O encontro com Francisco De Roux (ao centro)

Colômbia. A verdade em caminho

O medo das perguntas, a necessidade de reconhecer como as coisas se passaram, o perdão ... Diálogo com o padre Francisco De Roux, um dos protagonistas do processo de paz num país devastado por um conflito que parece não ter fim
Doris Soraida Barragan

Como é que eu posso julgar uma miúda que foi alistada pelas Farc com nove anos, aprendeu a matar aos dez e com onze, violada e forçada a fazer um aborto? Quem sou eu? Se tivesse sido eu no lugar dela, que teria sido de mim? Essa é a verdade. " O padre Francisco De Roux, jesuíta, preside desde 2017 à Comissão para a Verdade, principal órgão do processo de paz na Colômbia. «Não é a Comissão para a Verdade», explica imediatamente, «mas a Comissão para o Apuramento da Verdade. Tentamos reconstruir o que aconteceu neste país». Refere-se aos mais de cinquenta anos de conflito armado com os grupos guerrilheiros, incluindo as Forças Armadas Revolucionárias (FARC), os paramilitares, os cartéis da droga, o Exército de Libertação Nacional: uma guerra que matou 265.000 e fez oito milhões de vítimas, entre ataques, sequestros, assassinatos, deslocações forçadas, mutilações, recrutamento de crianças, expropriação de terras.
As negociações de paz começaram em 2012: anos de intensas negociações até 23 de junho de 2016, quando o Acordo de Paz foi assinado em Havana. No dia 2 de outubro seguinte, o Acordo foi submetido a um referendo popular e, com perplexidade, ganhou o "não" à paz. No dia seguinte, De Roux escreveu: "Este resultado pode ser o caminho que nos leva a ultrapassar os problemas mais profundos, que somo nós próprios: divididos, incapazes de estar juntos nas questões importantes, cientes de que nossa animosidade e agressão, que se expressam na política, nos media, nas famílias, têm consequências letais. (...) Devemos aceitar mudar, com realismo e humildade. Fazemos parte do problema e a crise de hoje aumenta a nossa responsabilidade de fazer parte da solução ".

Bogotá. Uma das manifestações pacíficas deste ano

Agora que este delicado caminho está ameaçado pela retomada da violência e dos ataques, nas vésperas das eleições regionais, ele não desanima. O Pe. De Roux estudou economia em Paris e Londres e dedicou todos os seus esforços a projetos de desenvolvimento económico e social no seu país,"mas estou convencido", diz ele, "de que o problema da Colômbia é espiritual. É uma fratura do ser humano. Se não se trabalhar a este nível, não haverá nada a fazer ".

Padre De Roux, como é possível enfrentar uma situação tão complexa e dolorosa como a do nosso povo?
Sempre pensei que os problemas da Colômbia – isto vale para qualquer país, e em particular para nós - são muito profundos. Tráfico de drogas, o conflito armado, o problema das terras, o modo como nos tornámos os principais produtores de cocaína do mundo ... A lista é muito, muito longa. E cada um destes problemas tem um quilómetro de profundidade. Começamos a enfrentá-lo e, quando descemos cem metros, ficamos assustados e dizemos: «Não, não há nada a fazer. É demasiado complicado ". Assim, as coisas nunca mudam. De facto, se não as enfrentamos, as coisas não permanecem como estão, mas crescem. Os problemas pioram. Obviamente, é assustador, porque é perigoso intervir, mas é essencial fazê-lo, se queremos que a loucura não se repita. Por esse motivo, acho que uma das necessidades urgentes ao nível educativo é ensinar que, quando há um problema, é preciso enfrentá-lo até ao fim.

Que caminho está a ser feito?
Ajudar o país a não ter medo das perguntas e a dar um nome aos problemas. Para o nosso trabalho, é um período de escuta. Por exemplo, realizaremos encontros públicos para aprofundar, trazendo as perguntas ao de cima: não traremos respostas, porque queremos estudar e ouvir. Esperamos poder dar algumas respostas em dezembro de 2021, quando teremos que apresentar um relatório, mas agora queremos fazer perguntas, tentando ajudar a não ter medo delas. Esta é a primeira coisa: olhar para os problemas com coragem e sem medo.

