É POSSÍVEL UM NOVO INÍCIO?
O juízo de Comunhão e Libertação sobre as eleições de 25 de Maio para o Parlamento EuropeuEm vésperas das eleições europeias de 25 de Maio a opinião pública parece dividida entre os que fazem pressão para sair da União Europeia e os consideram inútil votar, porque o voto, de facto, não vai alterar nada. Apesar de não faltarem defensores da UE, respira-se uma sensação predominante de frustração: a Europa não aparece já como um centro mas como uma grande periferia do mundo globalizado. Porém, na esteira do Papa Francisco, precisamente o ser ou o sentir-se «periferia», se entendida na sua profundidade, não poderá constituir a ocasião para recuperar uma atitude positiva e dar-nos uma oportunidade de mudança?
Quais são os factores desta oportunidade?
A Europa nasceu e cresceu em torno de algumas grandes coisas que marcaram a história do mundo e que evidenciam o alcance da fé cristã para a vida dos homens. Don Giussani recordava-as em 1986:
• «O valor da pessoa, absolutamente inconcebível em toda a literatura mundial;
• O valor do trabalho, que em toda a cultura mundial, na cultura antiga mas também na concepção de Engels e Marx, é encarado como escravidão, ao passo que Cristo define o trabalho como a actividade do Pai, de Deus;
• O valor da matéria, ou seja, a abolição do dualismo entre um aspecto nobre e um aspesto desprezível da vida da natureza;
• O valor do progresso, do tempo carregado de significado, pois o conceito de história exige a ideia de um desígnio inteligente;
• A liberdade. O homem não pode conceber-se livre em sentido absoluto: como antes não existia e agora existe, depende. Necessariamente. A alternativa é muito simples: ou depende d’Aquilo que faz a realidade, ou seja, de Deus, ou depende da casualidade do curso da realidade, ou seja, do poder».
1. O valor da Europa Unida
Na sucessão destas grandes coisas que fundaram historicamente a Europa surge também o projecto de uma Europa Unida, como sublinha o padre Julián Carrón: «O que é que permitiu aos pais da Europa encontrar disponibilidade para se falarem, para construirem algo em conjunto, mesmo após a segunda guerra mundial? A noção da impossibilidade de eliminar o adversário tornou-os menos presunçosos, menos impermeáveis ao diálogo, conscientes da sua própria necessidade; começou-se a dar espaço à possibilidade de entender o outro, na sua diversidade, como um recurso, um bem.» (la Repubblica, 10 de Abril de 2013). No segundo pós-guerra os líderes dos países que pouco antes se haviam combatido (De Gasperi, Schuman, Adenauer) decidem pôr de lado todos os sentimentos de vingança ou de superioridade e lançam as bases para uma paz de longo prazo conjugando os respectivos interesses económicos.
Para compreender a dimensão excepcional do que aconteceu na Europa nessa época conturbada basta pensar no que se passou a seguir à Primeira Guerra Mundial, a seguir às guerras napoleónicas ou às guerras de religião: nunca existiu verdadeira paz mas uma tensão contínua que preparava as guerras seguintes. A Europa Unida nasce num ponto muito preciso e concreto: o acordo de 1951 para a gestão do carvão e do aço (CECA), por todos reconhecido como exemplo de uma nova forma de se tratarem uns aos outros. Na criação do primeiro projecto europeu a força ideal foi um factor decisivo, capaz de mudar o curso dos acontecimentos. Ao contrário do que sucede actualmente, o objectivo não se restringia à economia. Aquele acordo económico constituía realmente o primeiro passo para um objectivo bem maior: a paz (parceiros que cooperam e fazem trocas comerciais entre si não tendem a fazer guerras) e, com a paz, uma ajuda mútua a fim de que cada um pudesse buscar o bem próprio e o bem comum.
