrar com uma afeição ao que existe, uma afeição à vida, uma afeição a si mesmo, uma afeição aos outros, que dantes não tinha. E assim se pode dizer; nasce a personalidade» (In cammino. 1992-1998, op. cit., pp. 184-185).
Mas o que é este seguir? Uma pertença formal, uma repetição verbal das definições certas e verdadeiras ou, como diz Dom Giussani, a experiência das coisas verdadeiras? Também aqui o Mistério teve uma tal piedade de nós que nos deu tudo o que é necessário para responder, e com a vida de Dom Giussani testemunhou-nos em que consiste este seguir, para que ninguém se confunda, para que cada um tenha nas mãos o instrumento para saber o que significa seguir (e portanto, para decidir se segue ou não); deixou-nos a indicação da estrada que nos permite chegar e tornar nossas as coisas verdadeiras e alcançar aquela unidade da vida que todos desejamos. Porque a alternativa é clara: entre uma pertença formal, associativa, organizativa, mas que não trava o regredir da nossa vida, ou [a pertença] o seguimento, tal como o descreveu Dom Giussani – quantas vezes teremos que o repetir ainda para passar da intenção à experiência! -: «O seguimento é o desejo de reviver [reviver!] a experiência da pessoa que te provocou [reviver a experiência!] e te provoca com a sua presença na vida da comunidade, é a tensão para te tornares não como aquela pessoa, na sua concretitude cheia de limites, mas como aquela pessoa no valor que ela tem e que redime, no fundo, o seu rosto de pobre homem; é o desejo de participar na vida daquela pessoa na qual te é trazida alguma coisa de Outro, e é a este Outro que tu és devoto, a quem aspiras, a quem queres aderir, dentro deste caminho» (Il rischio educativo, SEI, Turim 1995, p. 64). Reviver a experiência de um outro não é a repetição formal ou a participação numa associação. Há uma diferença abissal! No primeiro caso, uma pessoa não trava o regredir, não desperta o desejo, não se dá as asas para voar, no outro caso está cada vez mais fascinada, torna-se cada vez mais ela própria.
«Relendo a assembleia dos Exercícios da Fraternidade», escreve um de vocês, «estou a reviver o choque provocatório e libertador da tua primeira resposta. Eu, que faço parte dos chamados “velhos” do movimento (60 anos), sinto que há um ponto decisivo de recomeço, como o foi desde o início da tua condução, uma correspondência desafiadora que me remete direitinho aos dias de quando, com catorze anos, descobri o movimento como caminho de salvação para a minha vida. Diante de quem se lamenta, sinto-me um pouco como o cego de nascença diante das objecções dos fariseus: “Vocês dizem que isto não está bem, mas no entanto eu, seguindo, encontro o sentido do encontro com o movimento, a sua frescura, a sua irónica juventude com um pouco mais de maturidade. Parece-me uma estrada de liberdade e do retomar da consciência da fé completamente nova: portanto, deveria eu apagar isto tudo para dar espaço às objecções? Mas eu seguindo-o vejo e respiro, e isto não mo podem tirar, é um facto”». Uma pessoa pode responder à pergunta: «E agora?», encontrando-se aos 60 anos, depois de mais de quarenta anos de pertença ao movimento, com uma frescura, com um fôlego, com uma liberdade e consciência da fé completamente novas, que nenhuma objecção lhe pode tirar. O que é que lhe permitiu tornar estável esta novidade na sua vida? Seguir.
