Um mistério de escolha

Palavra entre nós
Luigi Giussani

Notas de um diálogo de Luigi Giussani com um grupo de Memores Domini. Tabiano, Itália, 1º de outubro de 1995


Desculpem-me esta exceção, mas, mesmo tendo chegado depois do prazo máximo, a pergunta me parece preciosa.

Pergunta: Eu tinha tido a impressão, ontem, de que o chamado de atenção, a argumentação fosse sobre o fundamento, sobre o Mistério, ou seja, fosse de tipo ontológico, e não, ao contrário, baseada nas conseqüências éticas. Gostaria de saber se essa impressão é correta e, se for assim, por quê.
Padre Giussani: Não sei se conseguirei responder à segunda parte da pergunta, mas esta é a pergunta fundamental.

I
A carência, ou seja, a falta, a coisa difícil, aquela à qual a alma não pode chegar se o Senhor não a pegar, puser debaixo do braço e a carregar para frente (como diz o Salmo 63: “Minha alma se agarra em vós, com poder vossa mão me sustenta”), é a grande verdade, é uma revelação de valor ontológico.
O ontológico é “a maneira como é feito o real”. O que é a razão? Consciência da realidade segundo a totalidade dos seus fatores. O que não é consciência da realidade é fantasia determinada por um sentimento e, portanto, por um egoísmo, por uma pusilanimidade ou por uma mesquinhez. O ontológico, ainda que a palavra seja difícil, quer dizer: “Aquilo que é, na realidade”. E, na realidade, uma coisa é da maneira como foi feita por um Outro, não por nós! É como se as mãos que colocamos sobre essa coisa, a cabeça com a qual lidamos com ela, o coração que sacrificamos por ela “deslizassem” sobre ela, é como se brincassem, é como se brincassem com uma coisa alheia, com uma realidade, ou seja, com o tornar-se presente do Ser, com a modalidade com a qual o Ser se torna presente, com a qual Deus, o Mistério, se torna presente.
Quero começar de uma coisa da qual vocês não se lembram mais e da qual me lembrei por acaso ontem ou anteontem. Leio.
“Falamos fundamentalmente da natureza da razão como relação com o infinito [um milímetro para aquém do infinito, de “todo” o infinito – o que é uma contradição, mas é um paradoxo mais que uma contradição –, e a pessoa morre!], que se revela como exigência de explicação total. O vértice da razão é a intuição da existência de uma explicação que supera a sua própria medida [o vértice da razão é a intuição de que existe uma resposta, mas está acima da sua medida]. (...)
Ora, quando a razão toma consciência total de si e descobre que a sua natureza se realiza, em última instância, na intuição do inatingível, do mistério, ela não cessa de ser exigência de conhecimento [a razão não deixa de ser exigência de conhecê-lo; entende que não pode conhecer o mistério, mão não deixa, não pode deixar, por natureza, de pedir, de buscá-lo]”.
Estou relendo o capítulo XIV de O senso religioso1, que a maior parte de vocês guardou no porão, porque é um livro... já lido!
“Portanto, uma vez descoberto isso [ou seja, que a resposta está além de si], o anseio da razão é poder conhecer aquela incógnita. A vida da razão é dada pela vontade de penetrar no desconhecido (como o Ulisses de Dante), de passar além das colunas de Hércules, símbolo do limite que a existência coloca contínua e estruturalmente [ontologicamente] diante desse desejo [“ontologicamente”, pela própria natureza da razão, pela própria natureza das coisas, pela própria natureza do significado delas, que se chama Deus].
É exatamente a tensão para entrar nesse desconhecido que define a energia da razão. Como já indicamos, nos Atos dos Apóstolos São Paulo dizia aos ‘filósofos’ que se reuniam no Areópago de Atenas: ‘O Deus que fez o mundo e tudo o que nele se encontra, o Senhor do céu e da terra, não habita em templos feitos por mãos humanas [não coincide com nada daquilo a que você dá forma como desejo último do instante; no instante efêmero, você dá a forma do desejo último a uma coisa. Assim, você cria essa forma, identifica essa coisa falsamente presente, porque não dura: “Não é”, parecendo ser]. Também não é servido por mãos de homens, como se precisasse de alguma coisa, ele que a todos dá a vida, a respiração e tudo o mais. (...) Se fixou tempos determinados e os limites do hábitat dos homens [volta a entrar aqui a medida, a medida mensurável por nós, mas feita por um Outro. Fixou tempos determinados e os limites do hábitat, ou seja, a grandeza, a dilatação, a largura, o comprimento das coisas, mensuráveis por nós, mas feitas por um Outro], foi a fim de procurarem a divindade e, se possível, atingi-la às apalpadelas e encontrá-la; também ela não está longe de nós. É nela, com efeito, que temos a vida, o movimento e o ser. Assim, aliás, disseram alguns dos vossos: ‘Pois nós somos também de sua raça’.
Todo o caminhar humano [o jovem que hoje, domingo, vai pegar o trem para ir ver sua namorada em Rovigo; a namorada que, de Rovigo, pegará o trem para ir a Como, errando de lugar...], toda a tentativa desta ‘força operosa que nos cansa de movimento em movimento’, é o conhecimento de Deus [esse é o sagrado de cada ação humana, até da mais errada, até a do assassino]. Porque o movimento dos povos resume como fórmula todo o imenso esforço de busca empreendido pelo homem [qual é a alternativa a isso? Que o movimento dos povos se torne fórmula de guerra: a Primeira Guerra Mundial, feita pela maçonaria contra o império austro-húngaro, porque era católico; a guerra de Hitler, ou de Churchill, pelo triunfo da potência alemã ou inglesa]. Descobrir o mistério, entrar no mistério que está sob as aparências, sob aquilo que vemos e tocamos [sob o efêmero presente que não dura], é o motivo da razão, a sua força motriz.
