A MINHA RAZÓN
Fomos conhecer o argentino Victor Heredia, autor de Ojos de cielo, para descobrir como nasceram estes versos cheios de dor e de esperançaOs seus olhos, pequenos e escuros, escancaram-se e iluminam-se quando se fala de esperança. Tem 67 anos, cinco filhos e um neto. É o argentino Victor Heredia, autor de mais de 300 canções, entre as quais Razón de vivir e Ojos de cielo, que o padre Julián Carrón, sucessor de Luigi Giussani, comentou nos últimos Exercícios Espirituais da Fraternidade. Falámos sobre si e sobre estas canções no escritório do seu agente no centro de Buenos Aires. Mas é um local que Victor frequenta muito pouco. Vive em Pilar, a uns sessenta quilómetros da caótica capital argentina, com a sua segunda mulher a fotógrafa Marisa Bolzoni: os olhos e o coração que inspiraram muitas das mais belas canções de Victor são seus. Com ela teve dois filhos.
Heredia conta-nos que soube da existência de Comunhão e Libertação quando, há cinco anos, lhe disseram que uma rapariga de Florença, Caterina Socci, tinha gravado Ojos de cielo. Queria saber como é que ela se tinha deparado com esta canção, e tinha contactado a sua família por mail. É uma relação epistolar que dura até hoje. «Veja que coisa: há alguns anos, sem saber que isto depois iria acontecer, já tinha entrado em contacto com Antonio Socci, que sei que está ligado ao CL… Fico surpreendido com o vosso interesse. Quantas pessoas em quantos países cantam esta canção?», pergunta curioso Heredia, poeta atento a tudo.
Razón de vivir saiu em 1984. Porque é que a escreveu?
É uma canção de pura gratidão, porque eu acredito que ninguém pode realizar a sua tarefa no mundo, na vida, sozinho; é sempre precisa uma companhia, não há dúvidas sobre isso. E esta companhia é-te dada quando encontras alguém que te sustenta, te apoia. Esta canção é dedicada a uma mulher, a minha companheira. Mas podemos alargar o discurso a tudo o que fazemos na vida: temos sempre necessidade de encontrar alguém em quem nos apoiarmos, que nos conduza.
A canção fala duma presença que torna possível viver e exprime o desejo de poder estar com o outro «sem perder o anjo da saudade»; parece aludir a alguma coisa que não é apenas este “outro”…
É que uma pessoa não se apaixona apenas pelo físico. Este é o ponto. A canção fala disto. De quando se estabalece uma comunhão que libertta. Quando dois espíritos podem caminhar unidos vai-se muito mais além do que o puro aspecto físico. É um facto que enriquece muito poder exprimir qualquer coisa a duas ou mais pessoas; quando uma pessoa tem um pensamento semelhante ao de outro ou de muitos outros e este pensamento com o tempo aumenta, cresce. Dum certo ponto de vista, há qualquer coisa de salvífico nisto, quando acontece. Uma relação assim é excepcional e é preciso fazer seja o que for para a preservar.
Diante da beleza, em geral queremos possuí-la: depois, porém, deparamo-nos dentro dela com uma saudade, com qualquer coisa de misterioso.
Sim, às vezes na posse esquecemo-nos da própria beleza; mas quando, para dar um exemplo banal, estamos longe e sentimos a sua falta, volta-se a ter necessidade dela. Mas como é belo ter necessidade de alguém depois da posse, continuar a ter necessidade desta proximidade!
É como uma fonte inesgotável.
Sim, porque não estamos a falar apenas dum encontro físico, mas duma necessidade espiritual, de uma comunhão espiritual entre duas pessoas.
E Ojos de cielo, em que circunstâncias a escreveu?