Como é que cada um de nós pode contribuir para a reconciliação?
Esta pergunta sublinha justamente que a paz não é um problema dos governos, mas da sociedade. Creio que devemos começar a ser sinceros, autênticos connosco mesmos. Reconhecer a nossa história pessoal, com sucessos e erros, luzes e sombras. Ser fiel a nós mesmos e ter a coragem de ser como um livro aberto: "Este sou eu, com as minhas virtudes e os meus defeitos, com as minhas ilusões e as minhas derrotas. Sou eu, que tive a coragem de me perdoar». Todos temos algo a perdoar-nos a nós mesmos ... Não ter a coragem de nos reconhecer como somos tem como consequência duas limitações importantes: se não reconheço a verdade sobre mim, é muito difícil pedir a verdade ao outro; e se eu não aprender a ter compaixão de mim mesmo e a perdoar-me, é impossível fazê-lo com os outros. Todos nós experimentamos o dilema moral que São Paulo suscita: "Não faço o bem que quero, mas o mal que não quero". É humano. Cometemos erros, mas temos uma dignidade absoluta: uma dignidade, dentro de uma imensa fragilidade, que não é destruída quando cometemos um erro. Nós somos necessitados. Eu, que cometi muitos erros, repito-me todos os dias: "Mas quem sou eu para julgar, afirmar que o outro é mau, quando sei o que eu fiz?" Se eu preciso de compaixão para mim mesmo, como posso não ter compaixão por um irmão? Sem sequer saber em que circunstâncias ele teve de agir, em que dificuldades ...

Como é que a recuperação da memória dos factos ocorridos pode ajudar a reconstruir? Descobrir como foram as coisas não aumenta o ódio e a violência?
O país negou a memória dos factos que ocorreram. Enquanto sucediam, a maioria da população desviou o olhar. Há um medo de que a verdade acabe por nos polarizar ainda mais, aumentando o desejo de vingança. É claro que é fácil descobrir como foram as coisas e dizer: "Vejam como eles são maus, merecem ser odiados e excluídos, não devem fazer parte de nós". Pode-se usar a verdade para dividir. Mas se a entendermos de forma correta, a verdade é necessária para compreender melhor quem somos e aprender a ter compaixão por nós e pelos outros.

O caminho da paz só é possível se chegarmos ao perdão? E o que é que significa hoje para si perdoar? Também perdeu tantos amigos e colaboradores ...
Estou convencido de que o perdão é um dom de Deus, que não acontece naturalmente: nem pedir perdão, nem perdoar. Ambos são atos da graça. Durante estes anos, tive que enterrar muitos amigos. Aprendi que pedir para perdoar às vezes pode ser uma falta de respeito. Devemos acolher as vítimas na sua dor, abraçá-las, ouvi-las até o fim, identificarmo-nos com elas e acompanhá-las: se lhes oferecermos um grande amor, pode acontecer que surja no coração a decisão de perdoar, mas que é sempre, absolutamente, gratuita. Quando o perdão é verdadeiro, não esperamos nada do nosso carrasco, tal como Deus faz connosco: dá-nos o perdão como um dom total. No Antigo Testamento, o pecado implica uma culpa pela qual se deve pagar: nada permanece impune. Mas no Novo Testamento, quando se manifesta a misericórdia, o perdão tira o castigo: Deus é absolutamente livre, perdoa tudo. O Senhor pede apenas duas coisas: que te arrependas e que te abras à misericórdia. E como Deus não pode perdoar em abstrato, ele perdoa através de nós, ele perdoa reconstruindo a pessoa que nos magoou e reconstruindo-nos a nós próprios, resgatando-nos como seres humanos.


Como é que o Pe. DeRoux o vive?
Julián Bolívar, comandante do bloco central de Bolívar, matou a minha amiga Alma Rosa Jaramillo. Matou-a com os seus homens, serraram-lhe os braços e pernas com uma serra elétrica e decapitaram-na. Eu disse publicamente a Bolivar: "Perdoo-te". Perdoar é trabalhar para a transformação de Bolívar no homem que Deus quer que ele seja, para que se redima, porque o que ele fez destruiu-o como ser humano. Mas isso já é da conta de Deus, é "perdoai-nos as nossas ofensas assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido". Lutamos para que aqueles que nos fizeram mal possam mudar como seres humanos. "Fazei o bem a quem vos persegue, rezai por quem vos ofendeu": isto significa colocarmo-nos no caminho da reconciliação. São coisas muito profundas. Entra-se no perdão cristão: "Amai os vossos inimigos". É chegar a fazer o que Jesus faz: "Sei que a tua situação é muito difícil, é muito arriscada. E eu decidi dar a minha vida por ti». É disto que se trata: a minha vida pela dele. Não se pode pedir isto a um político, nem se pode afirmá-lo num ambiente puramente social, porque não seria compreendido. Mas este é o testemunho cristão do perdão. Chega até aqui. E a justiça transicional aproxima-se disso.