Assim, é a relação com aquele ‘além’ que possibilita também a aventura do ‘aquém’ [vocês se lembram do Ulisses de Dante e dos seus companheiros? Tentam ir além das colunas de Hércules. Isso torna também o aquém uma aventura real: navegam no Mediterrâneo com uma cara que dá medo até aos peixes! Imaginem os homens que os vêem]; de outra maneira, o tédio, origem da presunção evasiva e ilusória ou do desespero que aniquila, passa a nos dominar. Só a relação com o além é que possibilita realizar a aventura da vida. A força humana que nos permite apreender as coisas do aquém é dada pela vontade de penetrar no além [pela tentativa de penetração, pela impossibilidade de penetração: mas a impossibilidade de penetrar é apenas o teste da intensidade da vontade de penetrar]. (...)
Mas o que está além desse mare nostrum que podemos possuir, governar e medir? [além desse “palmo” que mede a aparência]. O oceano do significado [que ameaça]. E é na superação dessas colunas de Hércules que começamos a nos sentir [livres, isto é] homens: quando superamos este extremo limite fixado pela falsa sabedoria, por aquela segurança opressiva, e avançamos no enigma do significado [só então o homem começa a sentir o que é a liberdade]. A realidade, no impacto com o coração humano, suscita a dinâmica que as colunas de Hércules suscitaram no coração de Ulisses e de seus companheiros, cujas faces estavam marcadas pelo desejo de outra coisa. Para aquelas faces ansiosas e aqueles corações cheios de desejo, as colunas de Hércules não eram um limite, mas um convite, um sinal, algo que remete para além de si. (...)
“Mas existe uma página ainda maior que esta do Ulisses de Dante. (...) Encontra-se na Bíblia, quando Jacó está voltando do exílio (...) para a sua casa. (...) Não te chamarás mais Jacó, mas te chamarás Israel, que significa ‘Lutei com Deus’. Esta é a estatura do homem na revelação hebraico-cristã”.
E eis a frase pela qual li todo o capítulo: “Quem chega a se perceber assim é um homem que anda no meio dos outros como coxo, quer dizer, marcado [quer você trabalhe na escola elementar ou na TV]; não é mais como os outros homens, está marcado.
“Se essa é a posição existencial da razão, é bastante fácil entender como ela é vertiginosa [como acontece para mim agora, quando minha pressão abaixa e eu me levanto de um salto sem me lembrar dos avisos de Giancarlo e Adriano: minha cabeça gira, depois de um minuto minha cabeça gira].
“É como se, por lei, como diretriz do meu viver, eu tivesse de permanecer pendurado [“ontologicamente”, pois esse “é” o homem na criação] a uma vontade que não conheço, instante por instante. Seria [estar pendurado à vontade de alguém que não conheço] a única atitude racional. (...) Por toda a vida [dessa forma], a verdadeira moral seria a de estarmos suspensos ao aceno deste ‘senhor’ desconhecido, atentos aos sinais de uma vontade que nos apareceria através da pura [isolada] e imediata circunstância [e nada mais]”.
É algo totalmente diferente do utópico! O utópico é um engodo, é uma mentira violenta, que libera a sua vertigem em um turbilhão de “coisas para fazer”. Ao contrário, o que está sendo descrito é o ser real, a existência real experimentada, tocada, reconhecida e sentida por meio daquele toque tangencial com o qual está em relação com o Além, com o Infinito. E esse momento, o momento no qual a razão toca o seu vértice, recebe também um outro nome: mística.
“Repito: o homem, a vida racional do homem deveria estar suspensa ao instante, suspensa a cada instante a este sinal aparentemente tão volúvel, tão casual, que são as circunstâncias através das quais o desconhecido ‘senhor’ me arrasta, me provoca para o seu desígnio. E dizer ‘sim’ a cada instante sem ver nada, simplesmente aderindo à solicitação das ocasiões. É uma posição vertiginosa [como alguém que se exercite no trapézio a duzentos metros do chão sem nunca ter tentado antes]”.
Lembrem-se de que este é o capítulo XIV de O senso religioso, que vocês nunca mais releram. Vocês o leram acreditando que fosse óbvio, e no entanto nunca sentiram essa coisa, nunca! Quem não sente essa coisa ainda não ultrapassou o limiar da infância, quando uma pessoa pode começar a ser má, mas não ainda a aderir livremente ao bem.

Essa é uma premissa. Uma premissa que vocês verão confirmada por um outro texto que irão ler: é intitulado “A fé é um caminho do olhar”, e está no último número de 30Dias2. A primeira parte desse “caminho” sublinha a necessidade de que a pessoa seja aquilo que ela é, do contrário não pode encontrar uma resposta à pergunta que é. Um bom pedaço da primeira parte desse artigo corresponde ao capítulo XIV de O senso religioso; nela se chama a atenção para um caso excepcionalmente exemplar na minha vida, na minha lembrança, que está firme na minha cabeça como um prego, por isso o lembro centenas de vezes. Por coincidência, é uma circunstância que eu não quis, que eu não previ, uma ocasião que me arrastou para dentro de si, segundo a infinita lógica que toda e qualquer circunstância que nós vivemos tem dentro de si; porque, dentro si, toda circunstância tem uma lógica que nos leva ao coração do mundo, que se chama “Verbo de Deus”.
