«NÃO TENHAIS MEDO!»
Publicamos alguns excertos dum livro-entrevista sobre João Paulo II, do vaticanista polaco Wlodzimierz Redzioch.BENTO XVI
Papa emérito
Acima de tudo, é preciso ter presente, naturalmente, a sua relação intensa com Deus, o facto de estar imerso na comunhão com o Senhor. Daqui vinha a sua alegria, no meio das grandes dificuldades com que tinha de lidar, e a coragem com que assume a sua tarefa num tempo verdadeiramente difícil.
João Paulo II não pedia aplausos, nem nunca olhou à sua volta preocupado com a forma como é que as suas decisões seriam acolhidas. Agiu a partir da sua fé e das suas convicções e estava pronto a sofrer os golpes.
A coragem da verdade é, a meu ver, um critério de primeira ordem da santidade.
Só a partir da sua relação com Deus é possível compreender também o seu incansável envolvimento pastoral. Deu-se com uma radicalidade que não pode ser explicada de outra forma. O seu empenho foi incansável, e não apenas nas grandes viagens, cujos programas estavam carregados de encontros, do princípio ao fim, mas também dia após dia, desde a missa matutina até tarde na noite.
Durante a sua primeira visita à Alemanha (1980), fiz pela primeira vez uma experiência muito concreta deste enorme empenhamento. Na sua estadia em Munique, na Baviera, decidi por isso que devia fazer uma pausa maior à hora do almoço. Naquele intervalo, chamou-me ao seu quarto. Encontrei-o a recitar o Breviário e disse-lhe: «Santo Padre, devia descansar»; e ele: «Posso descansar no céu».
Só quem está profundamente convencido da urgência da sua missão é que pode agir assim.
Mas tenho que honrar também a sua extraordinária bondade e compreensão.
Muitas vezes, teria tido motivos suficientes para me culpabilizar ou para pôr fim ao meu cargo de Prefeito. E no entanto, apoiou-me com uma fidelidade e uma bondade absolutamente incompreensíveis. (…)
A minha recordação de João Paulo II está repleta de gratidão. Não podia e não devia tentar imitá-lo, mas procurei levar por diante a sua herança e a sua tarefa o melhor que pude. E por isso estou certo de que ainda hoje a sua bondade me acompanha e a sua bênção me protege.
EMERY KABONGO
Arcebispo, ex-secretário particular
É um modelo de como viver a Misericórdia. Ele encarava todos os problemas, mesmo os mais complicados, com o espírito da misericórdia de Deus.
Numa das suas parábolas, Jesus fala daquele rei que organiza o banquete nupcial do filho para o qual não aparece ninguém… então o soberano envia os servos pelos caminhos para convidar toda a gente para as bodas… O Pai do Céu preparou-nos desde o início dos tempos um banquete, porque quer a nossa felicidade. João Paulo II era como o servo daquele rei que andava pelos caminhos do mundo para convidar todos para o banquete de Deus. Mas para participar na festa, recordemo-nos que é preciso vestir as «vestes nupciais»… E o Papa explicava com a sua vida que estas vestes não são outra coisa senão o amor.
MIECZYSLAW MOKRZYCKI
arcebispo de Leopoli,
ex-secretário particular
Penso que, humanamente, ele sofria, mas por outro lado era um homem duma fé muito sólida e com uma confiança ilimitada no Senhor. Ele entregava tudo, problemas ou preocupações, grandes ou pequenos, ao Pai do Céu, através da oração. Confiava em Deus, com a certeza de que Ele encontraria a melhor solução para todas as coisas.
Como vigário de Cristo, sofria com as tentativas de marginalizar a Igreja e contestar a moral cristã, porque acreditava que não se pode oferecer ao homem nenhuma proposta melhor do que a dos Evangelhos, anunciada por Jesus.
Mas fiquemos na confiança: impressionava-me nele a firme convicção de que a verdade faz sempre o seu caminho e acabará por vencer. Aliás, no caso de o homem não reconhecer a verdade, estaria a negar-se a si mesmo, acabando por ser presa do absurdo.
Este apego à verdade, esta forma de entender a vida segundo a verdade, o convencimento de que o seu papel (como o de Jesus) era o de dar testemunho da verdade, dava-lhe a perspectiva com a qual olhava e encarava qualquer circunstância.
