A liberdade na raiz da obra
Trechos da obra O eu, o poder as obras. Ed. Cidade Nova, 2001, pp. 101-102, 118-122Lembro-me de uma frase de Kierkegaard, segundo a qual os valores permanecem abstratos até que alguém tenha a coragem de dizer “eu” (“Toda comunicação da verdade tornou-se uma abstração. […] Ninguém tem a coragem de dizer eu”; Kierkegaard, 1983, p. 249). Do mesmo modo, podemos dizer: as obras nascem somente quando se tem a coragem de dizer “eu”.
Vocês tiveram coragem de dizer “eu” e, de certo modo, dependendo das mais variadas circunstâncias, vocês arriscaram.
Vem-me à mente também uma frase de um outro filósofo – Nietzsche – que, atacando os cristãos, afirmava que até mesmo as virtudes deles são muito despretensiosas, porque, como os demais, não fazem outra coisa senão buscar a própria comodidade. Ora, para criar uma obra nenhum de vocês seguiu a regra da própria comodidade; seja qual for o tipo de obra que tenham criado, não se afogaram na busca da comodidade.
Vocês deram espaço, voz, forma de ação a quê? A palavra que devemos repetir-nos sempre, a palavra que define a grandeza do homem em relação a toda a realidade – por pequeno e indefeso que possa parecer, ou seja, perante todos os fenômenos que caracterizam a realidade que nos circunda – é a palavra “liberdade”. Dar espaço e iniciativa à liberdade. Essa é a palavra mais sagrada que a Igreja e a educação cristã nos acostumaram a considerar e a venerar. É a palavra que vem imediatamente depois da palavra Deus. A inevitabilidade do destino, que a palavra Deus implica e explicita, põe-se, impõe-se diante da liberdade do pequeno homem. O pequeno homem é, de fato, aquele nível da realidade no qual ela se torna consciência de um destino sem limites, infinito. Liberdade é desejo de uma satisfação inteira e realizada, mas não se realiza no homem a não ser na relação com o Infinito. Por isso, falar de liberdade é falar da religiosidade tal como o cristianismo a percebe, como Cristo nos despertou para perceber.
Liberdade é exigência, desejo, inclinação ao infinito. Mas o infinito, o destino infinito que temos, realiza-se mediante as necessidades quotidianas nas quais a própria sede se articula e se concretiza. As necessidades quotidianas solicitam nossos passos em direção ao Infinito. A necessidade de uma coisa específica é a modalidade com que o destino, o infinito, nos toca, e nós reagimos ao desejo daquela coisa específica. Esta reação – se for a de um eu empenhado e não despretensioso demais, não voltado para a comodidade – enfrenta naturalmente a necessidade com certa sistematização.
Esta é a origem da obra: a tentativa de responder sistematicamente a uma necessidade que pressiona a própria vida a cada hora, a cada dia.
Mas, assim como não é possível nascer sozinho nem viver sozinho, não é possível responder à própria necessidade – seja ela qual for, até a mais singular – a não ser em uma companhia, a não ser com a ajuda de uma companhia. Sozinhos não podemos enfrentar nenhuma necessidade de modo sistemático, como exige a organicidade da nossa vida.
Educação à liberdade
E liberdade é adesão ao ser, amor ao ser, sede de ser, por isso abertura sem limites: não existe temperamento, caráter, que possa ofender-se ou retirar-se dessa feliz proposta original.
Assim, como comprovação do que dissemos, assinalamos os pontos a seguir.
