O sinal dos sinais

Palavra entre nós
Luigi Giussani

Notas de um diálogo de Luigi Giussani com um grupo de noviços dos Memores Domini. Milão, 1º de fevereiro de 1998

Na última em vez que nos vimos1 , vocês se lembram do que dissemos? Vocês se lembram?

Que Cristo é o humano.
Se não houvéssemos entendido, ou na medida em que não compreendêssemos que Cristo é a resposta ao que o homem exige, às exigências da vida, se não tivéssemos presente e não fôssemos educados, ou seja, se não se desenvolvesse em nós uma consciência madura do fato de que Cristo é a resposta à minha humanidade – não genericamente, mas às exigências fundamentais (por isto fiz vocês cantarem a Ballata dell’amore vero2 ) –, o fruto da nossa vocação não existiria.
Ontem à noite e esta manhã, eu pensava: “Que devo ir dizer a eles?”. Vieram-me à mente muitas idéias. Esta manhã uma pessoa trouxe-me aqui de carro; pouco antes de chegarmos, disse-me uma certa coisa usando a palavra “sinal”: aí entendi que o Senhor me fez ouvir aquilo que eu deveria dizer-lhes. Digo-lhes o que entendo daquilo que Deus me faz intuir.
“Derramai, ó Deus, a vossa graça em nossos corações, para que, conhecendo pela mensagem do anjo a encarnação do vosso Filho...” 3 .
“A encarnação do vosso Filho”: o fato de que Deus se tenha tornado homem é toda a verdade que Deus quis comunicar ao mundo, a sua maneira de demonstrar o amor que tem pelo homem. O Mistério, Senhor do céu e da terra, o Mistério – que é uma palavra que vocês vão começar a entender quando Deus quiser – tornou-se um homem. O Mistério, para comunicar-se a mim, torna-se um homem! Como pudemos saber disto? Como podemos saber disto agora? Como o homem pode entender isto? Como o homem pode entender isto hoje? Como? Através de um fenômeno, de um acontecimento que tocou Maria naquela tarde de 25 de março, de forma tal que ela – inteligente na sua simplicidade profunda, habituada à religiosidade de um povo que com a ajuda do Senhor, com a inspiração de Deus gerou a Bíblia – sentiu, percebeu a presença de uma realidade grande, de uma realidade divina através daquele que lhe falava naquele momento.
“Faça-se em mim segundo a vossa palavra”. Aceitou logo, e isto é fonte de coisas misteriosas que, se vocês forem fiéis ao seu caminho, o Senhor lhes fará entender, cada vez mais, cada vez mais.
Se nós também pudéssemos dizer o que disse Nossa Senhora – dizer o que diz o Angelus: o sim de Nossa Senhora – com aquela convicção global, total, profunda que ela teve, tal como uma criança reconhece sua mãe sem rodeios quando ouve a sua voz ou vê o seu rosto – entre tantas mulheres, a criança pequena vê o rosto de sua mãe e estende os braços para sua mãe –; se nós pudéssemos realmente viver a maneira como tudo começou, o momento inicial como começou com Nossa Senhora, o anúncio do anjo – uma presença excepcional, que se impõe tanto, que é tão evidente a quem tem um espírito simples e inteligente como só Deus pode pretender e querer criar em uma criatura –: como seria bom!
Mas este anjo foi dado a nós! Foi deste anjo que veio até a nossa vida este grande anúncio de que Deus se fez homem. Este anjo, este fenômeno, este acontecimento... e o grito do coração que Nossa Senhora terá ouvido dentro de si diante de uma coisa do outro mundo como aquela – grito em que, além de tudo, se exprimia toda a humanidade do povo hebreu (que os profetas tinham animado com a sua potente autoridade, autoridade que não derivava do fato de que desempenhassem papéis, mas do fato de que falavam em nome de Deus), grito no qual se exprimia toda aquela humanidade de que fala a Bíblia, aquela humanidade do homem que tende ao Senhor –: pudéssemos nós dizer também: “Faça-se em mim segundo a vossa palavra”!
