Reconhecer Cristo
A meditação desta manhã terminava com a frase icástica de Kafka: “Existe um ponto de chegada, mas não há nenhum caminho”. É inegável: há um desconhecido (os geógrafos antigos traçavam quase uma analogia deste desconhecido com a famosa “terra desconhecida” com que terminavam seus grandes mapas; nas margens do mapa assinalavam: “terra desconhecida”). Às margens da realidade que o olho abraça, que o coração sente, que a mente imagina, há um desconhecido. Todos o sentem. Todos sempre o sentiram. Em todos os tempos, os homens o sentiram tanto que até o imaginaram. Em todos os tempos, os homens procuraram, através das suas elocubrações ou das suas fantasias, imaginar, fixar o rosto deste desconhecido. (...)
O que Kafka diz (“não há nenhum caminho”) não é verdade historicamente. É verdade, paradoxalmente, poderíamos dizer, teoricamente, mas não é verdade historicamente. Não se pode conhecer o mistério! Isto é verdade teoricamente. Mas se o mistério bate à sua porta... “Se alguém me abrir a porta, entrarei em sua casa e irei jantar com ele” (Ap 3, 20): são palavras que lemos na Bíblia, palavras de Deus na Bíblia. Mas é um fato que aconteceu.
E o primeiro capítulo de São João, que é a primeira página literária a falar disto, fora do anúncio geral: “O Verbo se fez carne” – aquilo de que toda a realidade é feita se fez homem –, contém a memória daqueles que seguiram imediatamente, que resistiram à solicitação que lhes era feita por parte dos engenheiros, dos arquitetos. Em uma folha, algum deles anotou as primeiras impressões e os traços do primeiro momento em que o fato aconteceu. O primeiro capítulo de São João, de fato, possui uma seqüência de notas que são realmente notas de memória. Um dos dois, quando velho, lê na sua memória as anotações que ficaram, pois a memória tem uma sua lei. A memória não tem como lei uma continuidade sem espaços, como acontece por exemplo em uma criação fantástica, da imaginação; a memória literalmente “toma notas”, como nós fazemos agora: uma anotação, uma linha, um ponto, e este ponto representa tantas coisas, de tal forma que a segunda frase começa depois das tantas coisas supostas pelo primeiro ponto. As coisas são mais supostas que ditas, algumas só são ditas como pontos de referência. Por isso, eu, com os meus 70 anos de idade, releio estas coisas pela milésima vez, e sem nenhum sintoma de cansaço. Desafio vocês a imaginarem uma coisa em si mais grave, mais pesada, no sentido de pondus, maior, mais carregada de desafio para a existência do homem na sua fragilidade aparente, mais cheia de conseqüências na história, do que esta, do que este fato.
“Naquele dia, João estava ainda lá com dois discípulos. Fixando seu olhar em Jesus, que passava, disse...”. Imaginem a cena, então. Depois de 150 anos de espera, finalmente o povo hebraico, que sempre, ao longo de toda a sua história, durante dois milênios, tinha tido algum profeta, algum profeta reconhecido por todos, depois de 150 anos finalmente o povo hebraico teve de novo um profeta: chamava-se João Batista. Outros escritos da Antigüidade também falam dele, está documentado historicamente, portanto. Todas as pessoas – ricos e pobres, publicanos e fariseus, amigos e adversários – iam ouvi-lo e ver a maneira como vivia, do outro lado do Jordão, em terra deserta, terra de gafanhotos e ervas silvestres. Ele tinha sempre um grupo de pessoas à sua volta. Entre estas pessoas naquele dia havia também dois que estavam indo pela primeira vez e vinham, digamos, do campo – mas eles vinham do lago, que era bem distante e estava fora do círculo das cidades mais desenvolvidas. Estavam lá como dois “caipiras” que pela primeira vez vêm à cidade, deslocados, olhando com os olhos arregalados para tudo o que estava à sua volta e sobretudo para ele. Ficavam lá com a boca aberta e os olhos arregalados a olhar para ele, a ouvi-lo, atentíssimos. De repente, uma pessoa do grupo, um homem jovem, vai embora, toma o caminho ao longo do rio para ir para o norte. E João Batista, inesperadamente, olhando fixamente para ele, grita: “Eis o Cordeiro de Deus, eis aquele que tira o pecado do mundo!”. Mas as pessoas não se moveram, estavam acostumadas a ouvir o profeta de quando em quando exprimir-se com frases estranhas, incompreensíveis, sem nexo, fora de contexto; por isso, a maior parte dos presentes não fez caso daquilo. Os dois que vinham pela primeira vez, que ficavam lá escutando João Batista atentamente, olhando para os seus olhos, seguindo os seus olhos para onde quer que girasse o seu olhar, viram que mirava aquele indivíduo que ia embora, e puseram-se a seguir este indivíduo. Seguiram-no permanecendo à distância, por temor, por vergonha, mas estranhamente, profundamente, obscura e sugestivamente curiosos. “Aqueles dois discípulos, ouvindo-o falar assim, seguiram a Jesus. Jesus se voltou e vendo que o seguiam disse: ‘O que buscais?’. Responderam-lhe: ‘Rabi, onde moras?’. Ele lhes disse: ‘Vinde e vede’”. Esta é a fórmula, a fórmula cristã.
