O CORAÇÃO PENSANTE DO LAGER

O postal foi encontrado por um camponês. Estava na berma da linha-férrea que atravessava a charneca, perto de Niuweschans.
Davide Perillo

O postal foi encontrado por um camponês. Estava na berma da linha-férrea que atravessava a charneca, perto de Niuweschans. Não tinha imagens, só a data (7 de Setembro de 1943), a morada («para Christine van Nooten, Deventer») e um texto escrito numa caligrafia apertada e redonda. «Abro a Bíblia ao acaso e encontro isto: “O Senhor é o meu grande abrigo”. A partida chegou de forma inesperada, apesar de tudo. Deixámos o campo a cantar. Adeus». Era de Etty Hillesum, de 27 anos, holandesa, judia. Atirou-o do vagão número 123 do comboio que a levava a Auschwitz, onde morrerá dois meses depois. Nasceu há precisamente cem anos.
É possível ir para a câmara de gás a cantar? É possível viver o horror da shoah na própria pele – ver morrer os amigos, os familiares, os projectos, os sonhos – e subir para o comboio que nos leva ao coração do sacrifício com o coração alegre? Naquele postal está o segredo duma vida breve, que provoca arrepios quando a repercorremos, porque abre estas questões e tantas outras. E fá-lo como que pegando numa de cada vez, passo a passo, acompanhando-nos naquilo que descobre; e fala de si mesma observando-se. Etty deixou-nos um diário e uma recolha de cartas. Tudo concentrado no espaço de três anos, entre 1941 e 1943. O primeiro transformou-se num fenómeno, não só editorial (cento e cinquenta mil cópias vendidas e estudadas, teses, reedições consecutivas). As cartas acabaram de ser publicadas na sua versão integral, para completar a leitura de uma existência plena como poucas.
Esther “Etty” Hillesum nasce em Middelburg, no mar do Norte, numa família burguesa. O pai é director dum liceu, a mãe é russa e tem um carácter vulcânico, tem dois irmãos com uma inteligência tão brilhante quanto a sua (Mischa será um dos pianistas mais prometedores da Europa e Jaap, aos 17 anos, tem já o caminho aberto na carreira de médico por ter descoberto uma nova proteína), e Etty licencia-se primeiro em Direito, e depois em línguas eslavas. Estuda também psicologia, mas já é tarde para iniciar um caminho: os Lager abrem os portões, o holocausto começou. Etty queria ser escritora, repete-o muitas vezes aos amigos e a sim mesma. Não sabe que, de facto, já o é.
Naquele diário, escrito na mesma cidade e no mesmo período de Anne Frank, há muito mais do que trama e romance. Há um percurso humano poderosíssimo, um caminho de alargamento da razão, dos sentidos e do coração, encontro após encontro, sofrimento após sofrimento. Alguma coisa que permite, nos anos em que toda a Europa vive a tragédia, «escrever um contra-drama», como diz Jan Gert Gaarlandt, o curador do diário. Fá-lo com uma lucidez e uma força de alma – não um esforço: mas sim uma consciência cada vez mais nítida de como estavam verdadeiramente s coisas – que nos interrogam. De onde vem aquela força?
A primeira resposta é: num coração inquieto. Muito. Um coração que a faz amar Rilke e Agostinho, Leonardo e Dostoievski. Que a faz dizer sempre e de mil maneiras «quero alguma coisa e não sei o que é». E que se abre completamente quando encontra o homem que irá marcar a sua vida. Chama-se Julius Spier, tem o dobro da sua idade, estudou com Jung e é o pai da «psico-quirologia»: análise e terapia da pessoa partindo das linhas da mão. Pode dar vontade de rir; mas é certo que Spier tinha um carisma e uma profundidade fora do normal. E um ascendente forte sobre aquela rapariga, de quem se tornará amante (não o único): «Agarrou-me pelas mãos e disse-me: olha, deves viver assim», escreve no diário, provavelmente iniciado por influência de Spier. Naquelas páginas, ele estará sempre presente. Mas terá sobretudo um mérito: «Operou em mim uma grande obra: desenterrou Deus de dentro de mim e trouxe-O à vida. E agora sou eu a continuar, procurando Deus no coração de todos os homens que encontrar».
