Caminho para a inteligência da Igreja
Por que a Igreja, São Paulo: Companhia Ilimitada, 2015, pp. 19-26.1. Um pressuposto fundamental
A Igreja não é somente expressão de vida, algo que nasce da vida, mas é uma vida. Uma vida que nos alcança desde muitos séculos que nos precederam. Quem se propuser a verificar uma opinião própria sobre a Igreja deve considerar que, para a inteligência real de uma vida como a Igreja, é necessária uma convivência adequada.
A inteligência de uma realidade que, de algum modo, tenha ligação com a vida exige um tempo dificilmente calculável. Existem características e aspectos em uma realidade oriunda da vida que nunca se acaba de descobrir, de investigar.
Conditio sine qua non para a inteligência da vida é a convivência com ela. Normalmente, o indivíduo é tentado a pôr um termo, um prazo previamente combinado ou decidido em certo momento. Para escapar dessa limitante implicação é necessária uma simplicidade particular ou lealdade. Caso contrário, impede-se a possibilidade de um juízo crítico acerca dessa forma de vida: torna-se impossível um mínimo de objetividade.
2. Uma sintonia com o fenômeno
A Igreja é uma realidade que pode ser catalogada – seja qual for a posição de quem queira abordá-la – entre os fenômenos religiosos. Alguém poderia julgá-la um fenômeno religioso alterado ou alterante, de escasso interesse; outro, ao invés, poderia dar por óbvia a sua validade, mas em nenhum dos casos, acredito, pode-se escapar ao fato de dever catalogar a Igreja como uma realidade religiosa. E é precisamente isto que proponho seja considerado em primeiro lugar.
A Igreja é “vida” religiosa.
Um psicólogo e filósofo alemão, Johannes Lindworsky, afirmou que a primeira condição para uma educação, isto é, para transmitir uma capacidade de entrar na realidade, é que os passos do indivíduo que se introduz no real sejam sempre motivados por algo que se apoie numa experiência já adquirida por ele. Em suma, o homem encontra somente aquilo que de algum modo tenha ligação com algo já presente em si. Digo “de algum modo” exatamente porque os contatos, os encontros, a trama dos relacionamentos chamam a interioridade, o implícito do indivíduo, a uma realização mais aberta, mais evoluída. A trama dos relacionamentos influencia, realiza a nossa fisionomia de maneira sempre mais completa justamente na medida em que solicita uma realidade presente em nós, como por meio de uma sintonia.
Se a Igreja é uma realidade religiosa, na medida em que o aspecto religioso não for ativado ou for infantilmente interrompido, nessa medida será mais difícil poder julgar de forma objetiva e crítica aquele fato religioso. Por exemplo, se nos deparamos com a obra de algum grande poeta do passado, como Dante Alighieri ou Shakespeare, imediatamente vibramos perante aquelas páginas que exprimem sentimentos que hoje vivem em nós e as compreendemos mais facilmente. Ao contrário, ao lermos os trechos em que o poeta se refere a uma mentalidade ou praxe da época em que viveu, exatamente na sua contingência efêmera, no seu valor puramente momentâneo, aquelas páginas, para nós, tornam-se muito difíceis de ser entendidas. Para que se produza uma compreensão deve haver uma correspondência.
É explicável, portanto, que na situação de cada um de nós, no âmbito mental contemporâneo, haja dificuldades para se abordar uma realidade de tipo religioso. A falta de educação do senso religioso natural nos leva muito facilmente a sentirmos distantes de nós realidades que, ao contrário, estão radicadas dentro da nossa carne e do nosso espírito. A vivacidade de presença do espírito religioso, ao invés, torna fácil, de maneira mais imediata, a compreensão dos termos de uma realidade como a Igreja.
Nessa situação, a primeira dificuldade ao se defrontar com a Igreja é uma dificuldade de inteligência, uma fadiga devida à falta de disposição do sujeito em relação ao objeto que ele deve julgar: uma dificuldade de inteligência causada por uma situação não desenvolvida do senso religioso.
Durante uma palestra da qual tive a oportunidade de participar, um importante professor universitário deixou escapar esta frase: “Se eu não tivesse a química, me mataria!”. Na nossa dinâmica interior, semelhante jogo existe sempre, mesmo quando não declarado. Existe sempre alguma coisa que torna a vida digna de ser vivida, aos nossos olhos, e sem a qual, ainda que não se chegasse a desejar a própria morte, tudo seria incolor e enganoso. Àquela “coisa”, o que quer que seja, sem nenhuma necessidade de que seja teorizada ou expressa em sistema mental – de fato, pode estar implicada numa banalíssima prática de vida – o homem oferece toda a sua devoção. Ninguém pode evitar uma implicação final: seja o que for, no momento em que a consciência humana a ela corresponde vivendo, é uma religiosidade que se expressa, é um nível de religiosidade que se realiza2. O senso religioso tem como característica própria ser a dimensão última inevitável de cada gesto, de cada ação, de cada tipo de relacionamento. É um nível de pergunta ou de adesão última inextirpável de cada instante de vida, porque a profundidade da sua solicitação de significado se reflete em cada paixão, iniciativa, gesto.