Naquela noite eu estava cansado e fui dormir (quando eu decidia ir dormir, naquela época, dormia: “Quando eras jovem, tu te vestias e andavas por onde querias; quando fores velho, outro te vestirá”; quando quiser, às três da madrugada, por exemplo; por isso, no dia seguinte a pessoa fala com mais dificuldade – que fazer! –; mas quando você vive assim, é provocada a verdade do seu coração, a perspicácia bruta, objetiva, afiada da sua “cachola”, ou seja, cabeça, razão).
Fui, então, para a cama. De manhã, como eu tinha de entregar uma parte da tese no final da tarde, pus-me logo a trabalhar sobre o livro Natureza e destino, a maior obra de Reinhold Niebuhr, o maior pensador dos Estados Unidos dos anos 30 e 40. Abro o livro, capítulo tal, página tal, começo a ler: “Nada é tão absurdo quanto a resposta a um problema que não se coloca” 3. Vocês lerão o trecho. “Dois mais dois igual a quatro” não é tão evidente! Isso é mais evidente, porque é mais humano e portanto mais interessante, arrasta para dentro de si uma parte muito maior de nós mesmos: “Nada é tão absurdo quanto a resposta a uma pergunta que não se coloca”.
Cristo é a resposta ao homem que se coloca conscientemente diante dessa pergunta imensa, imortal, inesgotável, que é o coração.
É na medida em que a pessoa ouve o seu coração, entende o seu coração, leva em conta o seu coração, tem o seu coração diante dos olhos, tem o seu coração no fundo do horizonte, tem o seu coração dentro do rosto da mulher amada, tem o seu coração dentro do rosto dos seus logaritmos e dos seus jogos matemáticos, tem o seu coração dentro do rosto dos seus filhos, tem o seu coração dentro do rosto da multidão; é nessa medida que a pessoa pode dizer: “Qual é a resposta? Qual é a resposta a esta minha pergunta?”. Mas nessa medida está você, que se sente a si mesmo, que pode entender o quanto é mais importante do que aquilo que você é a resposta ao que você é, pois se não existe resposta àquilo que você é, você é um desgraçado!
Imaginem que vocês vão à praça do Domo de Milão às seis da tarde, no verão, ou na primavera, ou no outono, no início do outono. A praça do Domo está quase cheia, gente que vem pra cá, gente que vai pra lá; mas observem que tem alguma coisa errada: estão todos sem cabeça! Imaginem-se lá: estão todos sem cabeça, só vocês têm cabeça! A vida é assim, o mundo é assim. Vocês lerão toda a primeira parte do artigo publicado em 30Dias.
Como é possível dizer essas coisas sem “coração”? Como é possível pensar e ouvir essas coisas sem “coração”? Só se vocês as escutam sem “coração” é que essas coisas não valem, no sentido de que entram por um ouvido e saem pelo outro: só se a alma de vocês for o vazio, porque o vazio torna tudo vazio, é como um poço sem fundo. Vocês leram esse texto pior do que leram O senso religioso, muito pior. Parecem coisas que já se disse mil vezes, mas nunca – a cada vez – são ditas como antes; nunca, nem uma vez, nem por acaso, quando são ditas por acaso.

II
Quem guia o homem é aquele que o fez, porque Deus respondeu. O Mistério respondeu a essa situação humana que Ele permitiu – descrita no capítulo que lemos: o homem vive assim, a existência humana é essa, estruturalmente, ontologicamente –, Ele respondeu a essa existência humana. Respondeu, como se fosse um diálogo, como se o grito do homem fosse gritado dentro do coração de Deus, dentro da casa de Deus, que é o eterno, que é o paraíso; como se o grito tivesse sido gritado ali dentro. Há alguém, ali dentro, que o retoma como um repetidor excepcional. O grito do homem grita dentro do coração de Deus por meio de um repetidor excepcional: um homem que está dentro do mistério de Deus, dentro do Mistério último.
Leiam a página 14 de Il tempo e il tempio, que eu apresentei dizendo que era como o resumo de tudo o que havia dito em quarenta anos, do que quis dizer “de mais” em quarenta anos. Deus respondeu. A pergunta do homem, tal como é descrita no capítulo XIV de O senso religioso, encontra a resposta.
Deus, que fez o homem assim, o Deus do qual todas as circunstâncias são expressão – e seriam por si a única expressão para o homem, o único motivo, a única energia que motiva os passos de uma cegueira humana, de um homem que caminha totalmente na escuridão, às apalpadelas, tateando, sem ver nada –, Deus respondeu “com”... o “com” nós o dizemos no final do parágrafo.
Leio: “Para que Cristo seja tudo em todos [portanto, é claro que a resposta é que a razão última, a consistência última, aquilo de que tudo é feito, se chama Cristo], para que Cristo apareça todo em todos [apareça: que seja reconhecido, que se veja, que se experimente que é tudo em todos], para que a glória de Cristo apareça como a forma e o conteúdo de todas as coisas [isso é “ontologia”, não “moral”: a realidade é assim] – “tudo nEle consiste” –, para que isso apareça, há, operada por Deus, pelo Mistério, pelo Pai, uma escolha ou eleição” 4.
Uma escolha está na raiz da resposta de Deus; uma escolha, uma eleição, que pareceria o “contraditório” de uma resposta, porque é um ponto eleito como resposta inteira, um pormenor eleito como explicação do todo: um pormenor que se torna explicação do todo.
De que escolha se trata? Que eleição é? Que quer dizer escolha?
“Escolha” poderia ser o vaso de flores que Marco tem no peitoril da sua janela; isso seria não misterioso, mas inegavelmente irracional, pois como eu posso gritar a um vaso de flores? Posso gritar a alguém que ouve, como eu, o que eu ouço; que é como eu, mas é diferente de mim; que é como eu, mas é o que eu não sou, e é aquilo que eu peço como resposta: um homem. Escolheu um homem. Podia escolhê-lo dentro de seis anos, no famoso ano 2000, no famoso início do terceiro milênio do qual falam todos os grandes da terra (antes que nasça o dia do terceiro milênio, todos vigiam esperando: até parece!), podia escolhê-lo em 6222, pois o número, como tal, é divisível por dois! E por que não podia escolher aquele grande assassino, Moisés, patriota obstinado, tão obstinado que tratou o outro como um cão?
