UM TESTE PARA A SOCIEDADE
Deng Xiao Ping dizia que ainda não é possível fazer um juízo definitivo sobre as consequências da Revolução Francesa. No fundo, só se passaram dois séculos...Deng Xiao Ping dizia que ainda não é possível fazer um juízo definitivo sobre as consequências da Revolução Francesa. No fundo, só se passaram dois séculos. A afirmação, um pouco paradoxal, veio-me à cabeça ao começar a ler a extraordinária Exortação Apostólica Evangelii Gaudium, proposta pelo Papa Francisco a toda a Igreja e a toda a humanidade. De facto, o impacto da inesperada eleição e depois a prédica de Bergoglio são um facto histórico de que dificilmente se pode avaliar a proporção.
Entre as muitas coisas que impressionam, vale a pena determo-nos no segundo e no quarto capítulos que, embora partindo tema principal, o da evangelização, constituem um aprofundamento sobre a doutrina social, e tocam em todos os temas-chave do mundo de hoje.
O Papa analisa as tendências próprias do espírito dos tempos não através duma análise sociológica, mas dum «discernimento evangélico» e traça no segundo capítulo o «contexto» social em que a Igreja age. Pois bem, o mundo de hoje visto por Bergoglio está a viver uma «reviravolta histórica», que se deve sobretudo ao progresso do conhecimento e da informação; mas ao mesmo tempo, é um mundo mais do que cruel, em que «a economia mata»: «Não é possível que a morte por enregelamento dum idoso sem abrigo não seja notícia, enquanto o é a descida de dois pontos na Bolsa. ». Chama-lhe, na Exortação, a «economia da exclusão»: o ser humano é « é considerado, em si mesmo, como um bem de consumo que se pode usar e depois lançar fora». E sublinha o aspecto de novidade histórica disto: os últimos, os que sofrem mais com esta crueldade asséptica, anestesiada pela cultura do bem-estar, não são oprimidos, mas literalmente deitados fora: «Fere-se, na própria raiz, a pertença à sociedade onde se vive». Os excluídos «não são “explorados”, mas resíduos, “sobras”». Os pobres do mundo de hoje são estes «excluídos que continuam à espera».
É uma situação nalguns aspectos nova, lá está. E na sua base está um mecanismo de crescimento, diriam os economistas, que cria desigualdades. «Enquanto os lucros de poucos crescem exponencialmente, os da maioria situam-se cada vez mais longe do bem-estar daquela minoria feliz», escreve o Papa: « Tal desequilíbrio provém de ideologias que defendem a autonomia absoluta dos mercados e a especulação financeira».
COMO JOSEPH STIGLITZ. Parece que está a ouvir os ecos da mais actual polémica entre os grandes economistas; o prémio Nobel Joseph Stiglitz dedicou um dos seus últimos ensaios, O preço da desigualdade, precisamente a este tema. Ou seja, ao falhanço dum modelo de desenvolvimento, sem precedentes históricos, que mesmo quando cria riqueza, a cria para muito poucos, aumentando a distância entre as nações e entre ricos e pobres nas nações. Mas ao mesmo tempo, o apelo de Bergoglio é a proposta que podemos ouvir, vigorosa mas quase elementar, na doutrina social da Igreja: «O dinheiro deve servir, e não governar! O Papa ama a todos, ricos e pobres, mas tem a obrigação, em nome de Cristo, de lembrar que os ricos devem ajudar os pobres, respeitá-los e promovê-los». A economia, mas também a finança, devem regressar «a uma ética propícia ao ser humano».
Não é ainda uma política económica, como reconhece o próprio Bergoglio: «Não quis oferecer uma análise completa, mas o convite duma comunidade para completar e enriquecer estas perspectivas a partir da consciência dos desafios que lhes dizem directamente respeito, ou que lhes são próximas». Um apelo poderoso à reflexão e à elaboração de ideias, mas sobretudo a comportamentos práticos por parte das comunidades e das pessoas. E contudo, no capítulo quarto da Exortação, a reflexão sobre a «dimensão social da evangelização» aprofunda alguns temas, sublinhando a relação entre a fé e o empenho social.
Aqui a riqueza dos pontos é tal que nos limitamos a assinalar algumas passagens. A origem da reflexão tem a sua radicalidade: a proposta do Reino de Deus na terra tem consequências históricas e sociais. «Trata-se de amar a Deus, que reina no mundo. Na medida em que Ele conseguir reinar entre nós, a vida social será um espaço de fraternidade, de justiça, de paz, de dignidade para todos». E ainda: «A verdadeira esperança cristã, que procura o Reino escatológico, gera sempre história». Por isso, não apenas o direito de palavra dos cristãos e dos pastores da Igreja no terreno social, mas o seu contributo indispensável à experiência humana. E aqui Bergoglio cita o Santo de quem tomou o nome e a última “bênção social”: «Quem ousaria encerrar num templo e silenciar a mensagem de São Francisco de Assis e da Beata Teresa de Calcutá?» pergunta, para rebater: « Uma fé autêntica – que nunca é cómoda nem individualista – comporta sempre um profundo desejo de mudar o mundo, transmitir valores, deixar a terra um pouco melhor depois da nossa passagem por ela».
