O DIREITO REENCONTRADO

O pensamento e a reflexão de Bento XVI sobre “direito natural, religião e Estado de direito” nascem da sua própria experiência pessoal...
Georg Gänswein*

O pensamento e a reflexão de Bento XVI sobre “direito natural, religião e Estado de direito” nascem da sua própria experiência pessoal, a que viveu em jovem com o Estado de injustiça nazi que aponta como exemplo para demonstrar como o direito vigente, na realidade, pode configurar-se como injustiça. No seu discurso ao parlamento federal alemão, o Papa refere-se precisamente a este problema fundamental que o preocupa: o perigo de que «o Estado se torne o instrumento da destruição do direito», a partir do momento em que o poder deixa de estar subordinado ao direito. A tarefa fundamental do político é e continua a ser «servir o direito e combater o domínio da injustiça”.
Mas então, a este ponto coloca-se uma pergunta: como é que podemos reconhecer aquilo que é justo? Como é que podemos distinguir entre o bem e o mal, entre o verdadeiro direito e um direito que é apenas aparente? Que o direito vigente, mesmo num estado de direito, pode ser materialmente injustiça, é claro para todos os que não estão subordinados a um extremo positivismo jurídico. (…) Mesmo aquilo que a maioria delibera pode – não obstante a sua validade jurídica – ser considerado pela minoria como injustiça. Esse direito, ainda que não seja direito vigente, é no entanto norma moral de todo o direito e, sobre esta base, o direito vigente – direito consuetudinário, direito do juiz ou direito criado por lei ou decreto – pode ser denunciado como injustiça material. Este direito, na história do Ocidente, foi sempre chamado “direito natural”.

Onde é que se encontra a “provocação” das reflexões de Bento XVI? Precisamente no facto do Papa estar convencido de que existem “verdadeiras” e “justas” normas morais para o direito e que isso não é apenas uma opinião qualquer ou uma questão de maioria ou de conveniência técnica. Bento sublinha que «nas decisões de um político democrático, a pergunta sobre que coisa corresponde agora à lei da verdade, que coisa é verdadeiramente justa e pode tornar-se lei, não é igualmente evidente». Trata-se por isso da questão do verdadeiro direito e das fontes nas quais tem origem e fundamento esta verdade. O Papa Bento exorta a que a democracia actual se coloque a questão da verdade do direito. (…)
E nesse sentido é bom sublinhar o leitmotiv do seu Pontificado: para que a razão humana seja verdadeiramente razão, ela precisa da religião, da fé. Este pensamento foi claramente pronunciado no discurso em Londres no Westminster Hall. Com certeza que não se espera que a religião proponha «soluções políticas concretas». (…) Para encontrar «a base ética para decisões políticas», a razão precisa da religião, uma vez que, na sua busca de princípios objectivos morais, a religião contribui para polir e iluminar a actividade da razão. Quer dizer que também para o recto conhecimento daquilo que é justo por natureza, a razão necessita duma purificação através da religião. Ou seja, estamos diante dum processo recíproco: também a religião precisa do «papel clarificador da razão», para que a religião não acabe no «sectarismo e fundamentalismo».
A questão central em causa, então, é seguinte: onde se pode encontrar o fundamento ético para as escolhas políticas? A tradição católica defende que as normas objectivas que governam o recto agir são acessíveis à razão, prescindindo do conteúdo da revelação. Segundo esta compreensão, o papel da religião no debate político não é tanto o de fornecer tais normas, como se elas não pudessem ser conhecidas pelos não crentes – e muito menos ainda o de propor soluções políticas concretas, coisa que está completamente de fora da competência da religião -, mas antes ajudar a purificar e iluminar a aplicação da razão na descoberta dos princípios objectivos. (…)

O coração do discurso no Bundestag é uma apaixonada defesa do regresso ao direito natural. O Papa vê no direito natural uma conquista do mundo cristão. O cristianismo para ele nunca impôs ao Estado ou à sociedade «um direito revelado, um ordenamento jurídico decorrente duma revelação». Pelo contrário, «remeteu para a natureza e para a razão as verdadeiras fontes do direito». (…)
A “Natureza” não se torna moralmente normativa através do conhecimento de Deus Criador, mas simplesmente pelo facto de que o natural, no juízo da razão, é formulado como o bem que é feito. É o juízo prático da razão a respeito do bem que, diante da consciência, se apresenta como obrigação moral. Ou seja, vale in toto, independentemente do facto de se considerar a natureza como expressão da vontade dum Deus criador, ou não. O direito natural e o seu conhecimento são independentes da fé. (…)
O direito natural é fundado na própria razão humana, que por causa da sua própria natureza, consegue distinguir entre o bem e o mal e que, no conhecimento do bem, que se deve fazer, e do mal, que é de evitar, formula um dever (Sollen). Aquilo que é reconhecido como bem pela razão obriga, precisamente em virtude do juízo da própria razão, e configura portanto uma lei natural. (…) Esta lei é “natural” porque é natural ao homem esta capacidade de discernir e porque a natureza pode também formular aquilo que é justo “por natureza”. Aqui se vê que a linguagem da natureza é a linguagem da razão humana que participa como lei natural na lei eterna de Deus, que se revela através da lex naturalis e com isso transmite a razão natural ética do homem.
Bento XVI sublinha repetidamente esta “razão moral” que nós devemos aprender de novo como razão, fazendo a pergunta: como é que a razão pode encontrar novamente a sua grandeza sem resvalar para a irracionalidade? Parece que a indicação para a natureza, enfim, quer recordar a origem transcendente da razoabilidade que constitui todo o direito, como é evidente no discurso em Berlim: «Foi na base da convicção sobre a existência de um Deus criador que se desenvolveram a ideia dos direitos humanos, a ideia da igualdade de todos os homens perante a lei, o conhecimento da inviolabilidade da dignidade humana em cada pessoa e a consciência da responsabilidade dos homens pelo seu agir. Estes conhecimentos da razão constituem a nossa memória cultural. Ignorá-la ou considerá-la como mero passado seria uma amputação da nossa cultura no seu todo e privá-la-ia da sua integralidade». (…)