Por isso, é a este nível que se joga constantemente a nossa vida: em seguir ou não o carisma, e o método é descrito de forma sintética numa frase de Dom Giussani que me repito muitas vezes: «Uma definição deve dar forma a uma conquista já obtida, caso contrário seria uma imposição de um esquema» (Na origem da pretensão cristã, Tenacitas 2012, p. 79). Ou a definição é uma conquista já obtida na própria experiência ou é a imposição de um esquema. Por isso a escolha é entre quem quer seguir alguém que lhe impõe um esquema, ou quem quer seguir alguém que o ajuda a conquistar pessoalmente o conteúdo da definição. Ajudar a pessoa a realizar esta conquista foi o método seguido por Jesus. Não há outra alternativa. E se nós não o entendermos como decisivo para nós, depois não nos damos conta de que é exactamente o que fazemos com os outros: impomos esquemas. Como muitas vezes nos podemos contentar em repetir a nós mesmos as mesmas definições, discursos, acabamos por pensar que basta impôr aos outros as definições ou, pior, brandir aos outros as nossas definições correctas. Mas como sabemos bem pela experiência, isto não torna una a vida, não torna minha a definição de quem eu sou; para a conquistar, é preciso uma experiência. Por isso não sei quantas vezes repeti, desde que estou aqui, esta frase: «a realidade torna-se evidente na experiência», e ainda: «a experiência é o fenómeno no qual a realidade se torna transparente e se dá a conhecer» » (In cammino. 1992-1998, op. cit., pp. 311, 250), uma frase de Giussani que é “nuclear”!
Então, o que significa reviver a experiência de um outro? O que significa reviver a experiência de Dom Giussani? O que é que ele nos testemunhou e propôs como hipótese para entrar no real, para sermos homens, para não perdermos a intenção do voo, para sermos homens que não desistem de procurar, homens em quem o desejo não diminui? Ouçamos mais uma vez o Papa, que na Mensagem do Meeting nos convidou «a nunca perder o contacto com a realidade, aliás, a ser amantes da realidade. Isto também faz parte do testemunho cristão: na presença de uma cultura dominante que põe em primeiro lugar a aparência, o que é superficial e provisório, o desafio é escolher e amar a realidade. Dom Giussani deixou isto em herança como programa de vida, quando afirmava: “A condição única para ser sempre e verdadeiramente religioso [ou seja, homens] é viver sempre intensamente o real. A fórmula do itinerário para o significado da realidade é viver o real sem cortes, ou seja, sem negar ou esquecer coisa alguma. De facto, não seria humano, isto é, razoável, considerar a experiência limitadamente à superfície, na crista da onda, sem descer às profundezas do seu movimento”» (Francisco, Mensagem ao Meeting para a amizade entre os povos, 24-30 Agosto 2014).
Com este apelo, o Papa volta a dar-nos “agora” o programa de vida que Dom Giussani sempre nos propôs! E o programa não é a repetição das definições certas, é a indicação duma estrada que todos podemos repercorrer. Para sermos homens é preciso «viver sempre intensamente o real» (O Sentido Religioso, op. cit., p. 151). Cada um tem que decidir.

O valor das circunstâncias
Mas o real é feito de quê? De circunstâncias, de circunstâncias – como dizia antes o Davide – através das quais o Mistério nos chama, nos desperta, vem ao nosso encontro, para que nós nunca desapareçamos, não sucumbamos ao nada. Precisamente por isso, Giussani convidou-nos a olhar para as circunstâncias duma forma que nos impedisse de ficar pelas aparências. Porque as circunstâncias são a modalidade através da qual o Mistério nos chama, nos tira do nada, nos prefere. Por isso nos diz, ainda n’ O Sentido Religioso, «O homem, a vida racional do homem, devia estar suspensa do instante, suspensa em cada instante, deste sinal aparentemente quase volúvel, quase casual, que são as circunstâncias através das quais o desconhecido “senhor” me arrasta, me chama ao seu desígnio». Não é exigida uma definição, mas a resposta a uma provocação. E estas circunstâncias – Dom Giussani reforça a dose! – podem ser «um sinal [às vezes] tão obtuso [as dificuldades da vida, a miséria da vida quotidiana, as situações dramáticas, as coisas aparentemente mais desumanas], tão sombrio, tão pouco transparente, tão aparentemente causal, como é a sucessão das circunstâncias: é como sentir-se à deriva num rio que transborda aqui e ali». Esta é, no entanto, a modalidade através da qual o mistério me chama para não me deixar cair no nada. «E dizer “sim” a cada instante sem ver nada, simplesmente aderindo à pressão das ocasiões, é uma posição vertiginosa» (O Sentido Religioso, op. cit., p. 189); por isso tantas vezes sentimos medo e fugimos do desafio. Mas que testemunho é o seu! «Espero que a minha vida», dizia-nos Dom Giussani, «se desenrole segundo o que Deus esperava dela. Pode dizer-se que se desenrolou sob o signo da urgência, porque cada circunstância, aliás cada único momento para a minha consciência cristã foi a procura da glória de Cristo» («Dom Giussani: “Eu sou nada, Deus é tudo”», entrevista com D. Boffo, Avvenire, 13 Outubro 2002, p. 3).