Em vez disso, esperou o momento logo antes que Israel fosse destruído como povo e o Estado de Israel fosse posto por terra, tanto que não se encontrava mais sequer um documento de antes de 70. Será justamente sobre isso que todos se basearão, em primeiro lugar os ateus e os céticos, depois os protestantes e até alguns católicos, para afirmar que Cristo ou nunca existiu e é fruto de uma fábula, ou existiu e não pode ser conhecido: é a alternativa com a qual Schweitzer concluiu seu estudo a respeito das pesquisas sobre Cristo, antes de ir para a África. Temos de admitir que Deus tem realmente um senso de humor do outro mundo! Os pedaços de papiro5 que foram encontrados hoje remontam todos a antes do ano 70! Vocês acreditam que esses teólogos católicos revêem suas posições? Os protestantes e os outros revêem suas posições, mas certos católicos não. Acostumar-se ao dogmatismo pode tornar a pessoa prisioneira da sua própria caixa craniana. Perdoe-me o Senhor se eu me divirto com isso; mas talvez ele também se divirta: ludit in orbe terrarum, brinca na existência do homem.
“Há, operada por Deus, pelo Mistério, pelo Pai, uma escolha ou eleição”. Essa é a categoria fundamental para explicar o nexo entre a criatura e Deus, enquanto nexo consciente, enquanto comparação entre duas liberdades, enquanto diálogo e enquanto desafio (desafio de Deus ao homem e do homem a Deus), enquanto reconhecimento cheio de raiva, como o do Capaneu de Dante, ou amor, como o de Catarina de Sena ou como o de uma menina do segundo ano de noviciado que surpreendi numa manhã chorando. Eu digo a ela: “Ora, por que você está chorando? Está descontente por estar aqui?”. “Não! Acabei de ler São João da Cruz e estou chorando porque nunca saberei amar o Senhor como ele”. Puxa! Uma vez a cada vinte anos nos vemos diante de uma coisa excepcional – pelo menos a resposta; não sei se ela, mas a resposta sim. E Deus me conceda ter sempre essa lembrança.
Jesus de Nazaré sentiu-se “tomado” como homem (sobretudo no momento do Batismo, com João Batista, como diz a tradição) e destinado a uma tarefa no universo, a uma tarefa universal. Esse ato do Ser é uma categoria que o Ser, na medida em que opera sobre aquilo que cria, mantém; é uma categoria que o Ser mantém, proclama como seu método no relacionamento que tem com aquilo que criou.
“Fora desta escolha ou eleição não pode acontecer senão a realidade de uma multidão de mendigos, de mendicantes, que recolhem as migalhas que caem da mesa dos filhos, exatamente como dizia a cananéia: até os cães podem se alimentar das migalhas que caem da mesa dos filhos” 6.
Deus respondeu a essa pergunta descrita no capítulo XIV de O senso religioso, respondeu a essa situação vertiginosa do homem sério, do homem que leva a sério a si mesmo, pois do contrário “nada é tão absurdo quanto a resposta a uma pergunta que não se coloca” (Niebuhr pode passar para a história até mesmo apenas por essa frase, na minha opinião. Aliás, se passar para a história por causa dessa frase, será mais seguro, mais claro, mais frutuoso do que se passar por causa de toda a sua imensa produção, que causou grande impressão e teve muita incidência sobre a política americana dos anos 40 e 50; mas depois dos anos 40 e 50 o oposto tomou o seu lugar).
Escolha e eleição. Mas eu já o disse, de maneira brutal, e não da maneira dramática como é. É a palavra “drama” quando se refere ao mistério da Trindade. E isso pode ser feito, pois nós só podemos usar as mais altas palavras que descrevem os nossos relacionamentos para nos aproximar do Mistério último. É o drama da Trindade, dessa comunhão que constitui a essência do Ser, a natureza do Ser. Trata-se sempre de ontologia, Laura, como você nos fez observar justamente.
Esse drama da Trindade foi a escolha de um homem. O homem Jesus de Nazaré, escolhido para ser a humanidade do Verbo, a humanidade de Deus, Deus que é resposta ao coração que criou, resposta exaustiva, superabundante, ao grito do coração que criou: grito que ecoa na própria natureza do mistério da Trindade por meio da presença, operada pelo Espírito, de um homem hebreu, nascido de uma mulher de 17 anos. Não sei se me comove mais o fato de ter nascido de uma mulher ou de que ela tivesse 17 anos, mas é a mesma coisa (o segundo aspecto é sentimental, o primeiro é uma maravilha a que sou constrangido objetivamente).
Essa escolha ou eleição é permanente como categoria fundamental da ação, do modo de agir que Deus tem para conosco, criaturas, criaturas conscientes, para com a criatura enquanto se torna diálogo com Ele, conhecimento e consciência dEle e sujeição, obediência, amor a Ele; essa relação é permanentemente determinada, governada pela categoria da escolha, da eleição.
E, com efeito, o Arcanjo Gabriel levou o anúncio a essa jovem mulher que estava na pequena casa de Nazaré. E quando entram naquela casinha as pessoas realmente se arrepiam. Creio que se eu fosse um ateu radical, mesmo assim ficaria arrepiado, de tanto que a objetividade, a ontologia do Ser, da maneira como age, faz-se sentir, deixa uma documentação do seu agir, do seu criar: deixa na terra do homem pegadas indeléveis e indelevelmente eficazes.