Diante da palavra do anjo, tendo ouvido falar o que deveria acontecer, o que aconteceria, Nossa Senhora disse: “Fiat”. Não há nenhuma passagem entre as duas coisas, não há nenhuma demonstração particular. Aos olhos de Nossa Senhora, Deus entrou no mundo demonstrando com clareza, com evidência o que pretendia fazer. Não pode ser diferente a maneira como nós somos alcançados, não há nenhuma diferença entre a maneira como Nossa Senhora se deu conta – tanto que em um minuto disse sim – e a maneira como acontece a nós.
O evangelho chama “anjo” à misteriosa personalidade que falou a Nossa Senhora fazendo aquele anúncio enormemente estranho, mas de modo tal que o coração de Nossa Senhora – que tinha 15, 16, 17 anos – foi logo invadido. E isto se tornou possível, concebível, por causa do tipo de espírito hebreu, que na história foi o veículo da aliança de Deus com o homem, ou seja, da maneira que Deus usou para poder dar-se, para poder ajudar aos homens. O modo usado com Nossa Senhora foi o mesmo, é a mesma modalidade última com a qual Deus tratou o povo hebreu: idêntica. Ao longo da história, exprimiu-se através dos chefes do povo e dos profetas, pois eram os chefes do povo que ditavam ao povo o que tinha de fazer: os salmos... (toda a Bíblia exprime o que o Senhor fazia entender através dos chefes e dos profetas). Mas com Nossa Senhora “rebaixou-se” mais diretamente, ou seja, pôs-se diante dela. No evangelho não se descreve em detalhes o que diz Maria; é simplesmente claro que era mistério o que acontecia, a fonte daquilo que acontecia, mas de modo tão persuasivo que, dada a educação que teve, era verossímil (não era inverossímil, não era impossível). Nossa Senhora disse somente sim: “Fiat”.
Tanto é verdade que – em minha opinião – o problema mais grave para o espírito de Nossa Senhora foi o depois, alguns instantes depois, quando “o anjo a deixou”. “E o anjo a deixou”, ponto! O Espírito já a havia revestido, até no seu físico, o mistério de Cristo já estava concebido...: são aspectos de pensamentos sobre os quais o coração gostaria de estar sempre, para entendê-los cada vez mais.
“O anjo a deixou”, ponto! Esta última frase da anunciação fixou para mim, há tantos anos, o ponto mais delicado e apaixonante, mas terrível, do evangelho; pois, se “o anjo a deixou”, todo o problema daquela menina ficava à disposição de sua alma. Ela tinha de se defender, tinha um noivo e tinha de convencê-lo (“Será que entenderia?”, com tudo o que ela sempre dissera, ou seja, que não queria se casar com ninguém a não ser nos termos puramente legais); e depois os pais, as pessoas (“Dentro de dois ou três meses todos vão poder perceber o que me aconteceu”). Todas as vezes que me lembro dessas coisas, elas me deixam impressionado. Nenhum de nós na sua vida dedicou-se com tanto risco e sacrifício como Nossa Senhora. Sozinha, sozinha! Como conseguiu, um dia depois de ter contado tudo a José, ficar tranqüila, ficar em paz, serena, segura, segura como esteve diante da evidência inicial?
“E o anjo a deixou”. Vejam, rapazes, tudo o que mencionei agora, em retalhos, do relevo daquilo que aconteceu a Nossa Senhora, acontece a nós! Aconteceu e acontece a nós! Não como repetição mecânica, não da maneira repetitiva e geralmente formal em que nos colocamos sempre, em que tentamos colocar sempre o modo como compreendemos estas coisas. A semente, diz São Paulo... 4 vejam que a semente se desenvolve e dela não resta nada a não ser a lembrança daqueles que têm bem presentes todos os fatores da história. Acontece conosco. Quem é chamado pelo Batismo está destinado a ser, no mundo, parte dessa realidade na qual o criador daquilo que o evangelho chama “anjo”, que a Nossa Senhora apareceu como anjo, se realiza na história. É exatamente a mesma coisa.
