Amava a Deus, mas sem retórica

Giuliano Ferrara

O grande abraço, caloroso, sofrido e alegre, que marcou a morte e a celebração, na Catedral, desse grande padre de Brianza, desse conquistador de almas e maiêutico das consciências para algumas gerações, talvez se explique com um conceito simples: Giussani reconsagrou a narrativa cristã em sua substância, desconsagrando-a em sua forma, isto é, arrancando-lhe aquela aura hierática e ritual, distante e sideral, fixada no frio da Igreja institucional, e restituiu ao Evangelho o seu impacto radical, exigente, entusiasta, vital e direto para o homem livre da época contemporânea. (...) Muitos pregaram e ensinaram denunciando a crise do cristianismo, e a “crise católica” foi pintada em seus mínimos detalhes, com uma infinita retórica literária que percorre todo o séc. XX, mas Giussani tinha uma linha de grande liberdade, até de ousadia, e de amor pela experiência histórica e política, tanto que os seus rapazes e a classe dirigente formada por ele se entregaram ao mundo, à poesia, à música, à literatura, ao capitalismo popular dos negócios que agradam a Deus e se chama obras, até à lógica da política e dos engajamentos e das alianças, e à batalha do poder dentro da própria Igreja, com uma volúpia quase mística, e sempre com uma límpida devoção, que é fácil tratar com desprezo, mas que é, na realidade, uma sólida fé nutrida por uma sólida cultura. E foi, em certo sentido, a fuga da retórica da crise. Agora todos os celebram com palavras de encômio, de compreensão, porque todos sabiam, privadamente, que Giussani era a origem de um grande fenômeno social e cultural, além de fé vivida e de experiência religiosa, mas durante sua vida foi um dever laico e público, politicamente correto, desprezar ou deformar ou hostilizar a sua incômoda presença. Comunhão e Libertação cresceu como criatura de Giussani apostando no testemunho visível da fé e da cultura cristãs, teve os seus intregrismos e os seus fechamentos, cometeu os seus erros e hoje tem o aspecto consolidado de um movimento que se contenta em pensar em harmonia dolorosa com o fim do reino de João Paulo II. Mas o seu valor para os laicos está na sua resistência, na sua perseverança, na sua obstinação não-presunçosa, humilde no fervor e grandioso na inculturação da fé, segura de si para além de qualquer dúvida, porque diretamente ligada ao fato, não à idéia, da encarnação de Deus em seu filho morto e ressuscitado. Sem o espetáculo do “credo”, recolocado em cena por um simples padre, rico de carisma, as aventuras da razão não valeriam o preço do ingresso.

(Giuliano Ferrara, Revista “Panorama”, 3 de março de 2005).

Amava a Deus, mas sem retórica

Giuliano Ferrara

O grande abraço, caloroso, sofrido e alegre, que marcou a morte e a celebração, na Catedral, desse grande padre de Brianza, desse conquistador de almas e maiêutico das consciências para algumas gerações, talvez se explique com um conceito simples: Giussani reconsagrou a narrativa cristã em sua substância, desconsagrando-a em sua forma, isto é, arrancando-lhe aquela aura hierática e ritual, distante e sideral, fixada no frio da Igreja institucional, e restituiu ao Evangelho o seu impacto radical, exigente, entusiasta, vital e direto para o homem livre da época contemporânea. (...) Muitos pregaram e ensinaram denunciando a crise do cristianismo, e a “crise católica” foi pintada em seus mínimos detalhes, com uma infinita retórica literária que percorre todo o séc. XX, mas Giussani tinha uma linha de grande liberdade, até de ousadia, e de amor pela experiência histórica e política, tanto que os seus rapazes e a classe dirigente formada por ele se entregaram ao mundo, à poesia, à música, à literatura, ao capitalismo popular dos negócios que agradam a Deus e se chama obras, até à lógica da política e dos engajamentos e das alianças, e à batalha do poder dentro da própria Igreja, com uma volúpia quase mística, e sempre com uma límpida devoção, que é fácil tratar com desprezo, mas que é, na realidade, uma sólida fé nutrida por uma sólida cultura. E foi, em certo sentido, a fuga da retórica da crise. Agora todos os celebram com palavras de encômio, de compreensão, porque todos sabiam, privadamente, que Giussani era a origem de um grande fenômeno social e cultural, além de fé vivida e de experiência religiosa, mas durante sua vida foi um dever laico e público, politicamente correto, desprezar ou deformar ou hostilizar a sua incômoda presença. Comunhão e Libertação cresceu como criatura de Giussani apostando no testemunho visível da fé e da cultura cristãs, teve os seus intregrismos e os seus fechamentos, cometeu os seus erros e hoje tem o aspecto consolidado de um movimento que se contenta em pensar em harmonia dolorosa com o fim do reino de João Paulo II. Mas o seu valor para os laicos está na sua resistência, na sua perseverança, na sua obstinação não-presunçosa, humilde no fervor e grandioso na inculturação da fé, segura de si para além de qualquer dúvida, porque diretamente ligada ao fato, não à idéia, da encarnação de Deus em seu filho morto e ressuscitado. Sem o espetáculo do “credo”, recolocado em cena por um simples padre, rico de carisma, as aventuras da razão não valeriam o preço do ingresso.

(Giuliano Ferrara, Revista “Panorama”, 3 de março de 2005).