Mas estamos deixando a linha seguida por Il tempo e il tempio, que vocês lerão por inteiro. Receio que quem o tiver lido tenha-o feito sem entender as passagens (que são aparentemente evidentes), sem que a importância de uma ou de outra de todas essas passagens tenha sido percebida como determinante de todo o seu conjunto. Todo o conjunto é dominado por tons que são diferentes daqueles pontos em que está subdividido7.
A primeira escolha foi a desse homem! Era um homem descendente de Abraão: é por intermédio de Abraão que esse homem é um descendente de Adão. Por intermédio de Abraão. Não por intermédio de Cam, de Sem, não por intermédio de um outro: por intermédio de Abraão! Podia ser por intermédio de Lot, que era o sobrinho de Abraão: estava ali perto! Podia errar por meio milímetro! Dessas observações depende o valor do céu e da terra, depende o valor do calor do sol ou o valor da cor do mar.

III.
Ouçam: para eleger esse homem, aonde é que foi o Espírito do Mistério? Para onde se dirigiu? Quando se dirigiu? Não podem ser evitados, na categoria da escolha, da eleição, esse onde e esse quando. “Onde” e “quando” são as duas componentes fundamentais do tecido, da extensão do espaço humano, da realidade natural, do aspecto, da parte, da expressão material do homem. Pois a parte material do homem define o homem exatamente em conjunto e do mesmo modo que a espiritual: não se pode conceber o homem sem matéria.
Vocês entendem que o conceito de escolha e de eleição – eleição e escolha do Mistério dentro da realidade terrena e humana, dentro da realidade humana criada – implicam um “quando” e um “onde”, porque o tempo e o espaço são coeficientes inevitáveis daquilo que o homem “é”, pertencem à ontologia do homem, à ontologia? Por isso, uma moral – mas não o digamos logo, aliás, digamo-lo logo –, uma moral só pode derivar de uma ontologia. Um comportamento só pode derivar do ser, daquilo que a pessoa é. O temperamento, por exemplo, pertencerá à moral ou à ontologia? À ontologia! É uma das cores da ontologia. Ainda bem que existem os vermelhos, os verdes e os listrados.
Seria preciso que passássemos um dia inteiro juntos, comendo ao meio-dia, dormindo um pouco, mas desenvolvendo essas coisas dentro de um diálogo, da maneira como me parece ser preferível; um, nós não conseguimos fazer com que entenda a passagem; já o outro não faz com que essa passagem seja sua, mesmo entendendo-a muito bem: entende-a com a cabeça, mas não com a vida, com a existência, com o eu; não com o eu, mas com a cabeça. Vocês me entendem?
Digam-me, por favor, se entendem esta expressão: a eleição ou a escolha implica a resposta à pergunta “quando?” e “onde?”. Tempo e espaço. Um tempo e um espaço: Nazaré! Podia ser: “naquele” tempo, o anjo do Senhor foi a Óstia, perto da capital, Roma. Não! Teria sido o centro de toda a vida do mundo de então, o mundo mediterrâneo, centro que havia mudado de lugar, desde as vitórias militares, da Grécia para Roma; e Óstia era o ponto de onde tudo se lançava: todos os navios partiam dali e chegavam ali. Mas o anjo do Senhor levou o anúncio a essa jovem mulher de Nazaré, que, chegado o tempo, depois de nove meses, deu à luz em Belém. Por isso, como é estranho que os chefes tenham perguntado a Jesus: “Usquam animam nostram tollis, até quando nos manterás com a respiração suspensa? Dize quem és e de que lugar vens”. Não sei se ele respondeu assim (o Evangelho não diz mais nada, mas também não exclui essa possibilidade): “Verifiquem por favor os registros de nascimento de Belém e terão a resposta”. Tudo acontece dentro de espaços e modalidades que são total e absolutamente comuns.
Qual foi o primeiro lugar, a partir do qual essa mensagem – como realidade inicial, como germe, como semente – se inseriu com viva força, irresistivelmente, na vida do homem, na história do mundo? O seio dessa mulher! Que coisa impressionante!
E São José, quando olhava para ela! Aqui, José é a figura do homem “homem”. Não há nenhuma figura de homem que se compare com a dele. Ou seja, o homem tem de ser comparado a São José. Nele se encarna aquele olhar a dois metros do rosto da pessoa amada, e não há olhar amoroso que seja mais potente do que esse. Que São José nos ajude a tê-lo! Mas isso já é moral.
O seio daquela mulher e, portanto, aquela casinha. O primeiro povo, o primeiro elemento de povo, a primeira documentação de povo de que se tenha ouvido falar é a desse jovem carpinteiro, apaixonado por aquela menina, que se vê diante de uma coisa que o esmaga absolutamente de todos os lados, que o esmagaria de todos os lados se ele não a reconhecesse na sua ontologia: mistério de Deus revelado, o Deus que começa a revelar ao homem a resposta ao seu “por que”, a resposta ao seu grito.
Quanto mais um homem sente em si esse grito, mais espera a resposta e mais percebe a resposta que vem: antes que nasça o dia, vive à espera. Os personagens mais comoventes entre os hebreus, no povo hebraico socialmente falando, do Antigo Testamento, os personagens mais comoventes são aqueles que, inteligentes ou não (havia pessoas inteligentes, até cultas: Simão devia ser culto; Nossa Senhora deve ter lido com atenção os “livros da escola”: ela compôs o Magnificat fazendo um centão de frases bíblicas que repetia sempre, e por isso tinha dentro de si), esperavam!