Porque para ele «a vida coincide com a realidade no momento em que te toca, te chama, te provoca e porque não existe vida sem tarefa». Como é que a vida te toca? «Toca-te como realidade [uma realidade que põe em causa a tua liberdade] e a realidade provoca-te sempre a uma colaboração, a um envolvimento, ou seja, a uma tarefa». Amigos, isto é o que devemos seguir. É através disto que o Mistério nos chama. Mas quem pode pretender de nós um seguimento assim? Só Deus. Quem mais pode pretender uma coisa destas? Só Aquele que nos chama. Por isso a questão decisiva é perceber como é que Deus nos chama, porque caso contrário falamos de Deus em abstracto, atiramo-lo para fora da realidade, como diz o Papa, ficando pela aparência, não reconhecemos que somos chamados a responder-Lhe através das circunstâncias. Mas Dom Giussani educou-nos a reconhecê-las e a olhá-las por aquilo que são: a modalidade com que Deus nos chama, que pode ser alguma coisa absolutamente banal (um pequeno clarão) ou uma circunstância sombria, às vezes não transparente, mas é como se através destas coisas o Mistério nos dissesse: «Olha que esta modalidade que tu não percebes, que te parece sombria, é o sinal através do qual Eu que faço todas as coisas construo a tua vida, te faço amadurecer, te faço seres tu mesmo, te torno uno, desperto o teu desejo, torno-te presente no presente». Como é impressionante quando uma pessoa acolhe este desígnio!
«Caríssimo padre Carrón, escrevo-te para te agradecer por aquilo que propuseste nos Exercícios e pelo trabalho sobre “viver as circunstâncias” com que nos desafiaste este Verão. Tenho 27 anos, casei-me há dois anos e sou mãe de uma criança de 9 meses (que nasceu com síndrome de Down); sou médica e estou à procura de trabalho. Uma situação não muito vulgar. Escrevo-te, precisamente, para te agradecer, porque me dei conta, ao longo destes meses, do quanto tenho necessidade de seguir. Não basta um facto excepcional (no meu caso, o dia-a-dia é de alguma forma excepcional, graças à presença misteriosa da minha filha) nem mesmo toda aquela boa predisposição católica que se tem diante da vida. Sou cristã, praticamente desde sempre do movimento, e no entanto isto não basta para viver verdadeiramente, é preciso hoje um sentido para viver aquilo que existe. Nestes meses, seguir o movimento, não apenas formalmente, mas deixando-me educar, às vezes até duma forma dura, introduziu nos meus dias a consciência de que aquilo que me é dado hoje é a companhia mais útil para mim agora, o meu caminho para conhecer aquilo que enche verdadeiramente o coração: Jesus. Ele impôs-se como companhia fiel, como presença amorosa necessária; quer dizer, não é que eu precisasse que alguém me dissesse que a minha filha tem um valor infinito, que a sua vida é grande (isso é evidente na relação diária com ela, devias vê-la!); mas a diferença está no gosto, que vem da consciência de que o Senhor me chama aqui e não onde eu pensava. É como se o hoje, e portanto as pequenas coisas, a casa, o meu marido, a minha filha, me tivessem sido “restituídas”! Isto enche verdadeiramente o coração de gratidão. Nunca teria acreditado que viver a realidade acendesse o meu desejo de felicidade, em vez de, de alguma forma, o preencher ou corrigir. Obrigada ainda, do coração, pelo guia que és neste caminho humano, humaníssimo». Aquilo que lhe é dado hoje é a companhia mais útil para ela agora. Ela não precisava que ninguém lhe dissesse que a sua filha tinha um valor infinito (uma definição, precisamente); para esta jovem mãe, «a diferença está no gosto, que vem da consciência de que o Senhor me chama aqui e não onde eu pensava». E assim tudo lhe é restituído: as coisas, a casa, o marido, a filha.
