UMA EUROPA QUE NÃO SE CONTENTA COM «VALORES»...

Rémi Brague, especialista em filosofia medieval, em particular judaico-árabe, comenta o manifesto «É possível um novo início?», e os apontamentos da intervenção do Padre Julián Carrón.
Silvio Guerra

1) Quais são os elementos que lhe parecem « essenciais » nos dois documentos para « um novo início »?
Gostei particularmente que o padre Carrón tenha relembrado que defender os «valores» é uma tarefa necessária, claro, mas subordinada à «comunicação da novidade de Cristo» e ao «testemunho da sua humanidade». E não é só porque este apelo se encontra numa passagem em que ele faz a honra de me citar… Mas acima de tudo porque o «falar de valores» que invade o discurso cristão, ainda que tenha sido posto na moda pelo anticristo Nietzsche, induz à ideia de que o bem e o mal são avaliações feitas pela subjectividade humana.
Fiquei também feliz por ver que o princípio da subsidiariedade é colocado em lugar de honra. Parece-me que ele ocupa um lugar central, não apenas na doutrina social da Igreja, mas também no próprio funcionamento da economia cristã da salvação.

2) Em que sentido, na sua opinião, o impasse na construção da Europa, a que assistimos há alguns anos, constitui um novo «desafio», uma nova ocasião «para recomeçar, para reconstruirmos a nossa vida em conjunto» ?
Um impasse, aquilo a que os gregos chamavam uma aporia, obriga sempre à procura duma saída. Andar em frente é muito bonito, mas se estamos presos num impasse, o mais inteligente é começar por fazer marcha-atrás e regressar ao ponto onde nos enganámos no caminho. É isto que não entendem as pessoas que estão sempre prontas a rotular-nos como «reaccionários» ou «retrógrados».
No caso da construção europeia, não tenho nenhuma receita miraculosa. Mas espero que as dificuldades que ela conhece actualmente levem a uma reflexão mais aprofundada sobre os fundamentos.

3) Depois da mobilização, o ano passado, em torno da lei «Casamento para todos», vivemos numa espécie de “frémito político”. Há um despertar das consciências, em particular em direcção a um envolvimento político: reinvestir no espaço político. O documento, sem negligenciar este aspecto, parece afirmar, em primeiro lugar, que qualquer envolvimento começa por “uma mudança do coração do homem” e por “uma tomada de consciência de nós mesmos e do objectivo”. Qual é a sua análise ?
Os cristãos têm muitas vezes medo da política. Não apenas do envolvimento político, mas desde logo, do raciocínio político. A política implica sempre antagonismos, conflitos de interesse, visões do mundo inconciliáveis. Muitos cristãos interpretam mal a injunção de amar os nossos inimigos como a nós mesmos, se ela significar a recusa de termos inimigos. Ora, em boa lógica, é preciso ter inimigos para os poder amar. Não é fazer inimigos, como se precisássemos disso, já há que cheguem assim mesmo! Mas reconhecer que nem toda a gente gosta de nós e, mais difícil ainda, que isso pode ser por boas razões.
É verdade que a política mancha muitas vezes aqueles que se envolvem nela. A corrupção é às vezes desejada enquanto tal. Assim, explicaram-me, acontece que os mais velhos no métier tentam fazer maldades aos novos, mesmo quando partem de intenções generosas. Comprometê-los é uma forma de ter mão neles, de os prender.
A experiência demonstra, no entanto, que é possível ser-se político e um santo homem ao mesmo tempo. Existem mesmo homens políticos cujo processo de beatificação está em curso, e pode bem ter um desfecho feliz. Em França, temos Robert Schuman e Edmond Michelet.

4) A Europa é vista como uma espécie de “mecanismo tecnocrático”, uma “máquina” que “promete um mundo melhor”. Como é que esta reconquista poderá mudar as decisões políticas?
Eu também estou chocado com a proliferação de direitos pretendidos, que se apresentam a maior parte das vezes como «direitos a…» alguma coisa. Isto começou talvez a partir de 1848 com o «direito ao trabalho», mas a vaga engrossou em seguida para derrubar todas as barreiras. Um direito corresponde sempre a um dever. Se eu tenho direito a alguma coisa, isso quer dizer que alguém tem o dever de ma dar. Mas quem, concretamente? O direito ao trabalho já é bastante problemático: um empregador tem o dever de me contratar se o seu livro de encomendas estiver vazio? Noutros casos, a instância que me deve satisfazer é nebulosa, como em relação ao «direito à felicidade». Sem falar dos conflitos: se uma mulher tem «direito» ao aborto, o médico perde o seu direito à objecção de consciência? Aquilo que eu receio, é que a reivindicação de todos estes direitos fabrique um monstro impessoal e todo-poderoso encarregado de os satisfazer, um Estado totalitário (ainda que em versão soft) guardião dum Mercado também ele todo-poderoso. O desejo de liberdade conduziria assim à servidão.