Exatamente aquela casinha, aquela casinha ali. Depois, em seguida, começou a irradiar-se, e essa irradiação fixou-se nas casas de alguns pescadores e, depois de mais algum tempo, fixou-se nos olhos de todos que andavam pela rua. Mas pela rua era um pouco móvel demais, um pouco “perseguível” demais, e então ia uma vez para uma casa (Betânia), outras vezes para uma outra. Depois o momento mais terrível e sublime (que é o dos quatro capítulos de São João que lemos na Sexta-feira Santa, durante o Tríduo Pascal dos universitários), naquela sala mal-iluminada pelas tochas, quando aquele homem disse (imaginem a cara dos outros que estavam ali, que o ouviam falar): “Sem mim não podeis fazer nada” 8nada! Nada!!
Na minha opinião, diante de alguém que diz o que eu estou dizendo, seriamente, a sociedade civil não pode deixar de formular o pensamento: “É melhor interná-lo no manicômio ou então eliminá-lo, em vez de deixá-lo falar”. Pois esse discurso, essa mensagem é um aut-aut inevitável: o que não é isso é ilusão, mentira, negação, alardeada sempre pelo poder. Sempre, também do ponto de vista educativo, que era o cauchemar, o pesadelo, de Pasolini (como nunca naquela noite em que não falei com ele – eu esperava o último vôo que partia de Milão para Roma –, distraído por monsenhor Pisoni! Se Pasolini tivesse estado em duas de nossas reuniões, nos teria bombardeado com injúrias, mas teria se tornado um de nossos chefes! Dizer que estas coisas têm de encontrar a sua justiça é dizer o mínimo que o homem exige para continuar a sentir-se homem!).
Muito bem! Depois, aquele grupinho dispersou-se, não podiam mais se reunir nem na rua; mais tarde, foram vistos sob o Pórtico de Salomão – tinham ali uma sede, um salão, o salão onde haviam feito a última ceia com ele. E depois, dali, difundiram-se pelo mundo – e Marco encontrou assim o belíssimo tema do Meeting do ano que vem: “Ergueu-se um vento impetuoso do Leste [por um lado, “impetuoso” pode representar um convite ao entusiasmo e, por outro, pode suscitar a ânsia que o poder tem de punir: entusiasmo e prisão] e certos [certos! Qual é a primeira condição da fé? A certeza, eu estudava quando era menino; e acreditaram que poderiam me dissuadir quando me tornei adulto] de quem os guiava, navegaram até os confins da terra”.
Estamos navegando até os confins da terra, porque os confins da terra não são os confins da “terra”, são os confins da terra na história inteira. Os confins da terra são aqueles cujas águas, cujos resíduos, lambem os pés de Cristo, que vem para julgar, “para julgar todos os humildes da terra”, diz o salmo, onde “julgar” quer dizer “exaltar”. Não veio para julgar o mundo, mas para salvar o mundo!
Naturalmente, toda essa rede já espalhada pelo mundo inteiro codificava-se onde quer que chegasse: ainda há vestígios em Kerala dos primeiros cristãos do quarto século, há vestígios de São Tiago em Compostela, como demonstrou um pesquisador e cientista.
Seja como for, depois chegou a Ravena. Em Ravena aconteceu uma das coisas mais belas, um dos “onde” e dos “quando” mais belos da sua história! Produziu uma humanidade que deve ser preservada por você e deve ser defendida por você, porque essa é a sua tarefa. E se você se sente um pobre coitado, fraco, atraído por mil coisas, essa tarefa continua; o fato de que a sua dignidade é essa continua. Isso o salva, mesmo que você cometa setenta assassinatos, como o bom ladrão, que teria dado a Ele a resposta que deu Simão; e Simão teria dito a mesma coisa, mesmo que tivesse as mãos ainda banhadas do sangue do assassinato do dia anterior. Mas esse é um outro problema, do qual, lamento, não podemos tratar: nós trataremos dele da próxima vez. Está começando o novo ano, por isso começa o trabalho sobre o esforço ético.
Mas a conclusão deste ano, tão rico em descoberta... se faz a descoberta do ser, da ontologia, aquela que todos negligenciam, porque, como a raposa de Esopo, tentam dizer algo a respeito, saber algo a respeito e, não conseguindo, exprimem-se com a famosa frase: “Nondum matura est”, como se dissessem: “Nada é verdade!”.

Mas eu quero concluir.
Chamamos a atenção para a maneira (a “maneira” quer dizer a disposição na qual a ontologia das coisas se situa, se coloca, está; a disposição pela qual se entende o que uma coisa é), a maneira como Deus respondeu ao grito, à sede suprema do homem, descrita no capítulo XIV de O senso religioso, pois se trata do sentido de si, e quanto mais a pessoa se faz a pergunta, quanto mais ouve seu próprio coração, mais grita por saber a resposta: “Nada é tão incrível quanto a resposta a uma pergunta que não se coloca”. E é a negação, o renegamento do coração que pode tornar as pessoas indiferentes à resposta.
A resposta vem: Deus responde ao grito, que entrou na sua própria natureza, na sua própria vida: o meu grito entrou na própria vida dele.
Como respondeu ao grito? Usando uma categoria que é a suprema afirmação da sua liberdade. A suprema afirmação da liberdade é a escolha absoluta, é a categoria da escolha ou da eleição.
Por que chamaste este? Porque – diz Deus – eu quis chamar este! E por que não escolheste outros? Porque não quis escolher outros! “Tenho misericórdia de quem tenho misericórdia e não tenho misericórdia de quem não tenho misericórdia” 9. Só no mistério de Deus a liberdade absoluta equivale ao direito da escolha, não em nós. O direito da escolha, em nós, é uma utopia no sentido da rana rupta et bos, da rã que quer ser grande como o boi e estoura nesse esforço.