É claro, portanto, que, se alguma coisa escapasse àquilo que nós identificamos com aquele último, com aquele “deus” – como quer que o entendamos – este não seria mais o último, o “deus”, porque equivaleria a dizer que algo de mais profundo está dentro do nosso modo de agir, e a este algo, na realidade, nós seríamos devotos. A falta de educação do senso religioso que eu denunciava antes documenta-se exatamente nisto: há em nós uma repugnância, que se tornou instintiva, a que o senso religioso domine, a que determine cada ação conscientemente.
O sintoma da atrofia e da parcialidade do desenvolvimento do senso religioso em nós é precisamente este: uma dificuldade ampla e pesada, uma estranheza que experimentamos quando ouvimos dizer que o “deus” é o determinante de tudo, é o fator
do qual não se pode escapar, é o critério com o qual escolhemos, estudamos, completamos o produto do nosso próprio trabalho, aderimos a um partido, investigamos cientificamente, buscamos uma esposa ou um esposo, governamos uma nação. A educação do senso religioso deveria, de um lado, favorecer a tomada de consciência daquele dado de inevitável e total dependência que existe entre o homem e aquilo que dá sentido à sua vida, e, de outro, ajudá-lo a expugnar com o tempo aquela estranheza não realista que ele experimenta diante da sua situação original.
3. Pôr em foco a originalidade do cristianismo
Esse tema do senso religioso é importante para entender a originalidade do cristianismo, que é precisamente a resposta ao senso religioso do homem através de Cristo e da Igreja. O cristianismo é uma solução para o problema religioso, e disto a Igreja é instrumento, enquanto não o é de soluções para problemas políticos, sociais e econômicos.
Os erros mais graves em cada percurso do homem têm sempre origem na raiz da questão. Por isso, tendo chegado à última etapa do nosso “PerCurso”, quis voltar àquele ponto de partida da nossa reflexão que, não sendo educado, é como pedra de tropeço em cada etapa do caminho, ao passo que, quando educado, é fermento insubstituível de um razoável progresso do espírito humano.
Relembrando a observação de Lindworsky, deveríamos dizer que viver a solução proposta pelo cristianismo para o problema religioso implica que este fique tão alerta, que o homem esteja sempre pronto a surpreender a eventual correspondência de mente e de coração com o conteúdo proposto, sem a qual toda adesão é ideologia. Tal correspondência – insisto – revela-se no interior de um senso religioso vivo, e por isso é favorecida unicamente por uma educação permanente desse senso religioso.
E é disso que provém a hipótese de que o mistério que circunda todas as coisas, que penetra em todas as coisas, tenha se manifestado diretamente ao homem. O anúncio cristão é que esta hipótese da revelação se tornou real5: o mistério tornou-se fato histórico, um homem disse ser Deus.
Começa a delinear-se, neste ponto, o problema que nos interessa.
4. O coração do problema-Igreja
Quem se depara com Jesus Cristo, seja um dia após o Seu desaparecimento do horizonte terreno, seja um mês depois, ou cem, mil, dois mil anos depois, como pode ser colocado em condições de perceber se Ele responde à verdade que pretende ser? Quer dizer: como uma pessoa pode chegar a compreender se, de verdade, Jesus de Nazaré é ou não o acontecimento que encarna aquela hipótese da revelação em sentido estrito?
Esse problema é o coração daquilo que historicamente se chama “Igreja”.
A palavra “Igreja” indica um fenômeno histórico cujo único significado consiste em ser para o homem a possibilidade de alcançar a certeza sobre Cristo, ou seja, em ser resposta à seguinte pergunta: “Eu, que chego um dia depois que Cristo foi embora, como posso saber se de verdade trata-se de algo que me interessa mais que tudo, e como sabê-lo com razoável segurança?”. Já vimos como não é possível imaginar um problema mais sério do que este para o ser humano, seja qual for a resposta dada a essa pergunta6. Para qualquer homem que entre em contato com o anúncio cristão é imperativo procurar
chegar a uma certeza acerca de um problema tão decisivo para a sua vida e para a vida do mundo. Pode-se, obviamente, censurar o problema, mas, dada a natureza da pergunta, é como respondê-la negativamente.
Portanto, é importante que, hoje, quem vem depois – e até muito tempo depois – possa aproximar-se do acontecimento Jesus de Nazaré de maneira tal a alcançar uma avaliação razoável e certa, adequada à gravidade do problema. A Igreja se coloca como a resposta a essa exigência de avaliação certa. É este o tema que nos propomos a abordar. Esta abordagem pressupõe a seriedade da pergunta: “Quem é verdadeiramente Cristo?”, ou seja, pressupõe um empenho moral no uso da consciência diante do fato histórico do anúncio cristão. Assim como este, afinal, pressupõe a seriedade moral na vida do senso religioso enquanto tal.
Se, pelo contrário, não nos empenhamos com aquele aspecto inevitável e onipresente da existência que é o senso religioso, se a respeito do fato histórico de Cristo achamos que seja possível não tomar uma posição pessoal, aí então a Igreja poderá interessar tão somente de forma reduzida: como um problema sociológico, político ou associativo, para ser combatida ou defendida em relação a esses aspectos.
Que degradação para a razão ser desqualificada exatamente naquilo que torna mais humana e realizada a sua capacidade de nexos, isto é, o senso religioso autêntico e vivo!
Por outro lado, a história, queiramos ou não, com nossa raiva ou nossa paz, foi de fato atravessada pelo anúncio do Deus que Se fez homem.