Foi a mesma coisa. Também esta canção tem uma destinatária: Marisa, a minha mulher. Se uma pessoa se fecha naquilo que pode fazer sozinha, não irá longe. Precisamos de alguma coisa que nos sustente, que nos acompanhe. E que, quando caímos, nos lembre a necessidade de não perdermos de vista as coisas pelas quais lutámos toda a vida. Mas no fundo, isto são explicações que um artista não devia dar, porque o que explica uma canção são muitas outras coisas. Caterina, por exemplo, encontrou um sentido muito especial em Ojos de cielo. E seguramente acontece o mesmo com vocês.
Sim, ao comentar estas canções o padre Carrón observa que não são sentimentais, mas que descrevem uma realidade: sem a possibilidade de encontrar uns olhos assim, uma relação assim, seremos incapazes de olhar bem para a realidade…
É exactamente isso o que eu estava a dizer. Nós não mantemos apenas uma relação física com uma pessoa: quando acontece é maravilhoso, mas aquilo que une definitivamente dois seres é outra coisa, é o espírito. E esta sensação de poder encontrar no outro o nosso guia, o apoio, a verdade e ajuda de que precisamos para sustentar o nosso caminho.
Carrón diz que foi com Cristo que entraram na história estes «olhos de céu», capazes de sustentar a vida.
Quando a escrevi não estava a pensar na Virgem, como a Caterina. Mas não está errado. É inevitável que alguém tenha pensado isso; eu posso ter escrito a canção para alguém, mas há nela qualquer coisa que excede esta intenção. Quando uma pessoa escreve uma canção, é como uma antena que capta e retransmite alguma coisa. E esta “alguma coisa”, às vezes… aliás, a maior parte das vezes, acaba por nos superar. Se o outro não lhe dá um sentido, a canção fica incompleta. Eu não existo sozinho. De facto, na canção falo de duas pessoas: e estas duas pessoas podem também ser quatro, oito ou mil… Mas ninguém existe sozinho. Em cada pessoa há uma profundidade, uma espiritualidade, e é isto que a vida, tantas vezes, nos impele a partilhar com os outros. Às vezes acontece, outras não.
Quando escreveu Mi madre y Maria, no entanto, estava a pensar na Virgem...
Sim, escrevi esta canção porque Mercedes Sosa (a grande cantora argentina, nr.) mo pediu, para a cantar no Vaticano em 1994. Tinha que falar da tragédia das Mães da Praça de Maio. É um assunto que eu conheço pessoalmente, porque entre os desaparecidos estava também a minha irmã Maria Cristina. Não foi difícil, portanto…
Surpreende-se com aquilo que escreve? Uma canção é mais fruto de uma surpresa ou do trabalho sobre uma ideia?
Razón de vivir surpreendeu-me imenso. E também outras canções, como o El viejo Matías. Outras, pelo contrário, como Ojos de cielo, mesmo quando não foram feitas de propósito, seguindo um projecto, surpreendem-me menos porque têm em si uma intencionalidade mais vincada. Mas Razón de vivir surgiu precisamente assim.
Como que de dentro, das entranhas...
Exacto. Foi algo de visceral.
Don Giussani diz que o génio do poeta é a capacidade de exprimir a coincidência entre sinal e mistério. O sinal a que se refere a poesia remete para o outro, para um mistério insondável.
É exactamente assim. Eu, por exemplo, fico muito admirado quando me dizem que algumas das minhas canções ajudam a tratar doentes psiquiátricos. Não sei como isso é possível. Por isso digo que as canções às vezes superam a intenção de quem as escreve e acabam por estabelecer-se noutro lugar absolutamente misterioso, insondável. Porque palavra que uma pessoa leva não é a que inventa, mas a já inventada: uma pessoa usa-a e ela leva consigo um sentimento e uma espiritualidade que não se conseguem medir, que vão para além de nós mesmos. A palavra não é só o que nos distingue como seres humanos, mas também aquilo que nos lança para o universo. E Cristo foi o portador mais concreto desta palavra: de alguma forma, foi poético em tudo aquilo que dizia. Por isso foi tão misteriosamente seguido e acreditado e, ao mesmo tempo, tão misteriosamente insondável.