Uma companhia a e uma estrada. Ambas estranhas, acidentadas, tal como a vida, mas reais. Ligando-se a Spier e aos seus amigos, e permanecendo tenazmente presa à experiência («é a única realidade que não se pode anular com as discussões: as imagens podem ser conspurcadas e destruídas»), Etty atravessa as dúvidas que jorram da alma e da tragédia à sua volta: «Medo de viver em toda a linha. Cedência completa. Falta de confiança. Repulsa», sintetiza numa linha a 10 de Novembro de 1941. Estão lá, e irão regressar. Mas não são um obstáculo: são passos dum caminho.
Etty percorre-o usando-se a i mesma, revelando em acto uma razão “alargada” que teria agradado a Bento XVI (não é por acaso que o pontífice emérito a citou na última audiência como Papa, em Fevereiro do ano passado): diz que é preciso «pensar com o coração» porque «talvez possuamos outros órgãos além da razão» e são estes que nos permitem encarar e compreender – ou seja, abraçar – coisas que não teríamos acreditado serem possíveis. E vê toda a tarefa que uma sensibilidade deste tipo lhe confia: «Deixem-me ser o coração pensante desta barraca», escreve. Não é presunção: é a certeza de que só um coração que pensa e vê e ama pode resistir à loucura da guerra e da shoah: por si, e pelos outros.
De vez em quando, as suas páginas tornam-se uma oração, uma conversa contínua com Deus («toma-me pela mão, seguir-te-ei com coragem, não apresentarei muita resistência»), um escavar naquele ,«poço muito profundo dentro de mim. E Deus está nesse poço. Às vezes acontece-me alcançá-Lo, muito mais vezes está coberto de pedras e areia: então Deus fica sepultado. É preciso que eu O desenterre». Todos os dias revela uma busca encarniçada do essencial. Que transforma a maneira como Etty olha para tudo e se prende a tudo. «“Estou tão presa a esta vida”. O que queres dizer com “vida”? A vida cómoda que levas agora? Vamos a ver se estás mesmo presa à vida nua e simples, seja qual for a forma sob a qual esta se apresente». Começa a procurar aquilo que é realmente necessário para viver. Mesmo estando à espera do Lager.
Faz impressão ver a flor que desabrocha desta fé cada vez mais real, pessoal. É um afastamento de si mesma que lhe faz possuir as coisas, conhecê-las verdadeiramente: «Devemos ser capazes de viver sem livros e sem nada. Existirá sempre um pedaço de céu para olhar e bastante espaço dentro de mim para juntar as mãos numa oração». É uma abertura cada vez maior à realidade: «Se se começa a aceitar, não se deve então aceitar tudo?» E ainda: «A um certo ponto já não se pode fazer, mas apenas ser e aceitar». É um amor gratuito àquilo que existe porque existe, não porque pode ou deve ser nosso. Há uma página belíssima em que descreve esta descoberta, contando um passeio para ir ver o pôr-do-sol. «Dantes, quando gostava de uma flor, desejava apertá-la ao coração, ou até comê-la (sentia um desejo físico pelas coisas que me agradavam, queria tê-las)… Mas naquela tarde, há apenas alguns dias atrás, reagi de forma diferente. Aceitei com alegria a beleza deste mundo de Deus, apesar de tudo. Gozei com a mesma intensidade aquela paisagem silenciosa, mas duma forma por assim dizer “objectiva”. Já não queria possuí-la».
Em termos cristãos, chamaríamos a isto virgindade. E impressiona que precisamente nessas passagens surjam citações do Evangelho de Marco («não vos preocupeis com o amanhã…») e das cartas de São Paulo. Mas esta atitude é a fonte e ao mesmo tempo a expressão de uma liberdade interior cada vez mais potente, que a faz fazer juízos acurados sobre aquilo que vê à sua volta («para humilhar alguém são precisos dois: aquele que humilha e aquele que é humilhado e, sobretudo, que se deixa humilhar. Se faltar o segundo, a humilhação evapora-se no ar») sem lhe fugir, antes pelo contrário.