Pode explicar melhor este método da justiça transicional que caracteriza este processo de paz?
O que se pede às pessoas que fazem parte da JEP (Jurisdição Especial para a Paz) é que partam da verdade. A verdade não pode ser simplesmente assumir responsabilidades, mas dizer: «Eu vou contar o que fiz. Vou contar, no caso de Alma Rosa, como e porque é que a raptámos, aonde a levámos, como a despimos e violámos, como lhe cortámos o primeiro braço, e o segundo braço... contar quais foram as razões por que o fizemos, porque sabíamos que ela era uma advogada que nesse dia ia abrir um processo contra nós e morreu nas nossas mãos desta maneira; por isso a lançámos num pântano, no Magdalena Medio. Não se afundou, e por isso foi encontrada». Este é o ponto de partida da JEP, tens de dizer uma verdade e demonstrar, para além dessa verdade, que estás disposto a reparar, que estás disposto a nunca mais voltar a fazê-lo. Se fizeres isso, és aceite na justiça transicional. Ficas em liberdade condicional e terás de reparar. Mas não sou eu, como juiz, quem vai dizer como será a reparação: vou chamar a família de Alma Rosa e serão eles a dizer como será a reparação.

Pode dar um exemplo?
Tomemos o caso dos onze membros da assembleia do Valle del Cauca, que estiveram sequestrados durante cinco anos, e foram mortos na semana em que iam ser entregues. Já houve um ato em que as FARC pediram perdão e as famílias perdoaram. Mas tem de passar pela justiça transicional para que nasça realmente uma reconciliação. As famílias já decidiram o que vão pedir: querem que os responsáveis se retirem para viver num terreno no Valle del Cauca e durante os 8 anos em que vão ficar lá, construam com as suas próprias mãos, comprando eles os materiais (cimento, tijolos, ferro, etc.), uma escola para 2500 alunos. Serão eles os pedreiros e os pintores. É uma das coisas mais bonitas da JEP. Ou as vítimas da operação Génesis, conduzida pelo General Rito Alejo del Río, em que muitas famílias foram massacradas e que obrigou a enormes deslocações da população. As famílias mandaram-lhe uma carta: «General, convidamo-lo a vir aqui, a viver connosco, a trabalhar connosco».

Que uma pessoa receba o abraço da misericórdia na sua história é uma coisa do outro mundo.
É o trabalho mais importante que precisa de ser feito, que as pessoas possam voltar a encontrar a fé. Eu acredito que vocês, como Comunhão e Libertação e pelo vosso empenho educativo, podem dar uma contribuição muito importante, porque esta tarefa requer a fé: uma compreensão muito profunda da fé. A fé não é um problema de religião, é um problema de "eu quem sou". Em última análise: qual é a consistência da minha pessoa? Julián Carrón diz que se estão a perder as evidências que cada um de nós tinha. Então, temos que pensar nisto: se um homem perde as suas evidências, como pode construir? É preciso começar desde o princípio. Voltar a trabalhar sobre isto, reconhecendo a humanidade de cada um de nós.


Desde há quatro anos, com alguns amigos do movimento, fazemos caritativa num centro de reabilitação militar. Encontramos jovens soldados, mutilados e sozinhos, porque as suas famílias estão longe. Tocar as suas histórias é sentir o país e ajuda-nos a perceber que a responsabilidade que temos é acompanhá-los, para que eles possam reconhecer que, mesmo nestas condições, são amados e as suas vidas continuam. Mas somos nós que somos ajudados por eles: ficamos sem palavras ao ver o drama que eles vivem e a força que continuam a ter.
Lembram-me o que o Papa fez connosco quando veio em 2017. Há um sério trauma cultural entre nós, do qual nasce a polarização. O número de vítimas é tão grande, em todas as classes sociais, e a dor está em toda parte: isto gera indignação, raiva, desejo de vingança, que se espalham via WhatsApp, Twitter, Facebook, TV, jornais, discursos dos líderes políticos, até nas palavras dos padres na missa. Estamos todos condicionados, estamos imersos. Um verdadeiro trauma. O Papa percebeu isso e tentou fazer-nos sair, ir além.

Como?
Alguns Bispos, nos discursos que dirigiram a Francisco, nunca usaram a palavra paz, porque não conseguiam. Ele usou-a sessenta vezes. Dos quatro dias em que esteve aqui, usou três para conversar connosco e dedicou um dia às vítimas, apenas a elas, transmitindo uma mensagem que é como a que vocês transmitem quando fazem a caritativa. O Papa disse: «Irmãos Bispos, parem de fazer belos discursos e estabelecer regras, pensando que, estabelecendo regras as pessoas melhoram e tiram o País desta situação. Ponham as mãos no corpo ensanguentado do vosso povo: as vítimas. Vão ter com elas, caso contrário não vão compreender». É o que vocês fazem quando visitam aqueles soldados.