VOLTARAM JUNTOS AO PRIMEIRO MILÉNIO

Foi Ratzinger que imprimiu uma reviravolta radical. Uma renovatio que leva a Francisco
Por Alessandro Banfi

Há oito séculos que não acontecia nada parecido. Desde aquele remoto ano de 1294, em que Celestino V reuniu os Cardeais ao seu redor e praticamente se despojou, fisicamente, literalmente, das suas vestes de Pontífice para se tornar um monge como os outros. Um gesto de humildade e de fé, ditado por aquilo a que os historiadores chamariam a ânsia de renovatio típica da baixa Idade Média. Nos anos que virão, provavelmente nos séculos que virão, a decisão de Bento XVI será recordada como o acto mais corajoso e inesperado da história dos dois mil anos da Igreja.
Mas será possível interpretar, ler, compreender verdadeiramente a extraordinária força do Papa Francisco, o outsider dos papabili, segundo a imprensa secular de todo o mundo, o cardeal Jorge Bergoglio, contrapondo-o ao seu predecessor. A continuidade é profunda, sólida, talvez até mais do que a vontade dos dois protagonistas. A serena, firme, pacata decisão de Ratzinger de entregar o seu mandato nas mãos dos Cardeais é verdadeiramente um “despojamento franciscano” (o seu sucessor talvez não pudesse deixar de se chamar Francisco…)
Mas o que vem a ser este desejo “franciscano” de renovação? É o regresso à lógica do primeiro milénio do cristianismo, em contraponto com a sedimentação medieval. Foi Ratzinger que imprimiu à Igreja esta reviravolta verdadeiramente radical. Abandonar a defesa, cada vez mais difícil, das consequências de uma fé cada vez menos vivida. Abandonar a auto-sustentação de algo incrustado, sedimentado, que se tornou instituição já sem vida. Recomeçar como se já não existisse nem mais um cristão na terra, como os cristãos do primeiro milénio, voltar a ver tudo como “consequência do Amor”. Voltar a olhar para o mundo como um Santo Agostinho o olhava.

“SUBIR À MONTANHA”. Bergoglio, também nisto, é fruto da escolha de Ratzinger. Não apenas e não tanto porque, misteriosamente, o seu destino pessoal se cruza nos dois conclaves de 2005 e de 2013. Sabemos, de facto, a partir duma reconstituição, semi-oficial, da eleição de há nove anos atrás, que Ratzinger foi eleito depois de Bergoglio ter renunciado. E é evidente hoje que Bergoglio se torna Papa depois da renúncia de Ratzinger. Mais radicalmente, Bento XVI justifica a sua decisão revolucionária com a necessidade de fazer face a uma passagem histórica da Igreja no clima que vive. A palavra-chave do seu Pontificado é “purificação”. Primeiro, a purificação da razão, depois a purificação da fé.
Ratzinger volta a entregar a Igreja ao seu Senhor. Ele, que diz de si mesmo, na entrevista a Peter Seewald, Luz do mundo: «Não sou um místico» (p.33), no último Angelus do seu Pontificado dirá explicitamente: «O Senhor chama-me a “subir à montanha”, a dedicar-me ainda mais à oração e à meditação. Mas isto não significa abandonar a Igreja, antes pelo contrário».
Ratzinger sente a necessidade imperiosa duma obra de purificação que chegue até à própria função do Pontífice, do Bispo de Roma. Intui que uma retoma, um novo início, passa através duma “derrota”, duma renúncia, duma cruz.

PERGUNTAS E RESPOSTAS. Não é por acaso que o extraordinário olhar de Francisco sobre o mundo é como a manhã de sábado Santo depois da Quaresma. A passagem entre os dois Papas acaba por se sobrepor ao tempo litúrgico da Paixão e da Ressurreição. Uma Páscoa para recordar, a de 2013!
Claro que Bergoglio tem o seu temperamento e a sua sensibilidade particulares, também eles imprevisíveis e inesperados. É fácil sermos desviados pela aparência e pelo jogo de imagens. Muitos católicos (de profissão, sobretudo) irritam-se quando ouvem os “de fora” dizer: «Este sim, finalmente…». É um erro, ainda que compreensível, ficar desiludido diante deste tipo de afirmação. Quem crê devia saber que é o Senhor que faz existir a Igreja, não nós, e nem sequer os Papas. E é uma verdadeira Graça a imediata capacidade de diálogo com todos que o Papa Francisco reacendeu no coração dos homens de hoje.
Mas também a razão, “alargada” pela fé, nos deve ajudar a compreender: todas as reformas “práticas” que o grande Francisco está a trazer à Igreja podem ser lidas como outras tantas respostas às perguntas feitas por Ratzinger. Quem levou a sério a decisão de Bento XVI e a olhou em profundidade, estudando-lhe as motivações e as consequências, encontrou Francisco. Sobretudo naquilo que é cada vez mais claramente o coração da sua missão: um chamamento radical ao essencial, ou seja, a Jesus Cristo.