A prossecução deste mesmo objectivo renova-se na segunda passagem histórica da Europa contemporânea, que se verificou em 1989 com a queda do Muro de Berlim e foi determinado também pela força de um ideal. Poucos, a Leste e a Ocidente, teriam apostado na possibilidade de uma superação pacífica da divisão da Europa em dois blocos, que tão dramaticamente marcou a história do Velho Continente. Václav Havel, que veio a ser o primeiro presidente da Checoslováquia pós-comunista, no seu livro O poder dos sem poder, saído em 1979, defendera que o problema da vida socio-política era o domínio da mentira da ideologia e que a verdadeira resposta à situação não seria um revolução violenta, nem uma simples reforma política ou a mera superação do totalitarismo em favor de uma democracia parlamentar, mas uma vida, pessoal e social, apostada na busca da verdade. No testemunho de Havel pareceu evidente que os factores que mudam a história são os que passam pelo coração do homem.
2. A crise
A actual crise de “consciência europeia”, em concomitância com a crise económica, mostra que aquilo que deu vida à Europa Unida deixou de ser um dado evidente, um pressuposto reconhecido por todos como condição para enfrentar os desafios que a realidade nos coloca. Tal como sucedeu no passado, também nós, europeus de 2014, temos de reconquistar as razões de uma unidade em nada óbvia e da qual se pode sempre regredir. De facto, como afirma Bento XVI, «um progresso por adição só é possível no campo material. Contudo, no âmbito da consciência ética e da decisão moral, não há essa possibilidade de adição, simplesmente porque a liberdade do homem é sempre nova e deve sempre tomar as suas decisões de novo. A liberdade pressupõe que, nas decisões fundamentais, cada homem, cada geração seja um novo início.» (Spe salvi, 24).
É esta, pois, a grande possibilidade que a crise nos proporciona a nós europeus: reconquistar as razões do nosso “exitir comunitariamente”. Trata-se de um desafio inderrogável, e o motivo é ainda Bento XVI que nos recorda: «visto que o homem permanece sempre livre e dado que a sua liberdade é também sempre frágil, não existirá jamais neste mundo o reino do bem definitivamente consolidado. Quem prometesse o mundo melhor que duraria irrevocavelmente para sempre, faria uma promessa falsa; ignora a liberdade humana. Por outras palavras: as boas estruturas ajudam, mas por si só não bastam» (Spe salvi, 24.25).
Há um elemento que hoje torna o caminho ainda mais árduo: deixámos de ter a mesma conciência da profundidade da necessidade humana que os pais fundadores tinham, deixou de haver uma pulsão ideal e passou a dominar uma lógica de puro interesse.
Ir à raiz da crise procurando compreender todos os factores em jogo é a única via para reencontrar a nova consciência que a Europa de hoje precisa. É justamente para nós, europeus, que se tornou vital promover um debate real sobre o presente e o futuro do Velho Continente, avaliando se os esforços feitos até aqui foram adequados à natureza da crise. Isto respeita tanto à economia como aos desafios antropológicos. Pretender resolver unicamente com instrumentos jurídicos as graves questões antropológicas que temos enfrentado é tão ineficaz como ilusório. Como se torna evidente, face aos problemas mais radicais da existência humana, a solução «não advém directamente enfrentando os problemas, mas aprofundando a natureza do sujeito que os enfrenta.» (don Giussani, 1976).
O esquecimento deste nível está na origem daquela crise do humano que enfraqueceu a consciência dos fins. Assim, com o tempo, os meios (economia, lucro, finança) passaram a ser a finalidade e a união económica europeia transformou-se num mero pacto de interesses inevitavelmente divergentes. Ressurge a Europa dos Estados, que já não fazem guerras entre si com canhões, mas sim com as armas da economia e da finança, e estão divididos em muitas questões cruciais: o relacionamento com os países do Mediterrâneo, a imigração clandestina, as dívidas soberanas, as operações de manutenção de paz, a solidariedade com os parceiros com maiores dificuldades.