O método cristão é este: “Vinde e vede”. “E foram, e viram onde morava, e ficaram com ele todo o dia. Eram cerca de quatro da tarde”. Não se especifica quando partiram, quando foram atrás dele; todo o trecho, também o seguinte, é composto de notas, como eu dizia antes: as frases acabam em um ponto que dá por óbvio que se saibam já muitas coisas. Por exemplo: “Eram cerca de quatro da tarde”; mas quando é que foram embora, quando é que foram lá, quem o sabe? De qualquer forma, eram quatro da tarde. Um dos dois que tinham ouvido as palavras de João Batista e haviam seguido aquele homem se chamava André, era o irmão de Simão Pedro. Ele encontrou em primeiro lugar seu irmão Simão... Deixaram Jesus, e o primeiro que André encontra é o irmão Simão, que voltava da praia, voltava ou da pescaria ou de consertar as redes necessárias para o pescador, e lhe diz: “Encontramos o Messias”. Não narra nada, não cita nada, não documenta nada, é sabido, é claro, são notas de coisas que todos sabem! Poucas páginas podem ser lidas que sejam verídicas de maneira tão realista, verídicas de maneira tão simples, onde nenhuma palavra é acrescentada à pura recordação.
Como pôde dizer: “Encontramos o Messias”? Jesus, falando com eles, terá dito esta palavra, que estava no vocabulário deles; porque, dizer que aquele era o Messias, “como quatro e quatro são oito”, com tanta certeza, teria sido impossível. Mas se vê que, ficando lá horas a escutar aquele homem, vendo-o, olhando-o falar – quem é que falava deste modo? Quem alguma vez já havia falado deste modo? Quem já havia dito estas coisas? Nunca foram ouvidas! Nunca fora visto alguém assim! –, lentamente, dentro do espírito deles, ia abrindo caminho a expressão: “Se eu não acredito neste homem, não acredito em mais ninguém, nem nos meus olhos”. Não que tenham dito isto, não que tenham pensado assim, sentiram isto, não pensaram. Aquele homem terá, portanto, dito, entre outras coisas, que era ele aquele que tinha de vir, o Messias que tinha de vir. Mas fora tão óbvio na excepcionalidade do anúncio (da afirmação), que eles o carregaram consigo como se fosse uma coisa simples – era uma coisa simples! –, como se fosse uma coisa fácil de compreender.
“E André o conduziu a Jesus. Jesus, fitando o olhar sobre ele, disse: ‘Tu és Simão, o filho de João. Chamar-te-ás Cefas, que quer dizer pedra’”. Os judeus tinham o costume de mudar o nome, ou para indicar o caráter de alguém, ou então por algum fato que acontecia. Portanto, imaginem Simão, que vai com o irmão, cheio de curiosidade e um pouco de temor, e que olha fixamente para o homem a quem o irmão o conduz. Aquele homem o está fixando de longe. Pensem na maneira como o fixava, a ponto de compreender o seu caráter até a medula dos ossos: “Chamar-te-ás pedra”. Pensem em uma pessoa que se sente olhada assim por alguém que nunca viu, absolutamente estranho, que se sente entendida assim no profundo de si. “No dia seguinte, Jesus tinha estabelecido que partiria para a Galiléia...”. É meia página feita deste modo, feita destes breves acenos e destes pontos em que tudo o que aconteceu era tratado como se fosse óbvio que todos o soubessem, que fosse evidente para todos.