Primeiro, a estima sincera pelo trabalho, estima sincera pelo trabalho que tem uma “prova dos nove”, que é a impaciência (não em sentido raivoso, mas no sentido etimológico da palavra: não é possível ficar tranqüilo), a intolerância perante o desemprego de tantos outros. O fato de muitos não terem trabalho não me pode deixar tranqüilo hoje. Não posso ficar satisfeito com o meu trabalho, que vai bem e me dá resultados, e pronto. A estima sincera pelo trabalho, antes de mais nada, não nos deixa tolerar que outros não trabalhem, porque a educação da liberdade é abstrata se um homem não tiver um trabalho no qual aprenda. É na realização do meu trabalho que compreendo o que é ser livre, ser deixado livre, que compreendo que a minha liberdade é respeitada, e é aí que me dou conta quando, ao contrário, tudo é bloqueado, reduzido, restringido, definido inadequadamente, pré-definido. É impossível acontecer a educação da liberdade sem a possibilidade de um trabalho. Eu explicava aos jovens que um homem desempregado sofre um atentado grave à consciência de si mesmo, segundo um princípio de Santo Tomás: o homem conhece a si mesmo em ação. O homem não conhece a si mesmo quando pára e fica pensando em si mesmo (seria necessária, neste caso, uma objetividade que só poucos alcançam mediante uma educação filosófica adequada), mas percebe o seu valor, as suas faculdades, aquilo de que é capaz, trabalhando, in actu exercito (cf. “In hoc aliquis percipit se animam habere et vivere et esse, quod percipit se sentire et intelligere et alia huiusmodi opera vitae exercere”; Santo Tomás. Quaestiones Disputatae De Veritate, q. X, art. 8, c. cf. também Giussani; O Senso Religioso, Nova Fronteira 2000, pp. 58ss), como afirma Santo Tomás de Aquino. Um homem só conhece a si mesmo em ação, durante a ação, enquanto está em ação. Por isso, sem ter um trabalho na vida, a pessoa conhece menos a si mesma, perde o sentido do viver, tende a perder o sentido do por que vive. Devemos fazer de tudo para colaborar com as forças sociais e políticas que visam a encontrar um trabalho para todos! Não como tantas vezes fazem algumas correntes sindicais, que enfrentam o fogo por aqueles que trabalham e pouco se importam com aqueles que não trabalham. Não digo que todos os sindicatos, sempre, agem assim: limito um pouco minha observação.
Segundo. A liberdade tem como sua primeira expressão poder educar. Na vida concreta, a primeira liberdade não é para comigo mesmo, por assim dizer, mas para com quem eu amo: o filho, o irmão, inclusive, cristãmente falando, a pessoa mais estranha de todas – como um muçulmano em Forli que, depois de ter ouvido um dos nossos apresentar o livro "É possível viver assim?", foi falar com ele e, entusiasmado, aderiu ao que tinha ouvido. Já era nosso irmão antes de se apresentar. Como é desejável, diante de quem se ama, a liberdade da educação, na educação, na ajuda a fazê-lo penetrar em toda a realidade! É desejável para mim, quase mais do que desejável para uma mãe – a mãe deseja isso para o filho. Deve ser o exagero do amor! Mas, não é exagero: é a lógica do amor.
Liberdade de educar. Não se pode fazer jogo político; fazer jogo político com forças que negam a liberdade de educar é vergonhoso! A não ser que trabalhemos para mudá-las; mas precisamos ser realistas: não deve ser apenas um sonho, deve haver motivos sólidos para esperar que isso aconteça – para esperar, contando com a sua influência, meu amigo; caso contrário, perde-se tempo, ilude-se. Por isso, a liberdade de educação é a questão principal. Se um pai e uma mãe geram um filho e não o educam, seria o caso de usar as palavras de Jesus a Judas: “Melhor seria para ele se jamais tivesse nascido” (Mt 26, 24; cf. Mc 14, 21; Jesus dizia isso de Judas, pois o destino da vida do homem é ele: Jesus, o Verbo feito carne, o Mistério feito carne; e Judas traía isso). A liberdade de educação diz respeito à família, não apenas quando há crianças em casa, mas quando se tem de mandá-las ao jardim-de-infância, quando se tem de mandá-las à escola primária, quando se tem de mandá-las ao ginásio e, ainda mais, quando são enviadas ao colégio e à universidade. Parecem capazes de guiar-se sozinhas! Mas não é assim, não! É preciso assisti-las, não as segurando pela mão, como quando são pequenas, mas à distância; porém, é preciso acompanhá-las (como quando se liga o televisor à distância, com o controle remoto).