Essa categoria da escolha logo indica um ponto, um ponto da história do homem, da geografia humana, do universo que pode ser observado pelo homem, um ponto infinitesimal portanto, infinitesimal no sentido verdadeiro do termo: presente como um ponto no seio de uma mulher, de uma jovem mulher em Nazaré, na Palestina, na raça dos hebreus. Por isso a salvação terá de repercorrer em si toda a história hebraica. Quem não repercorre em si todos as modulações e os dramas da experiência da história do povo hebreu não é um bom cristão, não entende o que quer dizer ser cristão. Não é um bom cristão, pois – diz São Paulo – a história do povo hebreu é pedagogia para nós: nos introduz a entender, por exemplo, esse conceito de escolha, de vocação-escolha, que é absolutamente hebreu, porque os outros povos não o têm.
Seja como for, escolha ou eleição. Por que você está aqui, por quê? Por que ele está aqui? Por que você está aqui? Por que eu estou aqui? Tenho imaginação e mobilidade de sentimentos suficientes para ter identificado uma infinidade de outras possibilidades que não detalho, mas estou aqui porque fui “feito para”, eleito. Além disso há também uma componente moral, que é a minha resposta à resposta: ordenar a vida de uma certa forma, ou seja, resposta. Seja qual for o ponto em que coloquem a escolha na trajetória da intervenção de Deus sobre a vida de vocês, a sua vida foi escolhida e chamada a corresponder à grande resposta de Deus, portanto a corresponder a Jesus, à presença de Jesus – corresponder a isso, não trabalhando, não fazendo isto ou aquilo, não organizando, não criando movimentos; tudo isso eventualmente será conseqüência, se Deus quiser; pois a última coisa em que eu pensava, há quarenta anos, quando via pela primeira vez rir ou sorrir o meu caríssimo velho amigo Adriano, que hoje vejo lá no canto esquerdo, a última coisa em que eu pensava era que viéssemos a ser mais de 23 (éramos três, naquela época).
A categoria da escolha ou da eleição chega ao “portanto”, chega ao seu objeto fixado – chega a Ravena em um certo momento, que não é 1890, mas 1990 –, e é você. Pois, se tivesse acontecido 34 anos antes, não teria sido você.
Isso é essencial. Chega em um tempo e em um lugar: o tempo e o lugar coordenados, conjugados. Um se insere no outro e criam um ponto. O dom que qualifica esse ponto chama-se também carisma, porque normalmente pode ser veículo de um “tom” na maneira de perceber a Deus, de perceber a Cristo, de ter o sentimento de Cristo, de viver a fidelidade a Cristo, de sentir a grandeza de Cristo, de ter uma tenacidade. O dom pode assinalar esse ponto de intersecção que é você. Você, porque o “quando” e o “onde” chegam à sua casa; esburacam as janelas e as paredes, entram no ventre de sua mãe, mas você já é uma criança e já caiu fora de lá; então o procuram, vão à escola, ali está a sua professora, aquela professora; depois chegam até os seus amigos, “aqueles” amigos: ali se detêm e pegam você! E você não pode mais escapar; pode dizer não, mas não escapar. Pode dizer não, mas se a pessoa se revolta contra duas mãos que a acariciam, se estrangula. A liberdade é responder; então aquelas duas mãos se tornam dois pontos de sustentação.
A sua escolha, a sua eleição coincide com uma realidade contingente de tempo e de espaço (que, como no nosso caso, tem algo de excepcional a ser testemunhado; porque dizer Cristo assim é excepcional; dizer Cristo assim é excepcional hoje; o bom povo diz Jesus, e é a comovente adesão a uma coisa evidente, mais evidente que a própria vida, tanto é verdade que as pessoas morrem em seu nome, por esse nome, nesse nome, mas não é excepcional), é um lugar, um espaço no qual você foi alcançado. Bom Deus, podias ter errado em um milímetro! Se ele errasse em um milímetro, o raio atingiria um outro; no entanto, pegou você. Pegou você, e é o derramar-se sobre você, dentro de você, desse dom do Espírito, ou carisma, que faz com que você esteja mais habilitado a compreender e a aderir a Cristo e a ser cheio de letícia, sereno e alegre por isso, qualquer que seja a sua fraqueza, pois “Deus é nosso canto e nossa força” (não somos nós o canto e a força, mas Deus é nosso canto e nossa força); você está habilitado, portanto, a ser testemunha diante dos outros. Na medida da simplicidade deles, vêem você como testemunha. Na medida da simplicidade deles: você pode fazer dez vezes mais bobagens do que costuma fazer, pode errar dez vezes mais, mas eles não se escandalizam; se escandalizam, mas não se escandalizam; se escandalizam, mas não se detêm, pois o retentissement do que você diz, aquilo que você diz ressoa neles com evidência maior do que as sombras que os seus erros projetam. Assim, ninguém pensará nos erros de São Pedro como obstáculo para a sua própria esperança naquela pedra. E “todo o que nele tem essa esperança, purifica-se a si mesmo como também Ele é puro” 10.
“Purifica-se como Ele é puro”. No ano que está terminando, fomos colocados juntos, mantidos juntos por uma força e por um canto maiores do que a nossa fraqueza e do que o nosso aturdimento, do que a nossa pusilanimidade, do que a nossa vileza; o ano que vem nos será dado, desde o final de novembro, novamente pelo mesmo motivo: para que cheguemos a nos purificar como Ele é puro, porque essa esperança é a rocha sobre a qual tudo se constrói; sobre a qual tudo pode ser construído por nós, sobre a qual todos construímos juntos!