STANISLAW GRYGIEL
filósofo
João Paulo II não fazia condenações, confessava simplesmente a fé da Igreja, esperando que todos amadurecessem, e ele com eles. Para Wojtyla, a liberdade do homem era res sacra, e esta concepção vinha-lhe da época em que viveu nas trevas da ocupação da Polónia pelos alemães, primeiro, e depois pelos russos. (…)
Não era a palavra escrita o que ele procurava dar aos outros, mas fazia cada coisa de forma a que a sua vida se tornasse palavra, como o próprio Deus o tinha pensado para os outros, escolhendo-o como Pastor. Creio que o trabalho pastoral é muitas vezes sufocado por papel demais: ser pastor significa «pastorear», ou seja, estar com o rebanho. Cristo não escreveu uma linha sequer, Ele é a carta pastoral viva que nos foi enviada pelo Deus vivo. É Ele, e não um texto seu qualquer, o que fica connosco. Aos homens vivos, Deus envia homens vivos. Ele não é Deus dos mortos (cf. Mt, 22,32). (…)
Via a Igreja como um grande, primordial movimento. Ainda na Polónia, tinha tido a oportunidade de conhecer alguns movimentos. Vinham ter connosco, às escondidas, vindos do Ocidente, representantes de vários movimentos, em especial de Comunhão e Libertação, de Notre Dame de Vie e dos Focolares. O Metropolita de Cracóvia cultivava relações intensas com eles. Lembro-me de forma particular da figura do padre Francesco Ricci da Forlì, discípulo de don Luigi Giussani. Três anos depois da sua morte, João Paulo II disse-me: «Eu rezo pelo padre Francesco Ricci todos os dias, durante a Missa». Para o cardeal Wojtyla, todas as paróquias deviam ser um movimento. Caso contrário, não eram paróquias vivas. Para ele, qualquer grupo de pessoas reunidas na Eucaristia, celebrada pelo sacerdote, era um movimento. Sem a presença da Eucaristia, os movimentos não se distinguiriam dos partidos políticos.
PAVEL PTASZNIK
Ex- chefe da secção polaca
da Secretaria de Estado
A oração era o motor da sua existência. Rezava incessantemente, qualquer que fosse a situação em que se encontrava. Acima de tudo, era assídua em recitar as tradicionais orações quotidianas, incluindo o Santo Rosário, a leitura do breviário, a adoração e a meditação. Além disso, todas as quintas-feiras praticava a chamada «hora santa» (uma hora de adoração eucarística) e às sextas a Via Crucis. E como o fazia também durante as viagens apostólicas, os organizadores tinham que ter isso em conta.
CARDEAL CAMILLO RUINI
Ex-vigário para a Diocese de Roma
e presidente da Cei
Pode dizer-se de qualquer homem que é um «homem de Deus», se Deus for senhor desse homem, se se tiver «apoderado» dele, o tiver feito seu. Karol Wojtyla era um «homem de Deus», porque Deus estava no centro da sua vida. É muito significativo que o Papa tenha apontado a Santa Missa como o fulcro de qualquer dos seus dias. Isto fala-nos a sua relação com Deus. Depois, no plano dos grandes cenários internacionais, impressionava a forma como ele lia a história sempre na perspectiva divina (pensemos, por exemplo, na encíclica Centesimus annus). Mas até nas experiências mais imediatas e quotidianas ele se colocava deste ponto de vista. Por isso, nele, a oração e a acção estavam intimamente ligadas: era um homem que vivia em função de Deus e que agia sempre procurando interpretar a Sua vontade. (…)
Se quisermos encontrar a chave mais profunda do seu Pontificado, temos que voltar à sua relação com Deus e à forma como ele a traduziu em termos de acção pastoral e de impacto sobre as circunstâncias históricas. Existia nele uma convicção de fundo: a secularização não é um dado fatal e irreversível, o mundo e a história não se afastarão necessariamente cada vez mais do Criador. Já quando o conheci, em 1984, ele estava convencido de quer o mundo, de alguma maneira, estava a virar a página, que a onda maior da secularização já tinha passado. No seu grito «Não tenhais medo!» já estava esta convicção de fundo.