De quem nos veio o anúncio de que Deus se fez homem? De nosso pai e nossa mãe, dos pais. Mas, e junto com eles? Da paróquia, dos grupos de trabalho na paróquia, dos grupos de amizade na paróquia, do clima de povo que é cristão. Seja como for, a maneira como tudo isto acontece pode variar, de acordo com as circunstâncias, mas é através disto: o anjo para vocês é esta sua companhia, foi ele e o bispo e o Papa. O anjo se chama Igreja.
Faço votos de que aos 75 anos vocês possam agradecer a Deus com todo o coração pela consciência com a qual cresceu em vocês o conhecimento daquilo que os chamou a viver e a entender. É através desta nossa fé que o mundo não se desorienta, não perde o sentido do caminho para o destino. Só graças a esta fé! Esta fé que se chama “Igreja” na história, Igreja que tem como ponto central, como ponto central orgânico, o papado: a Igreja Católica, “una, santa, católica e apostólica” 5. Vocês estudaram isto no terceiro volume sobre a Igreja6? Dá para entender ou não?
Nossa Senhora voltou para casa e ali estava um personagem. “Mas quem será?”. Então começou aquele leve rumor; então começou aquele eco ou aquela palavra clara que lhe era dirigida: “Ave, Maria, cheia de graça, o Senhor é contigo”. “O que está se passando aqui, o que você está dizendo?” Era um sinal; quando terá ela entendido que o que estava ali presente não era Deus, era um sinal de Deus... Com efeito, no salmo 8 – que é o mais belo salmo, antropologicamente falando, como definição do homem –, diz: “Que é o homem, para dele te lembrares, e um filho do homem, para que te ocupes dele? [Que é o homem? Nada. Nada: um graveto, que uma lufada de vento leva embora] E o fizeste pouco menos do que ti” 7. Há a tradução: “pouco menos que os anjos”; anjos, na Bíblia, pode ser um sinônimo de “Deus que se manifesta”.
Deus se manifesta não necessariamente com o que nós chamamos evidência física. Isto vale também para o amor entre homem e mulher: não sei se é só por evidência física que um homem pode cantar a canção de antes8 diante de sua mulher ou de sua namorada! Não é só evidência, pode não ser só evidência. Em O anúncio feito a Maria, de Paul Claudel9, o comportamento de Jacques Hury para com a mulher que amava, Violaine, não era assim. Quando ela mostrou o sinal da lepra diante dos seus olhos, ele ficou convencido: “É evidente!”. Foi uma evidência através da qual ele entendeu o que não era verdade! 10 Consigo me explicar? Vocês se lembram dessa página?

1. Chama-se “sinal”, normalmente, do ponto e vista do fenômeno natural, a modalidade com a qual uma realidade se comunica à consciência do homem, torna-se clara para o homem. Sinal é a modalidade com a qual a realidade verdadeira, o ser das coisas, se comunica à consciência do homem. Mas isto vale para todo o mundo, para todos os tempos, para todos os povos, pois é justamente o método: o método que Deus usou ao criar o mundo, ao criar o homem no mundo, é que a realidade se comunica ao homem como sinal; e, substancialmente, o homem compreenderia quem Ele é – o que é e quem é – através do mundo como sinal: o mundo demonstra Deus tal como um sinal demonstra aquilo de que é feito. Dizer que as estrelas no céu são uma coisa belíssima e são sinal de Deus, e dizer que o sinal maior de Deus é o céu ou que o sinal maior de Deus é o mar em tempestade ou que o sinal maior de Deus é, não sei, o amor de uma mãe...: tudo isto é sinal, como sinal demonstra Deus. O desejo que a pessoa tem, a exigência que a pessoa tem – digamos – de verdade e de felicidade é sinal, torna-se sinal do fato de que o homem deve entender que há uma outra coisa, que existe Deus. Nada no mundo o satisfaz completamente: isto quer dizer que quem o fez é maior do que o mundo. Todo O senso religioso11 é sobre este conceito. Vocês leram O senso religioso?

