A homilia do Cardeal Angelo Scola na missa pelo trigésimo aniversário da Fraternidade de CL e o sétimo da morte de Dom Giussani. Catedral de Milão, 22 de fevereiro de 2012

Angelo Scola

1. “Homem algum é senhor do sopro, para reter esse sopro” (Primeira Leitura, Ecl 8,8). O autor do Livro do Eclesiastes, um “Pregador” que se tornou tristemente astuto, que viveu no século II a.C. e se identifica com o rei Salomão, indaga, com realismo cru, a precariedade da existência humana. Em particular está escandalizado com a impossibilidade de fazer justiça na história dos homens: “Vi também levarem ímpios à sepultura” – também eles não têm poder sobre o sopro vital – [mas] “quando saem do lugar santo, esquecem-se de como eles haviam agido na cidade” (Primeira Leitura, Ecl 8, 10). Este esquecimento calculado é intensificado pelo fato de que “uma vez que não se executa logo a sentença contra quem praticou o mal, o coração dos filhos dos homens está sempre voltado para a prática do mal” (cf. Primeira Leitura, Ecl 8,11).
A profundidade da constatação (“vi” é a expressão que o Eclesiastes mais utiliza) apenas é igualada pela sua extraordinária atualidade. O Eclesiastes não se limita, com efeito, a evidenciar a inevitabilidade da morte que, como um ruído de fundo, acompanha a vida de todos os homens. Nem se detém na angustiante pergunta: “[o homem] não sabe o que acontecerá, quem pode anunciar-lhe como há de ser?” (Primeira Leitura, Ecl 8,7). Entra no cotidiano da existência no qual se misturam verdade e mentira, bem e mal, justiça e injustiça.
É a trama dos fatores em jogo que lhe permite tecer a tela da humana vanitas. Quem de nós, aqui reunidos em oração, para renovar o vínculo paterno de comunhão que nos liga ao querido Monsenhor Giussani, pode ficar indiferente às interrogações angustiantes e às amargas constatações do Eclesiastes? Não é por acaso que a Igreja, Mãe e Mestra, nos convida a ler a circunstância que nos reúne através da Palavra de Deus proclamada nesta santa ação eucarística. A liturgia é a forma (o paradigma) da vida que ilumina a realidade, trama de circunstâncias e de relacionamentos, como Monsenhor Giussani tanto gostava de defini-la.
Vanitas afirma o Eclesiastes, ou seja, inconsistência. Inconsistência do nosso humano ser e do nosso agir.

2. “Mas eu sei também que há o bem para os que temem a Deus... mas que não há o bem para o ímpio” (Primeira Leitura, Ecl 8,12-13). Refletindo sobre cada ação que se realiza sob o sol, o Eclesiastes encontra no temor de Deus a tábua à qual se agarrar no vasto abismo do mal. Isto, porém, não parece libertá-lo completamente do risco do naufrágio, pois “há justos que são tratados conforme a conduta dos ímpios e há ímpios que são tratados conforme a conduta dos justos. Digo que também isso é vaidade” (Primeira Leitura, Ecl 8,14).
Esta pressão do mal que atormenta o nosso eu e faz sentir todo o seu peso no mal do mundo, e de que se fala a propósito e indevidamente nestes tempos de aflição, não pode então ser dissolvido? O Eclesiastes antecipa o grito de Paulo: “Infeliz de mim! Quem me libertará deste corpo de morte?” (Rm 7,24).
Um aspecto genial da proposta educativa de Monsenhor Giussani não foi, justamente, a eficaz re-proposição da verdade cristã segundo a qual ninguém se pode salvar sozinho?
A decisão de celebrar a Missa Votiva do Santíssimo Nome de Jesus no 7º aniversário da morte de Monsenhor Giussani e para recordar o 30º aniversário do reconhecimento pontifício da “Fraternidade de Comunhão e Libertação”, indica claramente qual é a estrada da salvação oferecida a cada um de nós e à humanidade inteira.
Assim, com efeito, rezamos na Oração do início da Assembleia litúrgica: “Pelo vosso Filho que veio até nós, escolhestes, ó Deus, um nome que claramente O manifestasse como salvador do gênero humano...”. O nome de Jesus significa “Deus salva”. Verdadeiramente, Jesus desfez o enigma do homem revelando-lhe a sua consistência. Ela está radicada no amor com o qual Deus “nos sacia com Seu amor pela manhã” e “confirma a obra de nossas mãos” (Sl 90,14a.17).

3. Em Jesus, a vanitas (inconsistência) é vencida. “Adorno do nome admirável que exprime salvação” – diz o Prefácio –, Jesus nos acompanha, resgatando-nos do nosso pecado. E o texto litúrgico acrescenta, detalhando com intensidade: “Doce e reconfortante certeza é a Sua proteção nos perigos da vida, e no momento da morte o Seu nome invocado é esperança e conforto”.

Todas as coisas têm consistência em Cristo: “Omnia in Ipso constant” (Cl 1,17). É importante meditar bastante e conformar o nosso viver cotidiano a esta convicção. Cada coisa significa tudo. No mistério glorioso do Verbum caro tudo foi salvo porque tudo foi assumido por Cristo. Desde os seus primórdios, a tradição da Igreja ambrosiana transformou o método da ação de Deus na história dos homens (encarnação) numa fecunda proposta educativa. Gerou, dessa maneira, ao longo dos séculos, filhos conscientes de que “demasiado tempo perde quem bem não ama” a Jesus
Monsenhor Giussani expressou esta sensibilidade ambrosiana com força profética desde os anos 1950, educando na assunção integral de cada aspecto da existência humana. Pela lógica da encarnação, o cristão é aquele que testemunha – na família, no trabalho, no social em todos os níveis, até chegar ao compromisso político – a obra salvífica do Crucificado Ressuscitado.