A este ponto, devemos perguntar-nos: mas este sublinhar da fundação teonoma dos direitos naturais e humanos não faz depender tudo, afinal de contas, da religião? Só a religião e a fé religiosa é que nos dizem aquilo que é justo?
Seja no seu discurso em Londres, seja no de Berlim, o Papa Bento afirma que
«na história, os ordenamentos jurídicos foram quase sempre fundados em motivações religiosas… O cristianismo, contrariamente às outras grandes religiões, nunca impôs ao Estado e à sociedade um direito revelado, mas um ordenamento jurídico derivado de uma revelação. Remeteu para a natureza e para a razão as verdadeiras fontes do direito – remeteu para a harmonia entre razão objectiva e subjectiva, uma harmonia que, porém, pressupõe serem ambas as esferas fundadas na Razão criadora de Deus». (…)
A isto liga-se uma realidade importante, isto é, o reconhecimento do facto de que o homem, que age e decide em liberdade, deve sempre colocar-se a pergunta sobre a verdade, quer dizer, a pergunta se tudo o que ele considera bem, é na verdade bem, se é direito ou injustiça.
Com isto, reconhece-se implicitamente que também na criação do direito existem limites ao que é moralmente permitido, e além disso, não se pode “criar” simplesmente direito, uma vez que há um direito que se “encontra” e que deve ser respeitado. Que um direito exista e não possa ser criado a nosso bel-prazer, mas que o encontramos, esta é uma herança da tradição jurídica ocidental.

Com esta observação, chegámos a uma convicção “clássica” de Bento XVI: temos o dever de «aprender novamente a razão moral como razão, e isto apenas é possível se a razão não se fechar em si mesma, caso contrário não continua a ser razoável, tal como o Estado que quer ser perfeito, se torna tirânico». O Papa está convencido que o conhecimento dos limites do poder discricional ético por causa da consciência da existência de um Deus Criador, que rege tudo, no final protege a razão humana de forma a que não se absolutiza e não exponha ao perigo a razoabilidade humana; em síntese, tornar-se-ia uma razão que já não se dá conta dos limites da liberdade. Para este limite, há Deus e a natureza, como o ser de Deus criado, e por este motivo eles contêm como limite e tarefa uma “mensagem ética”. (…)
Mas não é a Igreja ou outra instância religiosa que define esta ligação de politicamente e de modo vinculador? Sobre este aspecto, Bento XVI remeteu-se ao silêncio e este silêncio é relevante sob o perfil democrático-teórico. Com isso, a Igreja reconhece também que apenas as instâncias políticas do estado secular, por causa do princípio maioritário, criam um direito vinculador para a sociedade.

É preciso lembrar que este direito lato pode ser materialmente também uma injustiça, ou seja, uma perversão do direito e uma democracia deve permanecer sempre um estado de direito onde existem os limites do pluralismo, as motivações jurídico-éticas que se radicam no direito natural. Isto não comporta danos à democracia, mas pode ajudar os seus protagonistas – os políticos e todos os cidadãos com direito de voto – a usarem o poder que lhes foi confiado de modo responsável e consciencioso. Precisamente com isto, é respeitada a justa autonomia do mundo político: a independência em relação às instituições religiosas como a Igreja, mas não a independência em relação aos critérios objectivos do direito e às normas principais morais tal como foram formuladas pelo direito natural.
«Na perspectiva de Bento XVI, portanto, entre a razão e a fé existe uma profunda e operativa “amizade”», como afirmado em A lei de Salomão (p. 34-35): «Uma relação em que nenhum dos dois amigos pretende “submeter” o outro, reconhecendo-lhe e apreciando a sua alteridade, mas em que cada um precisa do outro para viver bem. Tal como nas relações de amizade, é o encontro a categoria fundamental».

*Excertos da intervenção do arcebispo
Georg Gänswein na apresentação
de La legge di re Salomone. Diritto
e ragione in Benedetto XVI,
de Marta Cartabia e Andrea Simoncini