2. Mas há um detalhe que deve ser observado no mundo que Deus criou: Deus se tornou homem – e se tornou homem pela estima e amor que teve pela sua criatura mais alta (o vértice de todas as criaturas, onde a natureza, o criado torna-se consciente de si: esse nível da natureza em que a natureza irrompe na consciência de si chama-se “eu”. E é isto que fundamenta o fato de que não se trata somente de uma evidência diante dos próprios olhos, que, além de tudo, pode ser mais duvidosa que o sentido da realidade como sinal12: o homem está seguro da mulher que tem porque a vê, e este é o destino em que todos podem cair; ao contrário, o homem torna-se seguro da mulher que tem quando a encara com a sua consciência) –; seja como for, Deus quis comunicar a sua própria natureza ao homem – começar a deixar-se conhecer pelo homem por aquilo que Ele é, e deixar-se amar pelo homem por aquilo que Ele realmente é – antes de conduzi-lo ao fim, ao destino, ao momento em que o Mistério torna-se destino enquanto inevitável: a morte, enfim; Deus quis começar a comunicar-se ao homem com uma evidência mais profunda e mais potente: Ele se tornou homem. O Mistério se tornou um homem: é um acontecimento, portanto, aquilo que se deu; deu-se através de um acontecimento, um acontecimento cujo sentido era somente este, não podia ser outra coisa a não ser este. E, com efeito, foi esse mesmo homem que, diante da surpresa de todos os seus seguidores, os seus discípulos, disse: “Eu sou uma só coisa com o Pai” 13. “Filipe, quem vê a mim vê o Pai [quem vê a mim, vê o Mistério]”. Se Filipe tivesse tomado o seu rosto nas mãos e tivesse dito: “Você não é o Mistério, é um rosto”. “Não, não sou totalmente definido por este rosto. Este rosto é o último ponto ao qual chega uma comunicação do Mistério muito maior”.
Em Jesus, Deus apareceu aos homens como em um sinal, pois o Mistério não podia ser identificado com o rosto e o aspecto quantitativo do corpo daquele homem ali, não podia ser identificado e demonstrar a si mesmo com o que aquele homem ali dizia, mas, através da sua figura física e através daquilo que dizia, as pessoas eram tocadas, na medida da simplicidade e disponibilidade que tinham, na medida da sua humildade verdadeira. As pessoas estavam disponíveis. Assim, para camponeses, pescadores, para certas pessoas com as quais se envolveu, tornou-se evidente que Ele era algo “outro”. E Ele respondeu: “Eu sou o Mistério que vos faz. Vós sois feitos de mim e por mim. Todo o mundo é feito por mim” 14.
Mas até pode-se entender o reconhecimento de que ele é “algo outro”: pode-se entender que Deus é realmente aquilo para que é remetido o homem quando olha para o mundo ou para o qual são remetidos certos homens que puderam conhecer a realidade de Cristo: o Mistério se revelou, deixa-se entender através dos sinais, e Cristo é um sinal entre os outros diante do mundo.

3. Só que é um sinal insólito. Insólito, pois não é só uma realidade que fazia pensar em Deus, no Mistério, como normalmente fazem todas as coisas (como O senso religioso descreve), mas pretendia algo mais: ser justamente aquilo de que toda a realidade é sinal. Ele é aquilo de que toda a realidade é sinal, pois é o Mistério que veio habitar entre nós.
