Carrón: junto ao Papa nas periferias do humano

Entrevista com Julián Carrón - por Giorgio Paolucci

“A exortação apostólica Evangelii gaudium solicita-nos a uma Igreja missionária”

Há sessenta anos don Giussani reformulava no Liceu Berchet de Milão o desafio do cristianismo como resposta razoável e entusiasmante às exigências de todo o homem. E em 2005, ano da sua morte, o padre Julián Carrón recuperava o testemunho do fundador.

Na Exortação Apostólica “Evangelii gaudium” o Papa Francisco aponta o caminho da Igreja para os próximos anos. Padre Carrón, o senhor guia a Fraternidade de CL. O que é que o Movimento tem a aprender com essas indicações?
Somos desafiados a renovar o encontro pessoal com Cristo, todos os dias e sem descanso. É aqui que está a origem da “conversão pastoral e missionária” que é solicitada no documento. Francisco diz claramente que a fonte do ardor missionário é um homem que vive da memória grata de Cristo e quer partilhar a alegria provocada pelo Evangelho. Ele indica a nascente, pede que o anúncio se centre no essencial.

O Papa escreve que o cristianismo não dispõe de um modelo cultural único e que, “permanecendo o que é, na fidelidade total ao anúncio evangélico e à tradição da Igreja, o cristianismo assumirá também o rosto das diversas culturas e dos vários povos onde for acolhido e se radicar”. Como se verifica isto no vosso Movimento, que deitou raízes em muitos países?
A presença de comunidades nossas em 80 países, em contextos muitos diversos, e as amizades que se formaram com pessoas de tradição ortodoxa, anglicana, judaica, muçulmana, budista, são testemunho de que, quando se investe no essencial é possível estabelecer um diálogo com o coração de qualquer homem, em qualquer latitude. Acontecem casos comoventes: uma mulher africana não conseguia ter filhos e a família do marido pressionava-o para que a deixasse, como requer a tradição local. Mas o homem, vendo-a tão feliz na experiência que ela vivia na comunidade de CL, resistiu às pressões por não querer-se privar da alegria da fé que ela testemunhava, e que era maior do que a impossibilidade de engravidar. É um pequeno-grande exemplo de como o cristianismo valoriza e exalta totalmente o que é humano.

O documento realça o valor da experiência como veículo privilegiado para a transmissão da fé. E na pedagogia de CL a experiência desempenha um papel fundamental. De muitos lados, especialmente em ambientes ligados ao tradicionalismo, chegam críticas sobre o perigo de que a ênfase na experiência pessoal deixe na sombra a referência rigorosa à doutrina e constitua um obstáculo à verdade. O que pensa disso?
O Papa Francisco segue na esteira dos seus predecessores, João Paulo II e Paulo VI, ao afirmarem que “o homem contemporâneo acredita mais nas testemunhas do que nos mestres, mais na experiência do que na doutrina, mais na vida e nos factos do que em teorias” (Redemptoris Missio 42; cf. Evangelii Nuntiandi 21, 41, 76). Só experimentando a pertinência da verdade da fé para as exigências da vida é que o homem pode encontrar razões adequadas para aderir a ela. No cristianismo a verdade fez-se carne pra que o homem pudesse ter experiência dela e, dessa forma, encontrar os motivos para uma adesão plenamente razoável. Foi o que aconteceu aos primeiros: André e João não sabiam quem era aquele homem, mas seguiram-no por causa da correspondência humana que descobriram no encontro com ele. Nunca ninguém os tinha olhado assim antes disso!

Francisco sublinha que os movimentos são uma riqueza da Igreja que o Espírito suscita para evangelizar todos os ambientes. E acrescenta que “é muito salutar” que não percam o contacto com a paróquia “e que se integrem de bom grado na pastoral orgânica da Igreja particular”. Como vivem os membros de CL esse relacionamento, que no passado foi motivo de incompreensões e divergências?
O Papa pede para saírmos rumo às periferias existenciais para ir ao encontro de todos, crentes e não crentes, sem estar à espera de que os homens nos venham procurar. Ele é o primeiro a dar o exemplo com as suas palavras e o testemunho que oferece. CL nasceu e propagou-se nos vários ambientes – escolas, universidades, trabalho, bairros – mas os membros de CL não desdenham, de maneira nenhuma, as paróquias. Só na diocese de Milão há quatro mil envolvidos a vários níveis: catequese, coros, sociedades desportivas, actividades extra-escolares, ação educativa nos centros paroquiais. Insinuar uma contraposição ou uma rivalidade ente CL e as Igrejas locais é uma coisa que não corresponde à verdade: o dever a que o Papa todos chama é a cooperação com a única missão da Igreja, ir ao encontro dos homens para testemunhar a alegria do Evangelho. Precisamos todos deslocar o centro de gravidade.

O primeiro documento inteiramente escrito por Francisco está dedicado à evangelização, tendo sido assinado no próprio dia em que se concluiu o Ano da Fé proclamado por Bento XVI. Há então uma forte continuidade entre os dois pontífices, que muitos continuam a considerar muito diferentes?
É a paixão por Cristo que une Bento e Francisco. O primeiro captou a necessidade de recomeçar a partir dos fundamentos, o segundo recebeu o testemunho insistindo na urgência missionária. Ambos têm a clara percepção de que a fé já não pode ser um dado adquirido e que, na origem da missão, está a urgência da conversão pessoal. Francisco diz isto preto no branco no início da Evangelii gaudium (n. 7): “Não me cansarei de repetir estas palavras de Bento XVI que nos levam ao centro do Evangelho: ‘Ao início do ser cristão, não há uma decisão ética ou uma grande ideia, mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa que dá à vida um novo horizonte e, desta forma, o rumo decisivo’”. Aqui é claramente patente – com a diferença de temperamentos e de sensibilidades que obviamente se mantém (e que é sempre uma riqueza) – a unidade das intenções. Mas, desculpe, quem realmente conhece e vive a Igreja poderia pensar de outra maneira?

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