História de uma paixão pela historicidade dos evangelhos
Parte do primeiro milagre é a descoberta do «Tu», ou seja, do «Outro». Anotações de uma conversa em um enconto em Milão, no dia 27 de maio de 1995. De «Litterae Communionis», n.47 set/out de 1995.Julián Carrón: Na origem da nossa pesquisa esteve o entusiasmo ideal pelo estudo da historicidade dos Evangelhos que um professor nosso, padre Mariano Herranz, soube infundir em nosso grupo de amigos quando éramos alunos de teologia no Seminário de Madri. As aulas dele eram um acontecimento: tudo era tratado com muito cuidado. Não perdia um minuto. Comunicava-nos os conteúdos com um rigor e uma solidez que conseguiram despertar em nós a paixão pelo estudo sério e rigoroso das Escrituras. Naquelas aulas via-se realizado o que o Vaticano II, na Constituição Dei Verbum, propunha como método de exegese realmente católica: a fidelidade à razão e à tradição. Por isso, padre Mariano utilizava todos os métodos modernos de investigação da Bíblia, com o objetivo de colocar em evidência a verdade da tradição recebida pela Igreja. Estava consciente de que, no âmbito do debate exegético moderno, a fé cristã recebida na tradição somente podia ser defendida mediante um trabalho rigoroso, distante do pietismo superficial e da crítica racionalista. Lembro-me ainda da emoção que experimentávamos quando nos documentava a historicidade dos milagres, do julgamento diante do Sinédrio, ou da Ressurreição, respondendo com precisão a todos os ataques movidos por parte de determinados estudiosos na história da pesquisa sobre as Escrituras.
Por isto, para nós, o estudo dos Evangelhos, ao invés de introduzir a suspeita sobre os conteúdos, confirmava-nos na fé e fornecia-nos argumentos adequados para dar as razões dela. Com estes argumentos, travávamos combates nas outras aulas. A luta começou, de fato, já no seminário.
Durante o curso, o professor Herranz nos ordenava que desenvolvêssemos trabalhos, que naquele período consistiam na tradução de artigos de figuras de primária importância da pesquisa exegética. "Assim", dizia, "vocês aprendem vendo como trabalham os mestres". Não nos deixava perder tempo com coisas de importância secundária, mas desde o início queria que entrássemos em contato com trabalhos de alta qualidade, seja a nível de divulgação, seja a nível técnico. Deste modo, nascia em nós o gosto pelo trabalho sério. Ele corrigia a tradução de todos, para que aprendêssemos. Esta paixão começou a enraizar-se em nosso grupo de amigos, porque víamos que estes estudos nos interessavam cada vez mais. No final do curso, por exemplo, pedíamos aos colegas os trabalhos que tinham feito e passávamos as férias copiando-os a máquina (ainda não existiam as fotocopiadoras). Com o passar do tempo, tomava forma aos nossos olhos a figura de um mestre, excepcional pela gratuidade (comprava-nos ou dava-nos livros de presente, emprestava-nos os seus), pela disponibilidade (quando íamos vê-lo, sempre nos recebia com prazer), pela paternidade e incitamento ao trabalho perseverante, em um amor cada vez maior à Escritura. Quando terminamos os nossos estudos no Seminário, começamos a freqüentar os Cursos de Pós-graduação na Faculdade de Teologia. Ele revisava e corrigia nosso trabalho até na expressão e no estilo. Queria que, além de ser sério e rigoroso no conteúdo, fosse bem expresso na forma, em bom espanhol. Por isto nos recomendava a leitura de boa literatura castelhana para aprender a escrever bem, com elegância e clareza.
Ele reunia em si magníficos requisitos para este trabalho. Quando era jovem, seu bispo o fizera estudar línguas. Adquirira uma excelente preparação em hebraico, aramaico, siríaco, árabe, grego, etc., indispensáveis para o estudo das Escrituras. A isto unia a sua paixão pela literatura. Conhecia admiravelmente os grandes autores da literatura espanhola. Atraíam-no as novelas e os contos breves da literatura de outros países, que diziam coisas verdadeiras de maneira simples e acessível a todos. Isto lhe dava uma intuição literária na maneira de ler as Escrituras, de identificar as dificuldades de um texto ou de intuir as soluções para elas. Com o tempo, percebi também que era um mestre de realismo: observação completa, apaixonada, insistente da realidade, neste caso do texto dos Evangelhos. Lia uma, outra e mais outra vez o texto e, assim, identificava aquelas coisas que a todos os outros passavam despercebidas, aquelas coisas que não funcionavam, as contradições, e encontrava a maneira de resolvê-las com rigor científico e de acordo com a tradição da Igreja.