Depois concentra-se no que chama «a inclusão social dos pobres», à qual dedica muitas páginas densas de conteúdo. Com algumas passagens que fazem perceber bem o valor que os pobres têm para a fé.«A Igreja deve chegar a todos, sem excepções», claro: «Mas quem deve privilegiar? Quando uma pessoa lê o Evangelho encontra uma orientação muito clara: não tanto os amigos e os vizinhos ricos, mas sim e sobretudo os pobres e os doentes, aqueles que muitas vezes estão desesperados e esquecidos, “aqueles que não têm com que te retribuir” (Lc 14,14)». São esses que pedem um a mor total, gratuito. É uma espécie de teste à forma como olhamos para o outro. Por isso «não devem restar dúvidas nem subsistem explicações que enfraqueçam esta mensagem tão clara». Hoje e sempre, “os pobres são os destinatários privilegiados do Evangelho”». Tal como «a opção pelos pobres é uma categoria teológica e não cultural sociológica, política ou filosófica», relembra ainda o Papa: «Deus «manifesta a sua misericórdia antes de mais» a eles.». E «como ensinava Bento XVI, esta opção “está implícita na fé cristológica naquele Deus que Se fez pobre por nós, para enriquecer-nos com sua pobreza”». Nada de sociologia: é mesmo uma questão que tem a ver com a fé e o conhecimento.
Há no entanto outras coisas que impressionam logo numa primeira leitura. Aquela que é uma verdadeira oração pelos políticos: «Peço a Deus», escreve no parágrafo 205, «que cresça o número de políticos capazes de entrar num autêntico diálogo que vise efectivamente sanar as raízes profundas e não aparência dos males do nosso mundo! A política, tão denegrida, é uma sublime vocação, é uma das formas mais preciosas da caridade, porque busca o bem comum».
O PRESÉPIO DE GRECCIO. E ainda algumas «tensões bipolares», que por sua vez mereceriam um aprofundamento. É sugestiva, por exemplo, a afirmação de um princípio que parece ultrapassar a física: o tempo é superior ao espaço. No sentido de que o espaço é o limite, enquanto o tempo é o horizonte final. «Os cidadãos vivem em tensão entre a conjuntura do momento e a luz do tempo, do horizonte maior, da utopia que nos abre ao futuro como causa final que atrai». Este é «um princípio para progredir na construção de um povo». E acrescenta: «Um princípio que permite trabalhar a longo prazo, sem a obsessão pelos resultados imediatos». E aqui abre um raciocínio que parece fazer lembrar uma outra tensão bipolar, identificada por don Luigi Giussani há alguns anos, a da hegemonia e da presença. Porque «dar prioridade ao tempo é ocupar-se mais com iniciar processos do que possuir espaços». Depois duma esplêndida citação de Romano Guardini, surge a citação evangélica: «A parábola do trigo e do joio (cf. Mt 13, 24-30) descreve um aspecto importante da evangelização, que consiste em mostrar como o inimigo pode ocupar o espaço do Reino e causar dano com o joio, mas é vencido pela bondade do trigo que se manifesta com o tempo». E depois outras, também muito familiares, como «a realidade é superior à ideia», ou «o todo é superior às partes».
Michael Gerson escreveu no Washington Post, comentando a Exortação: «Francisco está a demonstrar que a fé cristã não é uma ideologia, mas ajuíza todas a ideologias, incluindo aquelas que se justificam em nome da liberdade. Não deveria surpreender no tempo do Natal, dada a revolução que chegou, inesperadamente, entre os humildes e dos pobres».
Não é por acaso que foi precisamente São Francisco que inventou o Presépio em Greccio. Para recordar aos homens do seu tempo que a pobreza era o carácter fundamental daquele extraordinário acontecimento histórico. O primeiro Papa da história que tomou o seu nome enquanto sucessor de Pedro, escreve hoje: «Todo o caminho da nossa redenção está assinalado pelos pobres. Esta salvação veio até nos através do “sim” duma jovem humilde, duma pequena povoação perdida na periferia dum grande império. O Salvador nasceu num presépio, entre os animais, como sucedia com os filhos dos mais pobres; foi aposentado no Templo com dois pombinhos, a oferta de quem não podia permitir-se pagar um cordeiro (cf Lc 2,24; Lv 5,7); cresceu num lar de simples trabalhadores e trabalhou com as suas mãos para ganhar o pão».