“Existe um ponto de chegada, mas não há nenhum caminho”. Não! Um homem que disse: “Eu sou o caminho” é um fato histórico que aconteceu, cuja primeira descrição está dentro desta meia página que eu comecei a ler. E cada um de nós sabe que aconteceu. Nada aconteceu no mundo tão impensado e excepcional como aquele homem de que estamos falando: Jesus de Nazaré.
Mas para aqueles dois, os dois primeiros, João e André – André, muito provavelmente, era casado, tinha filhos –, como foi possível que fossem convencidos tão imediatamente e que o reconhecessem (não há uma outra palavra que possa ser dita diferente de reconhecê-lo)? Direi que, se este fato aconteceu, reconhecer aquele homem, quem era aquele homem, não quem era no fundo e minuciosamente, mas reconhecer que aquele homem era algo de excepcional, de incomum – era absolutamente incomum –, irredutível a qualquer análise, reconhecer isto devia ser fácil. Se Deus se tornasse homem, viesse até nós, se viesse agora, se tivesse penetrado na nossa multidão, se estivesse aqui entre nós, reconhecê-lo, a priori eu digo, deveria ser fácil: fácil reconhecê-lo no seu valor divino. Por que é fácil reconhecê-lo? Por causa de uma excepcionalidade, por causa de uma excepcionalidade incomparável. Eu tenho na minha frente uma excepcionalidade, um homem excepcional, sem comparações. Que quer dizer excepcional? Que quererá dizer? Por que o excepcional toca você? Por que você sente “excepcional” uma coisa excepcional? Porque corresponde às expectativas do seu coração, por quanto confusas e nebulosas possam ser. Corresponde de repente – de repente! –, corresponde às exigências da sua alma, do seu coração, às exigências irresistíveis, inegáveis do seu coração, como você jamais poderia imaginar, prever, porque não há ninguém como aquele homem. Ou seja, o excepcional é, paradoxalmente, o aparecimento daquilo que é mais natural para nós. O que é natural para mim? Que aquilo que eu desejo aconteça. Mais natural do que isto!
(…) Mas imaginem aqueles dois que ficam a ouvi-lo durante algumas horas e que depois têm de ir para casa. Ele se despede deles e eles voltam calados, calados porque invadidos pela impressão que tiveram do mistério que sentiram, pressentiram, ouviram, e depois se separam. Cada um dos dois vai para a sua casa. Não se cumprimentam, não porque não se cumprimentem, mas se cumprimentam de um outro modo, cumprimentam-se sem se cumprimentar, porque estão repletos da mesma coisa, são uma só coisa aqueles dois, de tanto que estão repletos da mesma coisa. E André entra em sua casa e tira o manto, e a esposa lhe diz: “Mas, André, o que você tem? Está diferente, que lhe aconteceu?”. Imaginem a ele que rompesse em choro abraçando-a, e ela que, perturbada com isto, continuasse a lhe perguntar: “Mas o que você tem?”. E ele a abraçar a sua esposa, que nunca se sentiu abraçada assim em sua vida: era um outro. Era um outro! Era ele, mas era um outro. Se lhe tivessem perguntado: “Quem é você?”, teria dito: “Compreendo que me tornei um outro... depois de ter ouvido aquele indivíduo, aquele homem, eu me tornei um outro”. Rapazes, isto, sem ter de fantasiar demais, aconteceu.
Não apenas é fácil reconhecê-lo, foi fácil reconhecê-lo na sua excepcionalidade – porque “se não acredito neste homem não acredito mais nem nos meus olhos” –, mas foi fácil também compreender que tipo de moralidade, isto é, que tipo de relacionamento dele nascesse; porque a moralidade é a relação com a realidade enquanto criada pelo mistério, é a relação justa, ordenada com a realidade. Foi fácil, foi fácil para eles compreender como era fácil o relacionamento com ele, o segui-lo, o ser coerentes com ele, o ser coerentes com a sua presença – coerentes com a sua presença.
* Texto extraído de Da Il tempo e il tempio. Dio e l'uomo, BUR Saggi, 2014, pp. 39-74; também in Litterae Communionis jan-fev 1995, pp. XVIII – XXIII