No nosso grupo de amigos, em que se enraizou esta paixão, estimávamos este trabalho. O conteúdo da nossa amizade, o centro do nosso interesse e das nossas conversas, era o desejo de viver para Cristo, de comunicá-Lo a todos e de estudar cada vez melhor estas coisas. Sem esta ajuda e proximidade recíproca, teria sido impossível manter vivo o sagrado fogo da paixão pelo estudo.
Depois começamos a cursar a Escola Bíblica de Jerusalém. Aquele lugar oferecia duas vantagens indiscutíveis: permitia que nos familiarizássemos com o cenário dos fatos que estudávamos e dispunha de uma esplêndida biblioteca para realizar este tipo de estudos. Muitos de nós estavam indo para o exterior pela primeira vez. Imediatamente, notamos a diferença em relação aos nossos colegas. A maioria já havia realizado estudos em outros centros de prestígio (Roma, Paris, etc.). Nós, porém, no dia seguinte à nossa chegada, já estávamos na biblioteca com um tema perfeitamente identificado diante de nós. Outros colegas, pelo contrário, dispersavam-se durante o primeiro trimestre, ou até mesmo durante todo o curso, buscando identificar na sua mente um tema a ser apresentado no fim. Nós nos sentíamos privilegiados por ter alguém a quem seguir. Os nossos colegas se admiravam também com a capacidade e liberdade de juízo que tínhamos mesmo diante de grandes estudiosos. Não nos sentíamos esmagados diante da sua fama internacional. Fora-nos ensinado a dar valor às opiniões pelo peso das suas razões, e não pelo peso da autoridade de quem as defendia. E à medida que conhecíamos personalidades relevantes, crescia aos nossos olhos a grandeza do nosso mestre, que não empalidecia diante de mestres tão insignes, mas, pelo contrário, deixava aparecer muito mais a sua excepcionalidade. Até estas grandes figuras ficavam surpresas de que jovens não-especialistas como nós pudessem discutir com elas portando razões e argumentos que elas não podiam deixar de levar em conta. O professor Herranz continuava a nos guiar de Madri. Cada um de nós conserva 30 ou 40 cartas do ano que passamos em Jerusalém, mediante as quais ele nos dava apoio com conselhos de todos os tipos, mantinha-se a par das nossas dificuldades ou nos fornecia os elementos necessários para esclarecer os textos que estávamos estudando. As cartas eram verdadeiras jóias literárias. Recomendava-nos aos santos, sobretudo a São Jerônimo e a Santo Agostinho, estudiosos das Escrituras, para que pudéssemos superar as dificuldades que encontrávamos.
O objeto das nossas pesquisas era sempre o substrato hebraico-aramaico da tradição cristã do Novo Testamento, em particular dos Evangelhos. Desde o princípio, o nosso mestre teve a intuição, ainda imprecisa no início, do forte arcaísmo da tradição evangélica. Se era possível demonstrar por detrás do grego dos Evangelhos um original aramaico, este fato tornava manifesta a sua antiguidade. Nisto, a sua posição coincidia com a de um outro grande estudioso, Jean Carmignac, que fomos encontrar em Paris, quando da conclusão da nossa pesquisa. Mas qual é a importância da nossa pesquisa?
Importância da pesquisa
Para compreender a importância do nosso trabalho, é necessário colocá-lo no panorama da história da pesquisa sobre a historicidade dos Evangelhos. Desde o princípio a Igreja acreditou que os Evangelhos tivessem tido a sua origem na pessoa histórica de Jesus de Nazaré, nos seus ditos e nos seus feitos, na sua morte e na sua ressurreição. Sempre considerou tais acontecimentos, portanto, como testemunhos de um fato que aconteceu na história (Dei Verbum, 19). Há alguns séculos, pelo contrário, a partir de um determinado momento, para alguns estudiosos esta interpretação da origem dos Evangelhos não é mais crível, e, assim, é introduzida a suspeita sobre o seu valor histórico. Apesar disso, porém, ninguém podia nem pode colocar em dúvida um dado: a existência dos Evangelhos e o fato de que neles se afirma que um homem, Jesus de Nazaré, é considerado Filho de Deus por parte de um grupo de judeus da Palestina no primeiro século da nossa era. Não sendo mais capaz de reconhecer a explicação da sua origem, dada até então pela Igreja, tornou-se necessário oferecer uma explicação alternativa. Esta interpretação pode ser resumida em uma palavra: "mitificação", isto é, tornar o acontecimento cristão um mito. Segundo esta interpretação, os Evangelhos seriam o resultado de um processo de mitificação da pessoa de Jesus de Nazaré, mediante o qual aquele que não passava de um profeta é transformado no final no Filho de Deus. Era necessário, para a verificação desse processo, postular um lapso de tempo suficientemente longo para que ele se realizasse. Por outro lado, uma vez que era inconcebível que esta mitificação tivesse sido operada por judeus - visto o seu rígido monoteísmo -, dever-se-ia postular ao mesmo tempo a influência do Helenismo, da multidão dos seus cultos e das suas religiões, e isto poderia ter lugar somente fora da Palestina. Explica-se, assim, a urgência de datar os Evangelhos o mais tarde possível e fora da Palestina. Assim, poder-se-ia tranqüilamente afirmar, enfim, que "a verdadeira crítica ao dogma é a sua história" (Strauss).
