Os Irmãos Karamázov

Para que este homem não decaia numa caricatura de si mesmo, Aleksei apela à memória e pede aos seus amigos que se lembrem, ao longo da vida, de um só momento que seja em que foram bons, fiéis a si mesmos.

Os irmãos Karamázov, último romance de Dostoiévski, conta-nos a história de um pai, Fiódor Pávlovitch Karamázov, e de seus três filhos: Dmítri (Mítia), fruto do seu primeiro casamento, Ivan e Aleksei (Aliocha), do seu segundo casamento. Privados, por razões diferentes, da companhia das mães quando muito novos, estes irmãos também cresceram longe do pai, homem egoísta, ganancioso e depravado, que, por mero desinteresse, os entregou aos cuidados de Grigóri, seu criado. Mais tarde, foram educados por benfeitores, tendo-se reencontrado com o pai quando já homens.
A falta de paternidade explica o desregramento em que degenera o temperamento apaixonado e inquieto de Dmítri, bem como o niilismo filosófico de Ivan, radicado na experiência que ele faz da incapacidade de amar os próximos como ama os longínquos, a qual o leva a concluir que o amor não é uma lei da natureza, mas apenas uma virtude que decorre da fé na imortalidade.
Dostoiévski eleva-se acima da análise das consequências psicológicas da orfandade e perscruta o fundo da alma humana, a sua estrutura original, mostrando que a orfandade verdadeiramente demolidora é a dos que recusam a sua filiação divina. Por este motivo, o drama de Ivan é muito mais profundo do que o do seu irmão mais velho. Ele nega Deus porque não quer aceitar o desafio da liberdade e acusa Cristo por ter querido ser amado livremente pelo homem. Em vez da lei antiga, Cristo oferece a Sua imagem ao homem para que este nela se reconheça, deixando o homem desamparado diante da escolha de O aceitar ou não como o seu maior bem.
Dmítri, pelo contrário, bendiz a liberdade apesar de saber que ela é torturante, já que o homem pode adulterar o seu desejo de beleza trocando o ideal da Madona pelo de Sodoma . Dmítri tem a consciência de que, sem Deus, o homem não é virtuoso porque não tem a quem amar. Colocando o amor a Deus na origem da virtude, Dmítri recusa a visão ética que Ivan tinha da mesma e define-a como a procura tenaz do bem que atrai o homem. Dmítri encarna o drama do homem decaído, que reconhece em Deus o bem que deseja e vive dilacerado de remorsos por não lhe ser fiel. Por isso, aceita a expiação do sofrimento como caminho de redenção.
Aleksei é, dos três irmãos, aquele que teve um pai, o monge Zóssima, em cuja companhia fortaleceu a sua certeza de que «há muito amor na humanidade, quase semelhante ao amor de Cristo» . Aleksei aprendeu com o padre Paíssi que todos os homens, crentes ou não, têm estampada em si a imagem de Cristo. Por esta razão, contraria o seu pai, dizendo-lhe que ele não é mau mas apenas um «homem desfigurado» . Sendo o protagonista desta obra, Aleksei é, contudo, o mais discreto e silencioso, o que menos sentencia, precisamente porque encarna a serenidade dos que têm a certeza de que a misericórdia divina é infinita e não será nunca esgotada pelos pecados humanos.
As personagens deste romance são a corporização do homem desfigurado que, feito à imagem de Deus, tem um desejo muito maior do que aquilo que consegue realizar. Nelas vibra um amor exacerbado que facilmente decai num ódio violento por não encontrar correspondência, um desejo de beleza que se deteriora num êxtase de volúpia, um alto sentido de honra que logo se desvirtua em orgulho ferido. Para que este homem não decaia numa caricatura de si mesmo, Aleksei apela à memória e pede aos seus amigos que se lembrem, ao longo da vida, de um só momento que seja em que foram bons, fiéis a si mesmos.

Os irmãos Karamázov
Editorial Presença, Colecção Obras de Fiódor Dostoiévski
P.V.P. 17,90 €