É um homem de fé?
Creio em Cristo homem. Vanglorio-me de acreditar pelo menos nisso, mas afinal de contas acho que a minha fé vai um bocadinho para além disso. Aqueles que, como eu, têm uma visão diferente das palavras de Cristo e não crêem na sua Ressurreição, nem por isso deixam de acreditar n’Ele…
O que pensa do Papa Francisco? Conhecia o Cardeal Bergoglio?
Não, nunca o conheci. Mas creio que Francisco não é Francisco: somo-lo um pouco todos nós. Ele não é uma invenção extemporânea, mas o resultado duma série de factores que têm a ver connosco. Mas toca-me muito tudo aquilo que ele diz. E creio também que ele está consciente do facto de que a sua palavra a sua proposta implicam a necessidade de que um continente inteiro, o sul-americano, seja reconhecido como fazendo parte do mundo. Tudo aquilo que faz demonstra uma humildade que reconheço em muitos pastores.
Como foi a sua relação com Mercedes Sosa?
A Mercedes tinha uma visão forte deste mistério insondável de que estamos a falar. Era como uma professora. Ensinava-me coisas que estavam escritas nos meus textos e de que eu nem sequer me tinha apercebido. Dava-lhes sentido. Ela era marxista. O marxismo é suposto ser materialismo dialéctico, mas a Mercedes era muito crente. Esta história do materialismo para nós nunca foi uma questão muito séria. Aquilo que nos importava naquela época era que havia um partido que, de alguma forma, se interessava pelo povo, e nós neste sentido sentíamo-nos representados. De resto, cada uma via as coisas à sua maneira. E a Mercedes tinha escolhido o catolicismo.
Entre nós, cantamos também canções de um outro cantor e autor argentino, Peteco Carabajal. É seu amigo?
Sim, escrevemos coisas juntos. Nunca lhe vou perdoar ter escrito uma canção que queria ter sido eu a escrever: Como pájaros en el aire. Invejo-lha! Digo-lhe sempre que me roubou uma ideia que eu não tive, mas que queria ter tido…
Na sua obra, recorre muitas vezes ao grito da esperança. De onde nasce esta esperança e que coisa a sustém?
Diria que a esperança nasce da força de todos os que me precederam e se sacrificaram para que eu, hoje, possa viver numa democracia como a Argentina, ou para que pudesse existir algum traço de unidade num Continente que sempre esteve unido apenas pela tragédia. Esta esperança é uma coisa maior do que eu, nasce deles todos. Mas uma pessoa não se pode desencorajar com o futuro dizendo que este não existirá, ou seja, sendo pessimista. Seria um hipócrita.
Diz, numa canção, que o futuro é como uma criança que tem que crescer; mas como é que a dor não destrói esta criança?
O facto é que a dor existe, mas a sua existência confirma a esperança, porque sem esta dor não teríamos a consciência do que procurar. Aquilo que uma pessoa procura através do trabalho, ou das tentativas de mudar as coisas que não estão bem, é a felicidade. E pode-se mudar partindo do facto de ter conhecido esta dor, do facto de tê-la sofrido, e de ter reconhecido o sofrimento no outro. Porque temos sempre necessidade de um outro.
A solidão é o inferno.
Sim, o único momento em que temos uma percepção do que é o inferno é quando estamos sós, quando não temos ninguém à nossa volta, quando não temos ninguém que nos dê esperança.
Viveu isso, no seu exílio?
É uma espécie de desânimo. Via-o reflectido também nos grandes: Horacio Guarany, Héctor Alterio, a própria Mercedes Sosa. Via-os sofrer muito. Disso nunca me esquecerei. Eu era muito novo, e essa juventude salvou-me de tristezas mais profundas: podia pensar que tudo iria passar e que poderia continuar a fazer outra coisa.
Mas também podia ter-se tornado céptico e niilista…
Sim. Mas não foi assim, foi o contrário.