Mas às vezes nós não seguimos este método; uma pessoa não aceita reconhecê-lo, e então afasta-se. Diante dos desafios das circunstâncias actuais, que tantas vezes nos perturbam, qual é a tentação? Sucumbir ao medo, pensando alcançar a unidade, como nos dizia este Verão o professor Eugenio Mazzarella, estando «isentos dos riscos». Não acreditamos que a circunstância nos é dada pelo Mistério, pelo Senhor do tempo e da história, para reconquistar a verdade, porque não há outra maneira de reconquistar a verdade que já conhecemos, senão através do envolvimento da minha pessoa na Verdade que me chama através das circunstâncias.
Como nos relembra o cardeal Scola na entrevista à Tracce, às vezes prevalece «uma visão estática do homem: pensa-se ainda, com algum intelectualismo ético, que o único problema é aprender a doutrina certa e depois aplicá-la à vida: “A doutrina autêntica, uma vez proclamada, vencerá”. Esta posição, porém, não tem em conta uma coisa: pelo simples facto de ser “atirado” para a vida, o homem encontra-se a fazer uma experiência da qual nascem perguntas, interrogações. A doutrina, que evidentemente, para o cristão, se baseia na experiência originária do seguimento de Cristo proposta com autoridade pelo Magistério, deve ser descoberta como resposta orgânica aos “porquês?” que nascem da experiência. Caso contrário, não chega» («As consequências do puro amor», entrevista com D. Perillo, Tracce, n. 8/2014, p. 31, disponível em revistapassos.pt).
Por isso Dom Giussani nos incita sublinhando que, depois do encontro, «a realidade não é arquivada porque nós já sabemos [e] temos tudo [pelo simples facto de O termos encontrado]. Temos tudo, mas o que é este tudo, nós não o percebemos [apenas] [...] no encontro com as circunstâncias, as pessoas, com os acontecimentos», como nos testemunhou aquela mãe. Ou nós percebemos isto, ou então todos os desafios históricos que temos que enfrentar não terão nada a ver com o nosso caminho, talvez até se tornem mesmo um obstáculo. Dom Giussani, pelo contrário, considera-os preciosos para o nosso caminho. Nós temos tudo, mas não podemos perceber que é este tudo apenas repetindo as definições, apenas aderindo formalmente, mas no encontro com as circunstâncias. Se nós não percebermos que todo o complexo das circunstâncias nos é dado para o nosso amadurecimento, para reconquistar a nossa unidade, nós retiramo-nos desta verificação. «Não é preciso», insiste Dom Giussani, «arquivar nada, [...] nem censurar, esquecer, renegar nada. [Porque] o que quer dizer o tudo que temos, a verdade que temos, [...] o que significa este “tudo”, compreendemo-lo [...] enfrentando as coisas, e por isso através da realidade dos encontros e dos acontecimentos, através do encontro [...] e nos acontecimentos» (L’io rinasce in un incontro. 1986-1987, Bur, Milão 2010, p. 55).

Na Sua companhia, seguros em qualquer lugar
Só assim podemos alcançar aquela certeza que nos permite entrar em tudo, em qualquer periferia, e em vez de nos deixarmos definir pelo medo, sermos determinados pela certeza que Ele gera em nós, porque, como nos dizia ainda o Papa na Mensagem ao Meeting (devemos relê-la todos, esta mensagem!), «o cristão [que vive como tentámos descrever] não tem medo de se descentralizar, de ir às periferias, porque tem o seu centro em Jesus Cristo. Ele liberta-nos do medo [não porque dizemos formalmente “Cristo”, todos sabemos bem que só isto não basta, que não basta um tipo de pertença formal para vencer a miséria, para vencer o medo, mas é preciso uma experiência de Cristo; assim] na sua companhia podemos ir em frente seguros em qualquer lugar, inclusive nos nos momentos obscuros da vida, sabendo que, onde quer que vamos, o Senhor sempre nos precede com a sua graça, e a nossa alegria é partilhar com os outros a boa-nova de que Ele está conosco. Os discípulos de Jesus, após terem cumprido uma missão, voltaram entusiasmados pelos resultados obtidos. Mas Jesus disse-lhes: “Não vos alegreis, porque os espíritos vos obedecem, alegrai-vos antes porque os vossos nomes estão escritos nos Céus” (Lc 10,20-21). Não somos nós que salvamos o mundo, mas só Deus o salva» (Francisco, Mensagem ao Meeting para a amizade entre os povos, 24-30 Agosto 2014).
