Eu e os membro de CL. A nossa fé frente ao mundo

Comunhão e Libertação faz 50 anos: fala o fundador. «Corriere della Sera», p. 33
Luigi Giussani

«Lembro-me que a escolha do Berchet foi absolutamente casual, como uma pedra lançada ao céu. Enquanto eu subia os degraus que levavam pra dentro do colégio, não fazia ideia de quem encontraria pela frente. Lá estavam reunidos os jovens pimpolhos da Milão chique, os quais eu não conhecia e pelos quais ninguém se interessava então...». A voz de monsenhor Luigi Giussani é rouca e frágil como um suspiro, mas o olhar é sempre aquele que os jovens do “don Gius” conhecem bem, os mesmos olhos que nas imagens em preto e branco de 50 anos atrás despontavam de sobre a boina daquele sacerdote de 30 anos, nascido em Desio, que num belo momento decidiu deixar de lado o ensino no seminário de Venegono e lançar-se na luta, na grande cidade das “torres” de Testori. Deve ter sido a fé de dona Ângela, a mãe, ou o temperamento de Beniamino, o pai, entalhador, restaurador e socialista anárquico. O fato é que hoje “o Gius” completa 82 anos e seus jovens festejarão amanhã, com uma peregrinação a Loreto, o meio século do Movimento nascido no liceu milanês e hoje difundido em 70 países. Pois os jovenzinhos nos degraus do Berchet formaram Gioventù Studentesca (Juventude Estudantil), que depois se tornou Comunhão e Libertação. Ele, na verdade, escreveu ao Papa: «Não só eu nunca pretendi “fundar” nada, como considero que a genialidade do movimento que vi nascer seja ter sentido a urgência de proclamar a necessidade de um retorno aos aspectos elementares do cristianismo, ou, em outras palavras, a paixão pelo fato cristão enquanto tal, nos seus elementos originais, e nada mais».

Monsenhor Giussani, a escolha do Berchet foi casual...
... Pelo menos tanto quanto o encontro imprevisto com um grupo de jovens, alguns anos antes, num trem para Rímini. Conversando com eles, achei-os profundamente ignorantes a respeito do que fosse o cristianismo. Desse modo, esse encontro provocou em mim o pedido aos meus superiores para deixar a docência no seminário e ir lecionar no ensino médio. Deram-me as aulas de religião no Liceu Berchet, de Milão.

E como o senhor procedeu, desde aquele primeiro dia na turma E?
O critério último que adotei nas aulas foi o de exaltar naqueles jovens um renovado fervor, buscando comunicar-lhes a fé de um povo do qual eu tinha participado. E isto eu dizia a mim mesmo entrando na escola naquele primeiro dia. Da parte dos alunos, percebi logo um interesse franco e, especialmente em alguns, também agitado.

Agitado?
Sim, ouvindo-me falar durante a aula, o ânimo de alguns alunos ficou surpreso com o fato de que a religião pudesse adquirir uma vivacidade surpreendente diante das perguntas acerca do significado último da existência, normalmente ignorado por causa de um ponto de vista precário, e mesmo assim sincero, como era o deles naquele momento. Eu pedia a Nossa Senhora que me concedesse a graça de poder mostrar àqueles jovens de que modo a religiosidade atinge o homem a uma profundidade inimaginável da experiência humana.

E encontrou desconfianças?
Lembro ainda, como se fosse ontem, a primeira explosão de desprezo e de desdém que veio à tona diante da primeira pergunta de surpresa. Na verdade tratava-se de uma objeção que um rapaz sentado na última carteira fizera dizendo exatamente: “Fé e razão representam dois âmbitos profundamente diferentes, existencialmente hostis”. Falou de retas oblíquas sobre planos paralelos que jamais poderiam se encontrar...

De que maneira o senhor responde a objeções do gênero?
Meu ponto de partida começou por um jeito de olhar as coisas como “paixão por”, como “amor”, uma posição de abertura que não permite partir sozinho e que põe em movimento o fato de um relacionamento. É impossível enfrentar uma situação que tem a ver com a vida sem que esse contexto opere um desmantelamento, uma surpresa. Se acontecer essa surpresa, será lógico o entusiasmo ao falar aos jovens, todo o empenho estará subordinado ao trabalho da inteligência: com efeito, seria um erro seguir alguém sem que houvesse um porquê. No cérebro do homem existe um elemento fundamental que exige a explicação do porquê. Em outras palavras, sem surpreender-se com a realidade como ponto de início decisivo, o homem ficaria, muito ou pouco, bloqueado pela pura necessidade de fazer – mas fazer o quê? – e perceberia como inútil toda e qualquer tentativa.