A ontologia que governa a relação com o infinito – todos os nossos pensamentos, todas as nossas ações, tudo o que somos – ecoa sobre a terra antes de mais nada em uma “comunhão” terrena. Por isso, você se levanta de manhã e aquela casa que você vê, com os seus cinco habitantes (que lhe dão náuseas porque você, você, está com problemas de fígado, ou então porque eles estão com os nervos desajustados, ao mesmo tempo em que graças a Deus você está inconscientemente insensível), estar com esses cinco não é uma benevolência sua: você está ali. E se o atazanassem o dia inteiro? São o mistério de Cristo, ali, mais próximo de você, a urgi-lo – urgi-lo! –, a instá-lo, por meio daquela contínua osmose graças à qual, passando o tempo e navegando por todos os espaços, você, de vez em vez, irá se sentir antes de mais nada menos você mesmo e mais Jesus. Mas não, não é assim: você se sentirá mais você mesmo, porque reconhece e ama mais a Jesus. Essa, de qualquer forma, será a meditação que desenvolveremos a partir do início do Advento, durante todo o ano.
Este ano ninguém quis, mas eu escolhi exaltar a ontologia cristã como o ator novo na história do mundo, como o ator vitorioso: ao mesmo tempo que era morto, vencia, como diz Eliot (vão lê-lo).
O ano que vem será como for, porém, como é justo prever, é moral prever, é um dever prever, se Deus nos permitir, desenvolveremos aquela frase misteriosa e belíssima: “Purifica-se como Ele é puro”. Quem tem essa razão de ser – que és Tu, ó Cristo – purifica-se como Ele é puro, como Tu és puro.
Não há nada que possamos trocar entre nós como a ajuda nisso. Se déssemos uns aos outros todo o dinheiro que temos, se déssemos o corpo às chamas pelos outros (como diz o capítulo 13 de São Paulo na primeira carta aos Coríntios), se déssemos tudo, não seria nada diante desse supremo dom do humano, porque é o reflexo, é a imitação do mistério de Deus: a caridade, a gratuidade.
E a gratuidade acontece quando a pessoa reconhece e ama a Jesus todos os dias, desde o Angelus da manhã até o Angelus do cair da noite, e com a maior freqüência possível durante o dia: é a casa. Este é o valor da casa: ser o primeiro lugar em que você se lembra dEle, que renova a sua memória. Qualquer operação ou obra que você fizer, na qual se lançar, na qual tiver de se lançar – e quanto mais obras você gerar, melhor será – não é negativa; mas nenhuma obra que você gere, nada do que você puder criar com as suas mãos e governar sabiamente, inteligentemente, segundo o gosto do seu caráter, mesmo sendo instrumento de missão, vale como aquele lugar, tão amorfo tantas vezes, que você torna amorfo, aquele lugar tão silencioso, no sentido ruim da palavra, ou seja, incapaz de palavras, aquele lugar tão penoso de suportar, aquele lugar tão alternativo como temperamento e como maneira de enfrentar as coisas, que é a casa.
A casa é a primeira fonte da memória que segue aquela vocação que estabeleceu o “onde” e o “quando” você seria tocado.
Por isso temos de responder a uma realidade objetiva, não caprichosa, que não é imposta por homens ou tradições, mas pelo Ser, ou seja, de valor ontológico.

Notas:

[1] Cf. L. Giussani. O senso religioso. Trad. de Paulo Afonso E. Oliveira. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2000.
[2] L. Giussani. “A fé é um caminho do olhar”. In: 30Dias nº 8, setembro de 1995, pp. 33-48. Também em Litterae Communionis nº 47, setembro/outubro de 1995.
[3] R. Niebuhr. The Nature and Destiny of Man. A Christian Interpretation, vol. II. Londres-Nova York, 1943, p. 6.
[4] L. Giussani. Il tempo e il tempio. Milão, Rizzoli, 1995, p. 14. Também em Litterae Communionis nº 44, março/abril de 1995, p. XVIII.
[5] É uma referência à datação de alguns fragmentos do Evangelho de Marcos da gruta 7 de Qumran, por obra do papirólogo O’Callaghan (cf. S. Alberto (org.). Vangelo e storicità. Milão, Rizzoli, 1995. Cf. também: 30Dias nº 6 e 11, 1991; nº 1, 5 e 7, 1994).
[6] L. Giussani. Il tempo e il tempio, cit., p. 14. Também em Litterae Communionis nº 44, cit., p. XVIII.
[7] “Procuremos, portanto, acenar ao progressivo enriquecimento do conteúdo objetivo deste gesto do Pai, do Mistério, que se chama escolha, eleição ou chamado. É disto que tudo parte. De fato, o grande chamado, a grande eleição, a grande escolha que Deus fez por meio do seu desígnio no mundo é o chamado, a eleição de Cristo, do homem que dizia: ‘Aquilo que vejo o meu Pai fazer, eu o faço sempre. Eu não faço outra coisa senão aquilo que vejo o meu pai fazer’. Releiam a respeito disto os capítulos 5, 6, 7 e 8 de São João: ‘Para isto fui enviado’: escolha, eleição, missão. Mas, anteposto este aceno, quase tímido e furtivo, ao grande chamado que tudo reúne e tudo explica (...); tendo-o deixado à parte, isto é, deixada inscrita dentro da abóbada do céu, que ilumina os nossos passos, esta misteriosa e eterna eleição de Cristo, vejamos na história (...) como esta eleição, este chamado, que depois irá se tornar, como diremos, missão, pode traduzir-se em um elenco, no sentido grego da palavra” (L. Giussani. Il tempo e il tempio, cit. pp. 14-15. Também em Litterae Communionis nº 44, cit., pp. XVIII-XIX).
[8] Cf. Jo 15, 5.
[9] Cf. Ex 33, 19.
[10] 1 Jo 3, 3.