Só quem está certo do essencial poderá estar disponível para procurar formas e modos para comunicar a verdade encontrada, caso contrário a incomunicabilidade com os outros será absoluta. «Um mundo em tão rápida transformação», continua o Papa, «pede aos cristãos que estejam disponíveis a procurar formas ou modos para comunicar com uma linguagem compreensível a novidade perene do Cristianismo.. [Dom Giussani é um exemplo desta revolução nos modos e nas formas]. Também nisto é preciso ser realistas. “Muitas vezes é melhor diminuir o ritmo, pôr de parte a ansiedade para olhar nos olhos e escutar, ou renunciar às urgências para acompanhar quem ficou caído à beira do caminho” (Evangelii Gaudium, 46)» (ibid.).
«Quantas pessoas», diz ainda o Papa, «nas muitas periferias existenciais dos nossos dias, estão “cansadas e abatidas” e esperam a Igreja, esperam-nos a nós! Como podemos ir ao encontro delas? Como partilhar com elas a experiência da fé, o amor de Deus, o encontro com Jesus? É esta a responsabilidade das nossas comunidades [...]. Diante de tantas exigências pastorais, face a tantos pedidos de homens e mulheres, corremos o risco de nos assustarmos e de nos fecharmos em nós mesmos em atitude de medo e de defesa. E disto surge a tentação da suficiência e do clericalismo, aquele codificar a fé em regras e instruções, como faziam os escribas, os fariseus e os doutores da lei do tempo de Jesus. Teríamos tudo esclarecido, tudo organizado, mas o povo crente em busca continuará a ter fome e sede de Deus» (Francisco, Aos participantes no Encontro promovido pelo Pontifício Conselho para a promoção da nova evangelização, 19 de Setembro de 2014).
Para responder a estes desafios o Papa remete-nos para a modalidade com que o próprio Jesus os enfrentou: sem se assustar nem refugiar-se no medo, Jesus vai ao encontro dos que estão “cansados e abatidos”. O exemplo mais flagrante deste género de pessoas são os publicanos, odiados por todos devido à sua evidente incoerência. A relação de Jesus com eles leva os fariseus e os escribas a murmurar contra Ele: «Este aqui acolhe os pecadores e come com eles». Mas as objecções deles não detêm Jesus. Pelo contrário, Ele defende ainda mais a sua forma de se relacionar com os publicanos com parábolas como a do filho pródigo (Lc 15,11-32), que evidencia o quanto Ele estava consciente do risco que corria com o Seu modo de proceder. O filho pródigo permanecerá para sempre como a imagem de quem, tendo recebido tudo (pai, casa, bens, etc.), não consegue resistir ao fascínio da autonomia: tudo lhe parece um obstáculo à sua ânsia de liberdade sem limites, como vemos em nós e muitas vezes nos nossos concidadãos. Todos podemos imaginar a emoção do pai diante da liberdade do filho. Apesar de tudo, o pai corre o risco da liberdade do filho. Que amor à liberdade do filho, para que ele pudesse reconquistar através da sua própria existência aquilo que já sabia!