E mesmo assim diz-se que a Europa está cada vez mais secularizada. Como é possível falar de fé hoje?
Antes de mais nada, seria necessário corrigir a postura comum com a qual se concebe a fé. Todo novo início da experiência cristã – e portanto de cada relacionamento – não se gera a partir de um ponto de vista cultural, como se fosse um discurso aplicável às coisas, mas acontece experimentalmente. É um ato de vida que põe tudo em movimento. O início da fé não é uma cultura abstrata, mas algo que vem antes: um acontecimento. A fé é a tomada de consciência de algo que aconteceu e que acontece, de algo novo do qual tudo parte, realmente. É uma vida e não um discurso sobre a vida, porque Cristo começou a “pular” no útero de uma mulher!

E é isto que não se consegue transmitir?
Sim, é essa percepção do cristianismo e da Igreja como vida o que se perdeu nos últimos séculos e, desse modo, perdeu-se a possibilidade do início de uma resposta para as perguntas dos jovens. Se falta o início, não existe apego ao problema colocado pela natureza do homem: a necessidade de uma resposta para as exigências da sua razão. Por isso, falar da fé aos jovens, mas também aos adultos, é falar de uma experiência e não repetir um discurso, ainda que justo, sobre religião.

Existe uma espécie de desconfiança recíproca entre cultura laica e religiosa?
De nossa parte não existe desconfiança alguma, mas a fundamentada consciência de uma situação por demais problemática que vejo expressa por uma poesia de Carducci, Su Monte Mario: “Até que, restringida ao sul do equador, no encalço dos chamados do calor que se esvai, a linhagem extenuada seja formada por apenas uma fêmea e um homem, que, lívidos, de pé entre as ruínas dos montes, entre os bosques mortos, com o olhar vidrado, te vejam, ó sol, declinar sobre a imensa geleira”.

Trata-se de uma imagem desolada...
Nessas palavras é descrito o fim do homem. É uma posição que se deve à negatividade da concepção do que é o homem e a um desenvolvimento incompleto da sua sensibilidade e inteligência.

O senhor também vê, como dizem alguns, uma tendência hostil ao catolicismo na Europa?
Hoje o homem vive uma espécie de dispepsia existencial, uma alteração das funções elementares que o torna dividido, como a relação homem-mulher citada por Carducci: quando não se consideram juntos na origem, ficam divididos, duas entidades separadas que não se encontrarão nem no fim. Pode tornar-se fácil conceber, por exemplo, o produto de uma página de arte somente como o resultado de uma capacidade própria. Assim também o trabalho, assim também o amor pela mulher. E esse é um dado de fato difundido.

Porém?
O que torna diferente a percepção do homem é a dominante dependência que se atribui à natureza de cada coisa antes de iniciar qualquer ação: “Dulcíssimo, potente/ Dominador da minha profunda mente”, cantava Leopardi. Do mesmo modo, à solidão brutal a que o homem chama a si mesmo, quase para se salvar de um terremoto, oferece-se como resposta o cristianismo. O cristão encontra resposta positiva no fato de que Deus tornou-se homem: esse é o acontecimento que surpreende e conforta a, de outro modo, má sorte. E para Deus não é concebível o próprio agir em relação ao homem a não ser como um “generoso desafio” à sua liberdade. A objeção moderna de que o cristianismo e a Igreja reduziriam a liberdade do homem é anulada pela aventura do relacionamento com o homem por parte de Deus. E, em vez disso, por causa de uma ideia limitada de liberdade, para o homem de hoje é inconcebível pensar que Deus se empenhe na estreiteza de um relacionamento com o homem, quase negando-se. Esta é a tragédia: o homem parece mais preocupado em afirmar a sua própria liberdade do que em reconhecer essa magnanimidade de Deus, a única que fixa a medida da participação do homem na realidade e assim o liberta realmente.