A PAZ DO ALAIN

Os meios de comunicação social rotularam-no como um «conflito religioso». A história dum convento transformado em campo de refugiados, que explica melhor o que acontece do que qualquer análise
Alessandra Stoppa

O padre Federico chegou apenas há três meses ao Carmelo de Bangui, na periferia da capital. Do claustro do convento, que devia ser uma fábrica de óleo, olha para as plantações de palma e pensa no padre Anastasio e no seu amor pelas árvores teak. Foi ele que, nos anos noventa, comprou este pedaço de floresta transformando-o em jardim e viveiro. Plantava e repetia: «Serão todas úteis daqui a quarenta anos». Até antes.
A história do convento de carmelitas descalços que se transformou num campo de refugiados começa na manhã do dia 5 de Dezembro, quando, de longe, surge o som de disparos e de gritos. O padre Federico abandona o pequeno-almoço e precipita-se para abrir a porta do Carmelo. Para nunca mais a fechar. Deixa entrar homens, mulheres, crianças, muitos jovens, cristãos e muçulmanos, famílias inteiras que chegam a correr vindas dos bairros e das aldeias. Não sabe o que está a acontecer. Só depois compreenderá que as tensões, que foram crescendo durante meses, tinham degenerado de repente. Desde aquela manhã que a República Centro-Africana vive uma das três maiores crises humanitárias dos nossos dias, juntamente com a Síria e o sul do Sudão, mas esta é a mais esquecida. São já mais de 600 mil os desalojados, duas mil as vítimas confirmadas e um milhão e meio de pessoas sem comida.

OS FACTOS. A crise no país rebentou no dia 24 de Março de 2013, quando o golpe de Michel Djotodia obrigou à fuga do presidente François Bozizé, destruiu o sistema administrativo e económico e deixou o país nas mãos da coligação armada dos Séléka; bandos sem controlo de mercenários da Ciad e do sul do Sudão, jovens desempregados, desesperados e bem armados. Violências, saques, homicídios, aldeias inteiras queimadas. «Numa palavra, destruíram a vida da nação», escrevem os Bispos do país, que denunciaram igualmente a reacção popular: a fúria dos esquadrões de autodefesa “anti-Balaka” (Balaka significa machete), que se armaram para se vingarem. Os meios de comunicação social ocidentais apressaram-se a etiquetar o assunto como «um confronto entre rebeldes muçulmanos e a maioria cristã». Mas a vida destes meses no Carmelo faz-nos perceber que estão a acontecer coisas que vão muito além das nossas suposições erradas.
Na noite daquele primeiro dia, no pátio entre a igreja e o refeitório, encontram refúgio duzentas pessoas e os doze frades, entre padres e noviços, procuram dar uma refeição quente a todas. «Penso que durante alguns dias será mais prudente não irem à escola», escreve o padre Federico na manhã seguinte. Não podia imaginar então que, no Natal, os refugiados seriam dez mil. Pouco depois, quinze mil. E que ainda hoje os teriam a todos com eles. Mas uma coisa tinha ficado logo bem clara: «Estes hóspedes são um bem que não queremos desperdiçar».
Percebe-se bem quem é o padre Federico Trinchero através dum pequeno pormenor. No final da primeira semana, tem que dar o número dos refugiados para fazer o pedido de ajuda alimentar. Põe-se a contá-los. Mas sem se fazer notar: não quer que ninguém pense que não tem lugar.

MON PÈRE. Piemontês, eleito abade aos 35 anos para formar os noviços, sonhava com um doutoramento em Patologia e encontra-se com um diploma honoris causa em Gestão e à frente dum campo de refugiados, que lhe foi confiado pelo Alto Comissariado da ONU. «A vida reserva-nos sempre belas surpresas», diz convicto. Não perdeu a simplicidade do coração nesta guerra permanente. Fala-nos o choque dos assaltos, da falta de alimentos, das mães concentradas em consolar as crianças e dos homens a construir cabanas com os teak e os ramos de palmeira do padre Anastasio. Através da nunciatura, para onde telefona a pedir ajuda, descobre que as outras comunidades religiosas estão a vier na mesma situação. Depois surgem os sons dos primeiros caças que atravessam o céu e as pessoas que aplaudem e choram.
Mas não será a chegada dos franceses, nem do novo presidente eleito a 20 de Janeiro, uma mulher (Catherine Samba-Panza), a trazer a esperança de viver. É outra coisa que leva o Alain, um refugiado de 19 anos, a deter o padre Federico depois de meses de acolhimento: «Tenho que lhe falar. Mon père, quero ser como o senhor». A hipótese da vocação nascida como uma flor de graça na guerra. «Posso ter também o vosso livro?». Ou seja, o breviário. «Quando rezam, eu só consigo dizer dans les siècles des siècles...». E depois do Alain, apareceu também o John… «É um milagre quando um jovem manifesta o desejo de se consagrar a Deus», diz o padre Federico: «Mas o discernimento é uma coisa difícil em todas as latitudes, mais ainda por estes lados». Abrevia: «A vocação deles está agora nas mãos de Deus e das vossas orações». Mas o que é que viram estes jovens? «No meio do inferno, o Carmelo é um lugar de beleza. De racionalidade. Onde quem é mais pobre, mais frágil, mais pequeno, é mais importante. Estamos a perceber cada vez melhor que só Jesus salva o homem. E este povo precisa do Evangelho. Nós, apesar de sermos uns pobres pecadores, somos uma presença de paz. Sem Cristo, eles aqui ter-se-iam comido uns aos outros».
A Igreja não chegou mais depressa do que os outros, a questão é que já lá estava e não se foi embora. «Quase nem se deu conta de que ficou». Este ficar é tudo, e foi «a única coisa que fizemos», como diz a irmã Letizia, clarissa em Bouar: «É aquilo que o Senhor faz: fica connosco. Assim é possível viver em paz numa situação que só dá vontade de chorar». Além das ONG, só ficaram lá quase unicamente os religiosos católicos. Paróquias, conventos e missões transformaram-se em campos de refugiados abertos, como o Carmelo. De dia, os homens tentam voltar aos seus bairros e aldeias, mas voltam para trás. Hoje em dia, a reacção dos anti-Balaka provocou mais mortos e o êxodo dos muçulmanos, que partiram em direcção às fronteiras em autocarros a abarrotar. «Fugiram também, os nossos queridíssimos amigos», diz o padre Federico: «Consola-me saber que milhares de muçulmanos encontraram refúgio na presença da Igreja espalhada pelo país. Salvando assim as suas vidas».
No Carmelo, o número de «hóspedes» cresceu juntamente com a intensidade dos confrontos. As horas são preenchidas por rostos, choros, sacos de milho, lama, paracetamol. Mas todos os dias, pelas sete da noite, aconteça o que acontecer, há a missa. «Na catedral de palmeiras e céu». O Santíssimo atravessa o campo dos refugiados. «É uma procissão surreal. Mas caminho e agradeço no meu coração estas pessoas que nos estão a obrigar a viver o Evangelho».
Um dia, os disparos estão mais perto e o padre Federico tem dúvidas em continuar a celebração. Depois olha para a assembleia, composta. A cada tiro, há um sobressalto colectivo, mas ninguém se mexe. «Penso: a Eucaristia é a nossa única salvação. E entretanto vejo chegar multidões, em pânico, com os sacos à cabeça. Que desafio, aquela Eucaristia desamparada no meio da guerra!». No fim da missa, olha à sua volta: as pessoas triplicaram. «Inicialmente, fomos tomados pelo desânimo. Mas depois repensámos em tudo o que vivemos até aquele momento e no milagre da multiplicação dos pães. Então, recomeçámos».