A falta do ímpeto ideal e da consciência dos fins produziu consequências inclusivamente no funcionamento da Europa enquanto instituição: os organismos europeus cresceram sobre si mesmos, muitas vezes inchando desdemidamente e originando uma espécie de monstro tecnocrático que parece decidido a vergar a realidade às suas exigências. Afirma-se, portanto, uma percepção cada vez mais generalizada de ineficácia das estruturas europeias: se até 2008 (ou seja, até à explosão da crise financeira) a opinião sobre a credibilidade das instituições europeias era muito positiva, superior à que se referia aos Estados nacionais, hoje – segundo as sondagens – 70% dos cidadãos europeus considera as estruturas europeias (a Comissão, o Conselho, o Parlamento) inadequadas às exigências das pessoas e da vida social.
Segundo Joseph Weiler, um dos mais conceituados especialistas das dinânicas europeias, a Europa sofre de um défice político: falta uma autêntica vida política europeia porque falta uma dimensão ideal; tendo-se jogado tudo na economia e não tendo esta última descolado efectivamente, as pessoas perguntam-se: «Para que é que a Europa serve?»
Simultaneamente cresce uma ideia de Europa como espaço cultural e político relativista, cujas estruturas tentam tornar lícita e mesmo fonte de direitos qualquer aspiração individual desligada do problema do que seja a pessoa humana.
Terão porventura razão os eurocépticos que querem abandonar a União Europeia por considerarem derrotado e já ultrapassado o sonho dos pais fundadores?
3. A pessoa, condição para a Europa
Existe alguma via de saída? Sim, e é recomeçar a partir daquela posição que deu origem à Europa e à Europa Unida. Os interesses económicos por si sós não bastam para recomeçar: é necessário redescobrir o «outro como sendo um bem, e não um obstáculo, para a plenitude do nosso eu, na política assim como nas relações humanas e sociais». (P. Carrón). A única coisa que edifica é o «amor ao reflexo da verdade que se encontra em qualquer pessoa. Este é um factor de paz, de construção de uma morada humana, de uma casa que possa também servir de refúgio ao desespero extremo.» (don Giussani, 1995).
A recuperação de uma consciência adequada do humano, daquilo que é essencial à realização dos indivíduos e dos povos, pode dar-se em lugares que despertem o eu de cada um, o eduquem a uma relação adequada com a relidade (seja esta qual for), lhe façam discernir existencialmente a centralidade, unicidade e sacralidade de cada pessoa: são aqui convocadas a bimilenária experiência da comunidade cristã e todas as realidades sociais inspiradas em ideais laicos e religiosos. Só uma concepção do homem como realidade irredutível, «relação com o infinito» (don Giussani), pode juntar pessoas diferentes em termos de etnia, estrato social, cultura, religião e ideologia política, com vista a uma real integração que derrube todos os guetos e seja portadora de desenvolvimento.
A partir destas preocupações é preciso abrir um amplo diálogo sobre como a UE deverá evoluir nos próximos anos, envolvendo todos os cidadãos, e sobretudo as futuras gerações, que já aos milhares deixam os seus países de origem e se sentem em casa onde quer que vão estudar ou trabalhar.
Isto produz um também reflexo importante ao nível institucional. No malogrado discurso para a Universidade La Sapienza de Roma, em 2008, Bento XVI declarou partilhar o juízo do filósofo Jürgen Habermas «quando afirma que a legitimidade de uma carta constitucional, como pressuposto da legalidade, derivaria de duas fontes: da participação política igualitária de todos os cidadãos e da forma razoável como são resolvidos os contrastes políticos. A propósito da referida "forma razoável", observa ele que a mesma não pode ser somente uma luta por maiorias aritméticas, mas há-de caracterizar-se como um "processo de argumentação sensível à verdade”», ou seja, uma tensão contínua para descobrir toda a centelha de verdade que se manifesta no encontro com o outro. A verdade, de facto, nunca é uma propriedade individual que se possa brandir como uma maça contra os outros, mas emerge na dinâmica do encontro humano: «a verdade é uma relação! E tanto assim é, que cada um de nós capta a verdade e a exprime a partir de si mesmo: da sua história e cultura, da situação em que vive, etc. Isto não quer dizer que a verdade seja variável e subjectiva. Longe disso! Significa, sim, que ela se nos dá sempre e só como um caminho e uma vida.» (Papa Francisco, «Carta a Eugenio Scalfari», la Repubblica, 11 de Setembro de 2013). Isto desbarata o relativismo, salvaguardando precisamente aquilo que o relativismo queria valorizar: a diversidade, a alteridade.