“Derramai, ó Deus, a vossa graça em nossos corações, para que, conhecendo pela mensagem do anjo a encarnação do vosso Filho, cheguemos, por sua paixão e cruz, à glória da ressurreição”. Portanto, o mundo fala do destino do homem, a realidade criada e o cosmo correspondem ao ímpeto do homem, enchem o seu “original profundo” através de uma realidade que o homem percebe, tal como alguém lê com evidência um sinal. Ou seja, é um fenômeno que não se pode entender e explicar, que não pode existir a não ser por causa deste significado. Significado: o destino se comunica e é entendido, o relacionamento com o destino é vivido através do sinal. Mas como podemos viver isto?
O segundo passo é ainda compreensível, ou melhor, parece compreensível: parece compreensível a evidência com a qual Nossa Senhora disse sim, parece compreensível que o que nasceu de Nossa Senhora tenha sido o passo com o qual o Mistério começou a comunicar-se a mim, a você, ao homem... não como tal – não como tal! –, mas aos homens que o Mistério queria. Por isto, chamam-se “eleitos”, “escolhidos”, como se sentia o povo hebreu, que entendia de Deus o que nenhuma outra religião entendia, que tratava a vida segundo este Outro – que é Deus –, como nenhum outro povo vivia (como moral, como sentido da vida).
“Conhecendo pela mensagem do anjo a encarnação”: através da vida daquele que nasceu desta encarnação, através deste Jesus em que Deus se encarnou, através dele, nós somos levados a entender, somos levados à glória da ressurreição. Ou seja, já neste mundo sabemos onde tudo vai acabar: naquele destino que é a glória de Cristo, que a certa altura se exprimirá totalmente, e esse momento será o limite ao qual se apóia o eterno, a verdade... Talvez vocês não compreendam, mas cada frase que digo implica muitíssimas outras coisas.
Em que sentido o problema de Cristo é diferente do problema do mundo? Cada coisa do mundo é sinal; o mundo é sinal; tal como é feito, tal como é composto, o mundo é sinal, sinal do destino, que o homem – único na criação, na natureza das coisas –, único, entende, tem a exigência de compreender. Mas Jesus é um sinal particular, um sinal excepcional: é o sinal de todos os sinais, o sinal que torna concebíveis e utilizáveis todos os sinais do mundo. São Paulo estava repleto da convicção destas coisas. Quando fala de Cristo, São Paulo diz estas coisas, mesmo que não desta forma. Para ele, Cristo é um sinal. Assim, o homem Jesus, filho de Maria, aparecia como um homem (era um homem, que portanto parecia com os outros homens), mas a verdade daquele homem era sinal de algo que nenhuma outra coisa podia ser: era sinal de Deus, do Mistério, que se encarnava nEle (o que a Bíblia chama Yahweh estava “assinalado”, encarnado naquele homem).
“Conhecendo pela mensagem do anjo a encarnação do vosso Filho”. Como é isto? “Tudo bem, concordamos que Jesus é um sinal de Deus; mas Ele é sinal de Deus como todo o mundo é sinal de Deus!”. Não, Ele é sinal de Deus de maneira diferente de todo o mundo, com uma profundidade abissalmente diferente. Porém, a palavra sinal vale para um e para outro. Nesta altura, pode-se dizer que o método com o qual Deus, a verdade do Ser, a verdade do Mistério, o nosso destino se comunica ao homem que caminha hoje é um sinal que tem o seu conteúdo de sinal dentro de si: é o sinal de uma coisa que já está dentro dEle, como não acontecia, não acontece para os outros sinais. Aquele homem era Deus presente entre os homens. E isto conclui o segundo nível com o qual a palavra sinal vem à tona e se atesta. Atesta-se: mais do que isso se morre, mais do que isso não pode ser concebível, tanto que, para aceitar esta verdade, esta aplicação do conceito de sinal, é necessária toda a lealdade e a sinceridade do homem, o amor à verdade que existe no homem (é necessário tudo do homem!).