Contrariamente, se demonstramos que os atuais Evangelhos em língua grega não foram redigidos nesta língua, mas que eles são, ao invés disso, traduções de originais escritos em aramaico, é necessário admitir que foram escritos em uma data muito próxima aos acontecimentos a que se referem e que tiveram lugar na Palestina; certamente, enquanto ainda eram vivos os apóstolos, isto é, as testemunhas diretas dos fatos e das palavras de Jesus. Estamos, assim, numa posição completamente oposta à da afirmação do exegeta protestante Strauss. Para ele, era suficiente relatar a história para colocar em evidência a falsidade do dogma. Nós, agora, podemos afirmar justamente o contrário: a melhor defesa do dogma, isto é, o que a Igreja sempre afirmou de Cristo, é relatar a sua história. Para afirmar que os Evangelhos foram redigidos em aramaico, não é necessário demonstrar isso ao longo de todas as suas páginas. Para poder afirmar isto com certeza, basta documentar um certo número de casos particularmente significativos, cuja única explicação seja o aramaico. Da mesma forma como, por exemplo, não é necessário encontrar fósseis marinhos em toda parte para demonstrar que em uma época remota um determinado território foi inteiramente coberto pelas águas.
Os estudos aos quais me referi foram realizados e estão se realizando em total independência das pesquisas papirológicas conduzidas pelo professor José O'Callaghan ou pelo professor Carsten Peter Thiede. Apesar disto, o resultado a que se chega é idêntico: a Igreja nascente dispunha de textos, aos quais podemos chamar Evangelhos, escritos em um tempo muito próximo à morte de Jesus, redigidos diretamente pelos apóstolos ou por colaboradores dos apóstolos, e usados desde o início para a sua missão. Querendo fixar uma data aproximativa, podemos afirmar que isto aconteceu dentro dos primeiros dez anos - não depois dos primeiros dez anos, mas dentro dos primeiros dez anos! - a partir da morte de Jesus.
Uma confirmação ulterior do que afirmei se encontra em passagens das Cartas de São Paulo, que seriam totalmente incompreensíveis se não se admitisse que, nas comunidades por ele fundadas, durante a celebração litúrgica dos domingos, já fossem lidos alguns escritos que continham os fatos e os ditos de Jesus.
Razões da hostilidade
Mas, então, por que existe tanta hostilidade contra qualquer pesquisa que traga para diante dos nossos olhos um dado que confirma a história das origens cristãs, da maneira como as apresenta a Fé cristã? Porque isto é um ataque contra o dogma não demonstrado da exegese moderna, isto é, contra a teoria de um longo tempo que teria sido necessário para que se escrevessem os Evangelhos.
1) É óbvio que, para aqueles que sustentam que o cristianismo não é um acontecimento histórico, mas o resultado de um processo de mitificação, esta pesquisa constitui um obstáculo decisivo: colocaria em discussão a sua reconstrução da história das origens cristãs. Não houve tempo para que esta mitificação pudesse se verificar: aqui reside o motivo principal da hostilidade contra qualquer tentativa que constitua uma ameaça contra esta reconstrução. Esta hostilidade não faz outra coisa senão trazer à luz a ausência de um verdadeiro desejo de conhecer a verdade histórica. Manifesta aquilo que é certificado pela observação do exegeta protestante alemão A. Schweitzer, isto é, que muitos estudiosos não reconstróem a história por verdadeiro interesse pela história, mas utilizam a história como instrumento para lutar contra o dogma. Isto se torna evidente na maneira como se desqualifica qualquer outra explicação: não se discutem os argumentos. Na discussão da tese de doutorado de um de meus amigos, um dos membros da Comissão se opôs à explicação de algumas passagens complicadíssimas da Carta aos Hebreus a partir do substrato semítico, dizendo que "o autor da Carta aos Hebreus não sabia o hebraico". Como podia saber disso? Na medida em que esta mentalidade anti-histórica penetra também na Igreja, tal hostilidade se reproduz dentro dela.