Na medida em que recorrermos a uma experiência não reduzida do homem pode-se fundar a política europeia já não no confronto de interesses opostos e num relativismo que desemboca no niilismo, na indiferença de todos por tudo, mas num uso da razão «sensível à verdade» e num realismo que reconhece o outro como um bem para si e não como uma ameaça. Como escreve o Papa Francisco, «O nosso compromisso não consiste exclusivamente em acções ou em programas de promoção e assistência; aquilo que o Espírito põe em movimento não é um excesso de activismo, mas primariamente uma atenção prestada ao outro “considerando-o como um só consigo mesmo”. Esta atenção amiga é o início duma verdadeira preocupação pela sua pessoa e, a partir dela, desejo procurar efectivamente o seu bem.» (Evangelii Gaudium, 199).
Neste sentido, os organismos europeus deveriam ser os primeiros a estruturar-se no sentido de uma subsidiariedade real. Isso favoreceria a responsabilidade de cada um (pessoas, grupos sociais, Estados), evitando a ilusão de que as respostas venham sempre e de alguma forma do alto.
Uma Europa que percebesse isto não tenderia a fechar-se à imigração; não poria em prática somente a austeridade mas também a solidariedade na economia; não se fecharia em nacionalismos irrealistas e anti-históricos; não promoveria uma legislação resolvida a desfazer todos os vínculos cultivando a obsessão pelos novos direitos individuais; não avalizaria a hostilidade às fés e em particular à fé cristã (traíndo precisamente aquilo que, na história, edificou e fez grande a Europa).
«Às vezes interrogo-me sobre quais são as pessoas que, no mundo actual, realmente se preocupam mais em dar vida a processos que construam um povo do que com obter resultados imediatos que produzam ganhos políticos fáceis, rápidos e efémeros, mas que não constroem a plenitude humana. A história julgá-los-á talvez com aquele critério enunciado por Romano Guardini: “O único padrão para avaliar justamente uma época é perguntar-se até que ponto, nela, se desenvolve e alcança uma autêntica razão de ser a plenitude da existência humana, de acordo com o carácter peculiar e as possibilidades da dita época”. […] Como crentes, sentimo-nos próximo também de todos aqueles que, não se reconhecendo parte de qualquer tradição religiosa, buscam sinceramente a verdade, a bondade e a beleza, que, para nós, têm a sua máxima expressão e a sua fonte em Deus. Sentimo-los como preciosos aliados no compromisso pela defesa da dignidade humana, na construção duma convivência pacífica entre os povos e na guarda da criação.» (Evangelii Gaudium, 224.257).
Aqui se coloca o contributo fundamental que a fé pode dar à vida pública «alargando a razão», como nos recordou Bento XVI. A colaboração do cristianismo é antes de mais a educação a considerar a realidade em todos os seus factores e, por conseguinte, a recuperar aquele ímpeto ideal originário que se dissipou com o tempo. Esta é a verdadeira emergência actual.
Se não for surda a esse chamamento, a Europa poderá renascer e, assim, esperar voltar a ser o «mundo novo», exemplo e modelo para todos. O contributo que uma cultura europeia renascida pode oferecer a todo o mundo é tornar a colocar no centro a pergunta sobre o que é que faz um ser humano ser e sentir-se como tal.