ONDE ESTIVER A BELEZA, TU ESTÁS LÁ

A 23 de Abril de 1564, nascia o grande dramaturgo. Das obras mais conhecidas aos sonetos, qual é a tensão que agita os seus textos e os torna tão actuais?
Fabrizio Sinisi

Se é verdade, por um lado, aquilo que escreve o grande anglófono Agostinho Lombardo, ou seja, que em Shakespeare «nunca há heróis, mas apenas homens», é também verdade que não existe o homem, em Shakespeare, sem que para o constituir como tal haja uma pergunta sobre o homem. O homem de Shakespeare é um homem porque carrega consigo o drama desta pergunta iniludível: o que é o homem? O que sou eu? E as suas personagens maiores consistem precisamente nesta pergunta, personificam-na: o homem shakespeariano joga-se como inesgotável descoberta do eu.
Um eu que se descobre não como objecto de reflexão, mas como lugar de uma relação: «O olho só se vê a si mesmo através do reflexo» (Júlio César). É na relação com um outro que o eu se descobre a si mesmo: numa incansável abertura à novidade. Numa abertura que, dançando com uma mulher, faz dizer a um rei, um homem que sempre teve tudo sem dificuldades: «Oh beleza, até agora nunca te conheci» (Cimbelino); numa abertura que leva o Antífolo d’A Comédia dos erros a dizer, única certeza num mar de confusões: «És de mim a melhor parte, a pupila do meu olho, o coração do meu coração, o meu alimento, a minha sorte, a minha esperança»; que faz dizer a Florizel no Conto do Inverno: «Eu não posso ser meu, nem nada para ninguém, se não for teu. Serei fiel a isto».

SEM DESEJO NÃO HÁ PESSOA. E é a mesma abertura que encontramos nos Sonetos, todos interpelando um Tu amado ao ponto de, fora daquela relação, não existir outra plena concepção de si, não existir uma compreensão da nossa própria estatura: «Eu tomo dos teus olhos a minha a minha ciência, estrelas estáveis nas quais vejo o mistério: ou tu arrancarás de ti uma descendência, fazendo reflorir o belo e o verdadeiro, ou eu prevejo que terminará contigo toda a Beleza e Verdade»; «Por ti contra mim quero lutar»; num diálogo tão profundo que faz um homem dizer que «onde quer que esteja a beleza, tu estás lá».
A história de um homem é sempre a história de um desejo: não há um único texto de Shakespeare que não confirme isto.
Até a desenfreada sede de poder que leva tantas das suas personagens à ruína não é mais do que o sinal de um desconforto na paz, duma perene insatisfação no permanecer nos limites da nossa situação inicial: uma inquietação da qual Shakespeare nos mostra a grandeza mas, sobretudo, as perversões. Pensemos em Ricardo III, nascido aleijado e feio, que surpreende precisamente nos seus defeitos a ocasião de uma fome: uma fome incontrolável e má, mas também ela expressão dum desejo dramático. E aqui dramático é entendido também e sobretudo no seu sentido teatral de “acção”: para Shakespeare, o drama humano coincide com o seu sinónimo cénico, uma experiência que se revela não na explicação dos próprios conceitos, mas no encadeamento das relações, no acontecimento duma liberdade. Ricardo nunca está totalmente comprometido; de vez em quando, tem que escolher.