4. Amigos, a ação eucarística desta tarde põe cada um de nós diante de uma alternativa, às vezes tácita e quase imperceptível, às vezes poderosa, que acompanha cada ação nossa. Sob a pressão do mal, físico e sobretudo moral, pode ganhar peso também no cristão a tentação de pensar que tudo seja vanitas, inconsistência. Ou o cristão presume, na prática, que se pode salvar por si mesmo, acabando, algumas vezes, como os escribas, por procurar “ocupar os primeiros lugares nas sinagogas” (cf. Evangelho, Mc 12,38-39). Ou então a sua liberdade cede ao chicote amoroso do Salmo: “Fazes o mortal voltar ao pó, dizendo: ‘Voltai, filhos de Adão!’” (Salmo Responsorial), como nos recordará, daqui a alguns dias, a imposição das Cinzas.
O regresso, fruto do perdão, torna-nos capazes de amor objetivo e efetivo. Assim como o Eclesiastes, também Jesus é um atento observador da realidade: “sentado frente ao Tesouro do Templo, observava...” (Evangelho, Mc 12,41). A viúva, que lançou no tesouro “tudo o que possuía para viver” (Evangelho, Mc 12,44), mostra a forma plena da liberdade do cristão. Em cada ação ele é chamado a exprimir o primado de Deus na sua vida. A vitória sobre a vanitas, a graça da consistência, assenta inteiramente no reconhecimento de Cristo presente que solicita o dom total de si. Memória e oferta exprimem deste modo a plenitude afetiva por que cada homem anseia e de que o cristão autêntico pode fazer experiência.

5. O Evangelho de hoje oferece um último ensinamento precioso. Está contido numa pequena passagem narrativa, oculto como uma pérola nas dobras do trecho evangélico proclamado: “E chamando a si os discípulos” (Evangelho, Mc 12,43), Jesus ajuda-os a compreender o gesto da viúva.
O que transparece neste gesto de Jesus? O vínculo sólido entre os membros daquela primeira companhia gerada por Ele. Um parentesco mais forte do que o da carne e do sangue, uma fraternidade na qual se antecipa – como transparece na Santa Eucaristia – a vida do Paraíso. Cristo chama os Seus a fazer a experiência inaudita de que a consistência do eu se chama comunhão.
Comunhão como estima a priori pelo outro, porque temos em comum o próprio Cristo. Comunhão disposta a todo sacrifício pela unidade, para que o mundo creia. “A expressão madura da partilha cristã é, portanto, a unidade até o sensível e o visível. Esta foi a expressão do tormento final de Cristo na sua oração ao Pai, quando indicou consistir em tal unidade sensível e visível o testemunho decisivo dos Seus amigos” (cf. Giussani, L. O caminho para a verdade é uma experiência. São Paulo: Companhia Ilimitada, 2006, p. 65). Aqui está a vitória sobre a vanitas. Aqui, comunhão é libertação.
“A nossa comunhão é com o Pai e com o seu Filho Jesus Cristo” (1Jo 1,3b). Quando, pela graça, nos tornamos amigos de Deus, a comunhão desenvolve um movimento irresistível de partilha da vida de todos os irmãos homens em cada ambiente da existência humana. A gratidão por ter recebido tudo gera gratuidade no dar tudo.

6. Caríssimos, o carisma católico que o Espírito concedeu a Monsenhor Giussani, que a Igreja reconheceu universalmente, e do qual dezenas de milhares de pessoas em todo o mundo podem hoje gozar, floresceu nesta santa Igreja ambrosiana. O amor que Monsenhor Giussani tinha por ela é documentado por milhares e milhares de sinais e testemunhos. Para os fiéis desta diocese, pertencentes ao Movimento de Comunhão e Libertação, este dado de fato constitui uma responsabilidade que exige ser sempre renovada: praticar, na assunção cordial do princípio da diversidade na unidade, uma profunda comunhão com toda a Igreja diocesana que vive à imagem da Igreja universal. Esta comunhão é com o Arcebispo, com os sacerdotes, com os religiosos e as religiosas, com todas as congregações de fiéis, com todos os batizados e com todos os habitantes dessa nossa “terra do meio”.
O Encontro dos Movimentos Eclesiais e das Novas Comunidades, no dia 30 de maio de 1998, com o Beato João Paulo II, marcou uma passagem irreversível a uma nova fase eclesial confirmada pelos eventos que vêm sendo produzidos na Igreja e no nosso país.
Como recorda incessantemente Bento XVI, este é o tempo da nova evangelização para a qual todas as realidades eclesiais devem concorrer em harmoniosa unidade.
O homem pós-moderno pede salvação, consistência: por isso, precisa de testemunhas daquela forma bela do mundo (Eccelsia forma mundi) que é a santa Igreja de Deus.

7. “Concedei-nos generosamente a ajuda da Vossa graça e assegurai-nos a alegria de encontrar escritos no céu os nossos nomes”. Estas palavras da Oração Depois da Comunhão revelam a fonte da nossa letícia e da nossa esperança: Jesus Cristo vivo no meio de nós e termos familiaridade com Ele para o bem dos nossos irmãos homens. Amém.