E acontece o imprevisto. Precisamente no momento em que o filho está mais perdido, quando para sobreviver se rebaixa a comer bolotas com os porcos, não está ainda tudo perdido. Porquê? Porque precisamente no momento em que menos se esperaria, o filho «cai em si». O filho encontra dentro de si alguma coisa que não se perdeu. Precisamente no momento aparentemente mais obscuro e confuso, emerge o seu coração com as suas evidências e exigências constitutivas. Nem todos os seus erros conseguem apagar a memória da sua casa, do seu pai e do padrão de vida dos seus criados. E isto permite-lhe ajuizar, fazer uma rapidíssima comparação entre a situação precedente e a atual: «Quantos criados do meu pai têm pão em abundância e eu aqui a morrer de fome!» E assim pode recuperar, a partir da sua experiência, aquilo que pensava saber. Dá-se conta das dimensões da sua necessidade e do bem que é ter um pai. Finalmente, compreende onde se encontra a liberdade, descobre que a liberdade é uma ligação, uma casa, um pai; reconhece o bem que significa ter um pai que o abraça de novo e o volta a acolher como filho. O pai, por sua vez, está feliz por ver como a sua paciência em relação à liberdade do seu filho lhe permitiu reencontrá-lo como filho, e está grato e alegre por ter um filho contente por ser seu filho. Ao mesmo tempo, ficará para sempre diante de nós o facto de que alguém que permanece formalmente em casa, como aquele outro filho, não significa necessariamente que tenha entendido o que significa ser filho e ter um pai; podemos, efectivamente, ficar em casa, mas lamentando-nos disso.
Exactamente para defender o seu modo de proceder com aqueles que vivem na periferia do humano, porque a sua ansiosa, impaciente e inquieta sede de liberdade os levou tão longe, Jesus coloca diante dos que o denigrem esta relação do pai com o filho pródigo. Tratando assim os publicanos, que preferiram abandonar a casa do Pai porque era muito apertada para eles, é como se Jesus dissesse aos fariseus: «Eu faço assim, corro o risco e espero-os, porque o meu Pai faz assim». É esta certeza da relação de Jesus com o Pai - «Eu não estou sozinho» - que Lhe é essencial para viver e arriscar até ao fim com aqueles que se afastaram, até lhes permitir descobrir a partir da experiência deles quem são e a Quem pertencem.
Neste momento particularmente desafiador, caracterizado – como dissemos falando da Europa – pelo desmoronar das evidências históricas, através dum trabalho que mata, através de tantos sofrimentos (pensemos ainda no episódio do filho pródigo), diante de tantos contemporâneos nossos que se obstinam em percorrer os caminhos mais estranhos – tal como nos pode acontecer também a nós procurar a satisfação seguindo a nossa imaginação -; podemos compreender como é que o Mistério pode correr o risco da liberdade para lhes fazer descobrir, a eles e a cada um de nós, quem somos verdadeiramente e a que é que somos chamados. A que se confia o Mistério? Ao nosso coração e à Sua presença, que se tornou carne para estar próxima de nós e poder despertar em nós o desejo de voltar a casa, porque é exactamente através de cada dificuldade que podemos descobrir o que é a liberdade.
Nós não fomos escolhidos para sermos retirados da realidade, mas para estarmos ainda mais dentro das situações. Fomos escolhidos para acompanhar quem quer que «tenha ficado na beira do caminho», diz-nos o Papa. E o padre Antonio Spadaro, falando no Meeting, utilizou a imagem da tocha: «a tocha [...] anda onde estão os homens, ilumina aquela porção de humanidade na qual eles se encontram. Se a humanidade caminhar para o abismo, a tocha vai para o abismo [não porque nos queira enviar para lá], isto é, acompanha os homens no seu processo. Obviamente, desta forma talvez os consiga arrancar do abismo, fazendo-os ver. Se tu não estás em caminho com os homens, se estás parado e dizes: “a luz está aqui, nós somos a salvação, e quem não quiser vir que se mate”, pois bem, esta imagem de Igreja não é o “hospital de campanha” de que fala Francisco. É preciso acompanhar os processos culturais e sociais, por mais ambíguos, difíceis e complexos que possam ser» (A. Spadaro em Le periferie dell’umano, de E. Belloni e A. Savorana, a ser publicado pela Bur).
