Dom Giussani: O Papa repreende os que têm em mãos o futuro do mundo
O conflito no Iraque. Saddam, Bush e o «Não à guerra» de João Paulo II. «Corriere della Sera», p. 12Caro diretor,
diante das bombas estourando e dos incêndios das cidades, o que restitui a verdade sobre as coisas é pensar na morte de Jesus. Não consigo dar-me outra explicação, a não ser esta: seguir Cristo que vai morrer na cruz, ser como Ele, e pronto.
Por isto aderimos com simplicidade aos sentimentos de amor e de paz próprios do Papa, reconhecendo com ele que tais sentimentos não surgem da adesão à condenação dos que querem a guerra, mas do empenho de todas as energias para reativar uma educação capaz de adestrar ao reconhecimento de uma injustiça aninhada na origem de todas as decisões humanas: o que na linguagem de Cristo se chama pecado original.
Para nós é impossível pronunciar um juízo partindo de uma análise psicológica ou natural, e mantido com base na maranha do poder concebido pela mentalidade de Sadam, mas também de Bush. Um juízo só é possível admitindo que, assim como é certo que a culpa é de ambas as partes (e disto terão os dois que responder), assim também é evidente que a origem dessa culpa não está em nenhum dos dois. O pecado original e, portanto, a possibilidade do despotismo, é um veneno que tem seu habitat, sua gênese, em um mistério. E é a este nível, insondável para nós, que a misericórdia de Deus traz remédio.
Ora, aquilo de que estou falando não diz respeito somente ao além, pois a misericórdia de Deus traz remédio já na existência terrestre; por isto já existe, aqui neste mundo, a possibilidade da paz para uns e do desespero para outros. Deus é misericordioso, o Mistério é uma misericórdia que carrega consigo a cruz. Uma cruz que, para uns, é destino de castigo, penitência e humildade num caminho de paz, para outros, é mistério de raiva sem limites.
Assim, na perspectiva da misericórdia, o rosto do soldado dos EUA é idêntico ao do soldado do Iraque, que se encontra em frente à boca daquele canhão que irá estraçalhá-lo. Os dois são tais e quais, não são mais um contra o outro. Que grande mistério! Na misericórdia se realiza a vantagem do amor, que chega até o perdão. Se não se chega a isso, tudo é mentira; e a razão fica presa numa contradição: ou se acusa o outro, ou se acusa a si mesmo, acabando no puro desespero.
A salvação nos é dada seguindo Cristo, identificando-nos com seu “sentimento do homem” e invocando a graça de que o homem faça, com a própria liberdade, o que Cristo fez com a Sua: abandonar a própria fraqueza mortal nas mãos da misericórdia do Pai, isto é, do Mistério do ser.
Pensemos nos Salmos e nas palavras proféticas contidas na Bíblia. Deus intervém na caminhada do povo, com profecia ou com autoridade, e diz, por exemplo: “Eu vos castigo! Meu povo, tu és castigado!”. Ou, então, se serve do profeta para falar ao povo temeroso, porque está debaixo do peso de um opressor pagão, e o profeta Neemias diz: Deus é mais forte, Ele é o Senhor de tudo, portanto “não fiqueis tristes, porque a alegria do Senhor é a vossa força” (Ne 8,10). Ele está falando de Deus que doa o bem, a beleza, a bondade: nele o povo encontra a energia para julgar aquilo que acontece.
Um povo, quando atravessa um momento horrível ou penoso da própria história, pode emitir um juízo sobre o que é justo ou não, na medida em que é educado: se é educado, se tem uma caminhada guiada, se é orientado, então, seguindo seus mestres, pode dizer sim ou não diante de evidências históricas – historicamente claras –. Nestes dias o Papa tem motivos adequados para dizer não à guerra, ainda que a guerra seja feita por pessoas que – por si – teriam razões para fazê-la. Por isto tenhamos presente o que o Papa diz, porque o juízo cabe a pessoas que foram educadas a considerar aquilo que acontece desde o ponto de vista da lei de Deus e da memória do povo. João Paulo II, depois de ter dito que é errado fazer a guerra – errado porque não há motivo adequado –, acrescentou: “Deus vos julgará”. O que é um modo de alertar quem tem uma obrigação de responsabilidade histórica para com o futuro do mundo (este é o motivo pelo qual sentimos, antes de tudo, uma profunda piedade por quem assumiu a terrível responsabilidade da guerra).
Certamente, minha mãe nunca teria indicado como razão em favor da guerra a que é aduzida por aqueles que a apóiam. Porém, também não teria seguido aqueles que se opõem à guerra por um cálculo de política oposta. Minha mãe, observando uns e outros, teria concluído: “Peçamos a Deus para que Ele nos ajude”. E este juízo a teria deixado tranqüila; não porque indiferente, mas porque certa de que Deus é o Senhor de tudo, que conduz tudo a um destino de bem, diante de qualquer grave momento da história.