DO FÉLIX AO LÉONCE. Pátio, casinhotos e igreja já não chegam. Os frades abrem outra ala do convento, o atelier e a garagem, afastando os reboques e os tractores. O refeitório transforma-se em dormitório, um dos parlatórios em ambulatório, outro em depósito de víveres, enquanto a sala do capítulo é para os doentes em observação. A sala de refeições passa para o corredor das celas e os frades reúnem-se quando e onde conseguem, «nem que seja só para pediremos perdão uns aos outros: com a tensão, podem existir mal-entendidos».
Para o padre Trinchero, a certeza destes meses passou também para o coração dos seus irmãos, que se deram com paciência e sem hesitações. «Todos os dias me comovo com a sua docilidade». Com tudo aquilo que vê, e com aquilo que não vê, que encontra já feito e não sabe por quem. A presença constante do padre Matteo e do padre Mesmin, a dedicação dos noviços e aspirantes: o Felix, agora um óptimo enfermeiro; o Jeannot, o Martial e o Salvador, que acompanham os refugiados; o Rodrigue, o Christo e o Michael, que tratam da água, da electricidade e dos alimentos. O Bejamin, às voltas com a recolha do lixo e o Léonce, o mais novo, que não tira as botas nem sequer para comer. Limpa e desinfecta: ruandês, nasceu num campo de refugiados no Congo, quando a sua família fugia do genocídio.
A equipa dos Médicos sem Fronteira holandesa que visita o Carmelo fica espantada: «Não podemos fazer mais nada para além do que já estão a fazer». Nasceram cerca de trinta crianças nos claustros, onde hoje se encontram mais de 10 mil pessoas. 40%, com menos de 15 anos. Os frades puseram de pé uma escola de emergência, porque as escolas oficiais ainda estão quase todas fechadas. «Impedir a educação, isso é que é verdadeiramente matar», diz o padre Federico.
Entretanto, o Conselho de Segurança da ONU decidiu o envio dum novo contingente peacekeeping, de 12 mil homens. «Os franceses estão aqui há meses, e não se percebe verdadeiramente o que fazem. Quando acontece alguma coisa nos bairros, eles intervêm, mas tarde». Tinham prometido o desarmamento, mas na zona do km5, de maioria muçulmana, não se entra nem se sai. Todos dizem que está cheia de armas. Em muitos bairros, há ainda tiros e na Sexta-feira santa foi morto um sacerdote católico.

QUATRO HIPÓTESES. Não saber a duração do conflito colocou os frades diante duma escolha. «Havia quatro hipóteses: 1) mandar todos para casa; 2) irmo-nos nós embora e deixar-lhes o convento; 3) esperar que tudo acabasse; 4) sermos frades num convento com uma campo de refugiados em anexo». As duas primeiras, nunca as puseram seriamente em consideração, a não ser nos momentos de cansaço. A terceira foi afastada, porque «não se pode adiar o desejo louco da nossa vocação». A quarta foi votada por unanimidade. Retomaram as horas de oração previstas pela regra: «Os refugiados percebem que é o coração da nossa vida e não nos perturbam». Reencontraram os seus espaços, construindo-os no exterior; já não vão para a cama vestidos, ainda que estejam sempre prontos para se levantarem. E os seis estudantes voltaram às aulas de Filosofia e Teologia, sem roubar tempo ao tractor e à distribuição de arroz e feijão.
Agora começa a estação das chuvas, que tornará tudo mais difícil. «Mas o Senhor salva-nos. Experimentamo-lo continuamente». Silêncio. «Ainda estamos vivos. E depois, concede-nos uma grande graça: poder viver e sofrer com eles».