Etty não fica fora do inferno, a observá-lo: entra nele. Em Julho de 1942 arranja trabalho como dactilógrafa no Conselho Judeu, o organismo que serve de intermediário entre os alemães e a comunidade judaica: medeia, tutela, trata. Mas, na realidade, gere o fluxo de judeus que são reunidos no campo de Westerbork, de onde todas as terças-feiras partem os comboios para Auschwitz. Serão mais de cem mil os que passarão por aqui para acabar nas câmaras de gás: Etty escolhe ir para lá e ficar lá. Mesmo quando surge a oportunidade de se esconder, ou os amigos lhe propõem um rapto fingido. Naquele campo, presta assistência aos doentes e às famílias, organiza a chegada dos pacotes de alimentos e faz companhia às crianças. Entrega-se toda. Mas ao mesmo tempo, aproxima-se cada vez mais da beira do abismo, de certa forma voluntariamente. Livremente.
Há muito de Westerbork nas suas páginas. Descrições que falam das grandezas e misérias de quem vive à espera da morte: as barracas, a espera, as lutas pelos selos que podem dar-te mais uma semana de vida, a preocupação com os pais e os irmãos. Há páginas de cortar a respiração («Uma rapariguinha chama-me. Está sentada na sua cama, com os olhos escancarados. Tem os pulsos finos, um rostinho magro e diáfano. Está parcialmente paralisada, tinha acabado de recomeçar a andar, “Ouviste? Tenho que partir”, sussurra: “Que pena, não é? Pensar que tudo o que aprendeste na tua vida foi um trabalho desperdiçado”»). Há também muita ironia. Como quando lhe dizem que também ela tem que partir e depois que não, que «foi um erro»: «É um tanto estranha esta expressão: “um erro”, como se não fosse um erro para todos os outros…»
Mas há também um olhar verdadeiro sobre os seus algozes. Procurando qualquer vislumbre de humanidade, mesmo o mais escondido. É um olhar puro, desprovido de ódio: «Sei que quem odeia tem motivos fundados para o fazer. Mas porque é que devemos sempre seguir o caminho mais fácil e mais barato?» E depois: «Esta terra só se poderia tornar um pouco mais habitável graças aquele amor de que o judeu Paulo fala aos habitantes de Corinto». É o “hino à caridade”.
É neste «estanho estado de contentamento doloroso» que ganha espaço uma necessidade misteriosa e imensa: ajudar Deus. Não apenas perdoá-lo pelo mal absurdo que vemos acontecer («o facto é que temos tanto amor em nós que conseguimos perdoar Deus», escreve em Agosto de 1942), mas servi-Lo, colaborar na Sua obra misteriosa: «Se Deus já não me ajuda, então serei eu a ajudá-Lo». Não é uma blasfémia: é o desejo de que o homem continue a ser homem, que não se perca a si mesmo na tragédia. E só se não cortar o laço é que pode ser homem. Etty quer que Ele não se perca, para se salvar a si mesma e aos outros: «Partirei sempre do princípio de ajudar Deus o mais possível e se isto me correr bem, então quer dizer que saberei estar também para os outros».
A conclusão, afinal de contas, é esta: uma gratuidade que se tornou total, sem condições. Um amor radical pelo outro, que jorra do facto de ter chegado ao mais fundo de si mesma («quando rezo, nunca rezo por mim própria, rezo sempre pelos outros… Quando rezamos por alguém, estamos a dar-lhe um bocadinho das nossas próprias forças»). No fundo, é este o ponto que mais impressiona ao lê-la. Porque cresce, é um crescendo contínuo. A última frase do diário diz tudo, em oito palavras: «Sim, queria ser um bálsamo para muitas feridas».
Foi desta maneira que Etty Hillesum viveu. «Uma vida bela, mesmo assim!», conta-nos naquele campo de espera. Porque «a gratidão será sempre maior do que a dor». A ponto de escrever, nos últimos dias: «O céu está cheio de pássaros (…) o sol brilha no meu rosto, e sob os nossos olhos acontece um massacre, é tudo tão incompreensível. Eu estou bem».
A ordem de partida chegou na noite anterior. Naquele comboio, entram Etty, os pais e o irmão. A última palavra que a ouvem dizer é um «adeeeus» alegre, gritado do vagão número 12 que saia de Westerbrok. «Deixámos o campo a cantar». Era verdade.