2) Porém, segundo me parece, a hostilidade dentro da Igreja é de cunho bultmanniano: ou seja, afirma-se que a história tem pouco interesse para a fé. Qualquer tentativa de apresentar um dado histórico que confirme a história cristã é condenada como apologia da fé. Acredita-se que não se faça verdadeira história, verdadeira pesquisa; acredita-se que sejam uma história e uma pesquisa a serviço da fé; uma intenção de demonstrar a fé com a história. Com isto, desqualifica-se a pesquisa. Isto, porém, implica que a única história não merecedora desta desqualificação é a que é contrária à fé. Com este desinteresse pela história, estes estudiosos acabam defendendo aquilo que pretendiam evitar: que a única história verossímil, a única história que não se pode qualificar como apologética é a que se faz como alternativa à história da Igreja.
No fundo, as duas posições são mais próximas do que parece: quer uma quer outra compartilham do pressuposto de que história e Mistério são incompatíveis, isto é, do preconceito de que o Mistério não tenha entrado na história. Disto provém a irracionalidade das duas posições: os primeiros recusam a fé cristã em nome da história, uma história construída sobre a hipótese da impossibilidade de que tenha acontecido o que a fé afirma, a Encarnação; os segundos aderem à fé independentemente da história e sem que se possa afirmar nada sobre a sua historicidade, tornando assim não-razoável a fé.
É a própria natureza da razão que impõe que se reconheçam determinados dados lingüísticos ou históricos. Se estes dados são autênticos, nenhum preconceito pode eliminá-los. Como o preconceito dos fariseus não podia suprimir determinados fatos da vida de Jesus, a ponto de verem-se obrigados a dar outras explicações (bruxaria, possessão diabólica, etc.). O mesmo acontece hoje. Não se pode negar a autenticidade dos fatos simplesmente em nome de um preconceito. Os seus adversários terão de apresentar seus argumentos diante do tribunal da razão. Desqualificar os dados que testemunham a história cristã, sem nem mesmo tê-los levado em consideração, é uma demonstração da incapacidade da razão moderna de medir-se com a realidade dos fatos.
Nós cremos por causa do encontro que fizemos no presente com o Acontecimento de Cristo na Igreja. Não temos necessidade de fazer apologética. A nossa fé se fundamenta sobre o milagre da Presença de Cristo na nossa vida no interior da Igreja. Porém, ficamos contentes quando encontramos dados na história que confirmam aquilo que já hoje vivemos. Este tipo de estudos não pretende, portanto, demonstrar a fé, mas, sim, remover as objeções que a história moderna acumulou contra ela. Como diz Santo Tomás na Summa contra Gentiles (I, 9): quando se trata de verdades que superam a razão, não se deve pretender convencer o adversário com razões (porque a insuficiência das razões confirmá-lo-ia no seu erro, permitindo-lhe que pense que a nossa adesão à verdade se apóie sobre motivações tão débeis), mas devem-se resolver as suas objeções à verdade da fé com argumentos demonstráveis e cheios de autoridade. Grande parte da pesquisa moderna estruturou todo um edifício de objeções contra o cristianismo, entendido como acontecimento histórico feito de meias verdades. O papel de uma verdadeira pesquisa é verificar o valor de tais objeções e demonstrar a sua inconsistência.
Exemplo de nova cultura
Esta pesquisa é um exemplo de cultura nova, de ecumenismo. É a aplicação do princípio de São Paulo: "Experimentai tudo e ficai com o que é bom". Uma razão que não se fecha a priori à possibilidade de que o Mistério entre na história, isto é, uma razão que seja fiel à sua natureza, é a única capaz de valorizar tudo o que há de válido na pesquisa moderna sobre os Evangelhos. Por isso, nós usamos todos os instrumentos, que a pesquisa moderna coloca à nossa disposição (história, filologia, arqueologia, papirologia), que possam servir ao conhecimento mais exaustivo dos Evangelhos e da tradição cristã primitiva. Reconhecendo o que é bom, sem excluir nada, pode-se extrair uma imagem mais completa e mais verídica do Acontecimento cristão. Tendo encontrado providencialmente, isto é, casualmente, a vocês, encontramos uma mentalidade culturalmente idêntica, e isto logo nos uniu como um único movimento.
(Publicado em Litterae Communionis n.47, set/out 1995)
- jc-história-de-uma-paixão-pela-historicidade-dos-evangelhos.pdf 26KBHistória de uma paixão pela historicidade dos evangelhos