Terceiro: A justiça. Que exista, numa vida social, uma justiça usada com seriedade, com lealdade, antes de mais nada respeitando aqueles direitos do indivíduo, da pessoa, que caracterizaram o Direito na história da civilização. A civilização existe quando o Direito respeita isso, começa com o respeito a isso. Não se pode afirmar uma justiça destruindo o tecido da vida de um povo, destruindo o bem-estar de um povo, destruindo a possibilidade de um olhar para o futuro de um povo, fazendo com que se percam os corações mais atentos. Os valores primários da pessoa não podem ser perseguidos em nome de um sutil desígnio político: “Já vencemos”, dizia um juiz. Como “já vencemos”? Antes de julgar? Que terrível é uma sociedade na qual a justiça não é justiça! E, para que seja mais justiça, é preciso, antes de mais nada, que o juiz seja humilde, consciente do seu limite. Digo sempre aos jovens: “Para ser verdadeiro na relação com qualquer pessoa, com qualquer coisa, o ponto de partida realista é que eu sou pecador. Então me aproximarei com mais respeito e, com mais serenidade, direi: ‘sim’, ‘não’”.
Quarto. Uma vida política segundo uma posição ideal. Um partido não pode ser partido de um povo se não tiver um ideal que aglutine aquele povo. Um povo é formado por um acontecimento especial ocorrido no tempo, é unido por um ideal que ele almeja (mais conhecido, menos conhecido, mais intuído, menos intuído). Caso contrário, não se tem um povo, mas um rebanho. É esta a maior tentação de quem detém o poder: transformar o povo em rebanho; preservando todas as formas, mas transformá-lo em rebanho! Pasolini usava a palavra “homologação” (cf. Pasolini, 1993, pp. 23, 41, 45ss, 50 e 54). “Povo da Itália, velho titã ignavo,/ vil eu te chamei na cara, e tu me disseste: Bravo!”, dizia Giosuè Carducci no seu Giambi ed epòdi (Avanti! Avanti!, vv. 70-71; 1993, p. 167), quando jovem, sit venia verbis. Uma política que não está preocupada com uma posição ideal, mas em “vencer” por intermédio do poder conquistado, é uma política perversa; e é preciso dizer isso aos próprios filhos, mas sobretudo a si mesmos; é preciso gritar isso aos amigos, é preciso gritá-lo nas praças e nas ruas, escrevê-lo nas paredes.
Uma política, portanto, que esteja preocupada com uma posição ideal. Isto estabelece uma onda educativa, e abre espaço a um respiro maior de liberdade, um respiro mais livre e, portanto, a uma criatividade, a uma imaginação.
Por que não há grandes criadores hoje? Por que é difícil, por que é mais difícil existirem? Porque falta o espaço para o respiro criador. É preciso que a política seja exercida por pessoas que tenham realmente interesse pelo homem (e isto é um dever, quando escolhemos aqueles que nos representarão!). É uma premissa: mais tarde eles falarão de economia, de ferrovias, de exército, de serviços secretos; mas antes devem demonstrar seu interesse pelo homem, devem ter interesse pelo homem. Interesse pelo homem: é isto que torna a política seguidora de Deus, porque Deus é o Senhor, o político por excelência, aquele que tem o poder – graças a Deus! – em última instância irresistível.
A religiosidade, ponto sugestivo de todo o nosso posicionamento, não é algo abstrato: vem de muito longe, de quando fomos criados, feitos, de antes do instante em que o pai e a mãe nos conceberam. Vem de dentro daquele ventre. E dentro daquele ventre havia uma outra Presença que, como diz o Salmo 138, estava presente antes ainda que o ventre de minha mãe me plasmasse (Sl 139[138], 13ss). Vem de longe, portanto, mas penetra até nos terminais últimos dos nossos interesses (interesse: que entra em jogo no nosso ser, que tem a ver com o nosso ser, comigo). Certamente, a premissa que me parece mais importante é que a pessoa sinta a si mesma, tenha amor por si, tenha admiração por si. E pelo menos o fato de eu viver, de eu existir, me enche de admiração e de maravilhamento. Admiração para com quem me faz, e dela faz parte a minha devoção ao pai e à mãe; a meu pai e à minha mãe (nunca falei sem recordá-los, nunca, em quarenta anos). Nós estamos certos do além porque amamos o aquém, por causa de uma experiência que fazemos no aquém: amamos o mundo. Ajudemo-nos a dar a vida pelo mundo, como, de resto, Deus, quando se fez homem, deu sua vida pelo mundo.