Por isso reconhecer que fomos escolhidos, insistir no essencial, não é para que tudo acabe ali, mas para que daqui tudo tenha início. Ainda na Mensagem ao Meeting, o Papa Francisco convida «a este regresso ao essencial, que é o Evangelho de Jesus Cristo», porque «os cristãos têm o dever de o anunciar, sem excluir ninguém, e não como quem impõe uma nova obrigação, mas como quem partilha uma alegria, indica um horizonte estupendo, oferece um banquete apetecível. A Igreja não cresce por proselitismo mas “por atracção” (Evangelii Gaudium, 14), isto é, “através de um testemunho pessoal, uma história, um gesto, ou outra forma que o próprio Espírito Santo possa suscitar numa circunstância concreta” (ibid., 128)» (Francisco, Mensagem ao Meeting para a amizade entre os povos, 24-30 Agosto 2014).
Esta é a nossa tarefa. Para isto fomos escolhidos, como nos relembra ainda Dom Giussani: «Era o nada, o nada de tudo, mas mais concretamente, o nada de ti e de mim: a palavra “eleição” assinala o limite, o limiar, entre o nada e o ser. O ser floresce, do nada, como escolha, como eleição [nós somos arrancados ao nada porque fomos escolhidos]: não existe outra condição a propôr, não existe outra premissa possível [como dizia o Davide no início]. Esta escolha e esta eleição são a pura liberdade do Mistério de Deus em acção, a liberdade absoluta do Mistério que se expressa» (Generare tracce nella storia del mondo, Rizzoli, Milão 1998, p. 63).
Prossegue Dom Giussani: «O Mistério de Deus, que se expressa como liberdade na escolha ou na eleição, vibra, pode e deve vibrar, com temor e tremor, com humildade absoluta, dentro da preferência humana, porque a preferência humana é a sombra da escolha da liberdade de Deus» (ibidem, pp. 63-64). Deus chama-nos para que nós O comuniquemos a todos. Deus teve esta preferência por nós, para que através de nós o Seu amor chegue a todos. Como disse São Paulo: Deus escolheu-me para poder mostrar na minha pessoa aquilo que queria dar a todos. Por isso nesta preferência humana de Deus vibra toda a Sua paixão por cada homem. E por isso a nossa primeira preferência é em relação a quem me escolheu. É por essa razão que repetimos tantas vezes a palavra «gratidão». Reconhecer a grande preferência de Cristo por nós é reconhecer com gratidão este lugar que constantemente me é dado. Mas para poder compreender profundamente todas as tarefas que estão contidas nesta preferência, é preciso antes de mais reconhecer que a nossa primeira resposta é Àquele que nos prefere assim, é darmo-nos conta de termos sido escolhidos por Ele. Só agora compreendo que a «escolha da liberdade de Deus, que escolhe Um, escondido como uma pequena flor invisível no seio de Nossa Senhora, é para toda a gente [por isso não é Igreja, diz o Papa, se não sair. A Presença que levamos connosco é para toda a gente: para toda a gente, não para o círculo que nós decidimos, escolhendo quem é adequado ou não]. Por isso não existe no homem reflexo humilde, pleno de temor e tremor, de preferência, se não para o amor ao mundo, para o benefício a levar ao mundo, pela paixão pelo mundo. E é admirável este paradoxo supremo da preferência que escolhe e elege para abraçar o mundo, para arrastar o mundo consigo. A escolha e a eleição, na concretização da preferência, coincidem com um amor que se fixa em cada realidade viva, em cada homem vivo, em cada carne» (ibidem, p. 64). A preferência do Mistério permite-nos olhar para tudo, até para a situação mais dramática, com um «olhar risonho», como disse o padre Pizzaballa no Meeting (cf. Le periferie dell’umano, op. cit.).
Mas quem é que pode dizer isto? Quem é que pode preferir assim? Quem é que pode amar assim? Quem é que pode amar assim cada carne? Eu só posso preferir se me dou conta de que fui e sou preferido, se vivo desta preferência, se esta preferência me torna tão transbordante que se torna contagiosa, me torna capaz de preferir todos, de arrastar outros. É assim que podemos arriscar, porque quem não arrisca não poderá reconquistar tudo isto hoje e alcançar aquela unidade de vida que todos desejamos.