PODER SEPARADOR. A ambição, para Shakespeare, não é mais do que um rosto do desejo, não um defeito em si, mas a abertura de um espaço. Os trágicos ambiciosos shakespearianos não são maus tanto por terem desejado a grandeza, mas porque se submeteram a um medida inadequada para a obterem: entenderam mal a natureza do próprio desejo. De facto, Ricardo dirá: «Não terei senão desespero! Não há criatura que me ame, e se morrer, nem uma alma terá piedade de mim. E porque haveria de ter, quando nem eu encontro em mim piedade para mim mesmo?». Se, por um lado, o desejo mal entendido cai sempre sobre nós mesmos: «Nada se obteve e tudo se desperdiçou se o nosso desejo foi obtido sem alegria» (Macbeth), o mesmo desejo, bem interpretado, pode florescer numa pergunta e numa esperança maiores até do que o próprio sentir: «Que poder impele tão para o alto o meu amor, excita os meus olhos, mas não os sacia? (...) Seriam impossíveis tarefas ousadas para quem misturasse a dificuldade com o cálculo e acreditasse que aquilo que foi não pode voltar a ser». (Tudo está bem quando acaba bem).
Ali, onde o homem consiste num desejo que se revela na relação com o outro, a acção do poder é sempre a de separar o homem do seu próprio desejo, o indivíduo do general, como Bruto com César: «Por mim, não tenho nenhuma razão pessoal para o enfrentar: é só para o bem geral. (...) Oh, se pudéssemos vencer o espírito de César sem desmembrar César! Mas, ai, César tem por isso que sangrar» (Júlio César). Eis o que o poder faz de Otelo: «Ser arrancado dos afectos de que o meu coração tinha feito tesouro, daquilo por que vale a pena viver ou morrer, a própria fonte da qual deve escorrer a minha vida para não secar». Num mundo onde «há poucas verdades suficientemente vivas para tornar segura a sociedade» (Medida por medida) e onde a confusão tornou «bonito o feio e feio o bonito» (Macbeth),

Neste mundo de lógica inexpugnável, só um olhar totalmente gratuito pode irromper e baralhar as cartas. Recorda-o Isabella em Medida por medida, tentando fazer diminuir a desumana severidade do juiz Ângelo: «Nenhuma cerimónia dos grandes da terra, nem a coroa dum Rei, nem a espada do Vigário, o bastão do Marechal ou a toga do Juiz, lhes dão metade da graça que é dada pela misericórdia» (...) Todas as almas existentes forma condenadas uma vez, e Aquele que poderia delas tirar máxima vantagem encontrou o remédio. O que seria de vós se Ele, no culminar da justiça, vos julgasse como sois? Pensai nisto, e a misericórdia soprará nos vossos lábios como o homem acabado de criar».


O NEXO EM TODOS OS GESTOS. O drama shakespeariano é sempre um drama do conhecimento: o homem não só quer, mas precisa de saber o nexo que liga o seu gesto individual ao significado do todo. Qualquer acção explica uma radical concepção de fundo. Vai da amargura de Antonio, que no Mercador de Veneza afirma que o mundo é «Um palco onde cada homem tem que representar um papel», ao desespero de Cleópatra: «Tudo é nada» (Antonio e Cleopatra); do Louco que defende que «a verdade é um cão que deve estar no canil» (Rei Lear) à pergunta com a qual na Tempestade Alonso constata que «qualquer oráculo deve remeter ao sossego a nossa consciência»; até à mais tremenda declaração de niilismo da literatura europeia, pronunciada no quinto acto de Macbeth: «A vida é só uma sombra que caminha, um pobre actor que se pavoneia e se agita com a sua hora em cena, e de quem depois não se ouve mais nada; é uma história contada por um idiota, cheia de rumor e de fúria, que não significa nada».
Por todo o lado, em Shakespeare, grita-se a pergunta dum significado que irrompa e ilumine as pregas da vida. Mas até no desespero se esconde uma pergunta que quase não se tem a coragem a de pronunciar: «O desespero significa uma esperança tão alta que nem mesmo a ambição pode olhar mais alto e, mais ainda, duvida daquilo que já descobriu» (A Tempestade). «Que obra-prima é o homem!», exclama Hamlet: e no entanto, nem isto basta.
«Nós sabemos aquilo que somos mas não sabemos aquilo que podemos ser», defende Ofélia, como que a testemunhar a tensão que agita qualquer texto shakespeariano, e lhe garante actualidade: o perceber como o homem vive e consiste numa relação dramática e vertiginosa com o seu destino. Um drama que não é o sinal duma exclusão, mas dum laço, de uma indissolúvel reciprocidade.