Por isto os discípulos tiveram fé nEle, não viram Deus nEle, viram Deus nEle como objeto da fé. De modo tal que, mesmo vivendo na carne, viveram toda a sua vida na fé, como diz São Paulo: “Mesmo vivendo na carne, vivo na fé do Filho de Deus” 15. Assim surgiu o problema cristão no mundo, e demonstrou assim ser o único ponto que podia corresponder a toda a exigência do homem (o único! Mais do que isso será o dia em que será conhecido por todos, em que decidirá deixar-se ver por todos, e este será o último dos dias, que abrirá a eternidade).

4. Hoje o problema é este – e com isto concluo –: pode-se entender a fé dos apóstolos em Jesus, mas nós, como podemos saber se Jesus é Deus ou não, que Deus se tornou homem, que está entre nós através desta figura, desta figura de homem, datável historicamente mas sem ter iguais, duradoura no mundo (pois a Igreja é Cristo que chega até hoje)? Como é possível ter fé na Igreja? A resposta vocês já deveriam saber: através da companhia vocacional; quando a Igreja se torna companhia vocacional. Isto faz da companhia entre homem e mulher sacramento, mistério. Esta companhia, em última instância, não teria sentido – não teria nenhum sentido, a não ser triste, na medida em que um indivíduo é consciente – se não fosse como vocação, se não fosse percebida como ser chamados, feitos para isto (marido e mulher são sinal um ao outro de Deus, são lidos assim, sentidos assim). É a companhia vocacional do homem e da mulher ou a companhia vocacional tal como Deus nos chama, nos chamou: é a companhia vocacional o âmbito em que o anjo, cujo anúncio nos faz entender a encarnação de Cristo, vive.
E esta companhia vocacional tem como seu primeiro modo de atestar-se – não cronologicamente, não apenas cronologicamente, mas também como influência que nos toca como o anjo tocou Nossa Senhora, o coração de Nossa Senhora – a casa. Por isto, esta palavra, por si mesma tão superficial, carrega o significado total da nossa vida: ou aprendemos através dessa companhia ou não aprendemos mais.
Por isto a Bíblia nos faria falar da casa como o lugar – segundo todas as analogias do termo – onde Deus se comunica na sua humanidade, ou seja, se comunica como Homem-Deus.
Seja como for, se vocês levam a sério o que eu disse, se vocês se ajudam a entender o que eu disse, não falei em vão!


Notas:

[1] A referência é à palestra intitulada “Uma preocupação interessante”, de 21 de dezembro de 1997, aos noviços do 2º ao 5º anos.
[2] Chieffo, C. Ballata dell’amore vero. In: O livro das horas. São Paulo, Companhia Ilimitada, 1993 [3ª ed.], pp. 230-231. O texto da canção diz: “Eu gostaria de lhe querer bem/ como Deus o ama, / com a mesma ternura,/ com a mesma força,/ com a mesma fidelidade, que eu não tenho./ Ao invés disso, o meu amor/ é pequeno como uma criança/ sozinha sem a mãe,/ perdida num parque./ Eu gostaria de lhe querer bem/ como Deus o ama,/ com a mesma paixão,/ com a mesma fé,/ com a mesma liberdade, que eu não tenho./ Ao invés disso, o meu amor/ é frágil como uma flor,/ tem sede da chuva,/ morre se não houver sol./ Eu lhe quero bem/ e agradeço a Deus por isto;/ a Ele, que me dá a ternura,/ que me dá a força,/ que me dá a liberdade que eu não tenho”.
[3] “Derramai, ó Deus, a vossa graça em nossos corações, para que conhecendo pela mensagem do anjo a encarnação do vosso filho Jesus Cristo, cheguemos por Sua paixão e cruz à glória da ressurreição” (Oração final do Angelus).
[4] Cf. 1 Cor 15, 36-37.
[5] “Creio na Igreja, una, santa, católica e apostólica” (do “Credo”, Símbolo Niceno-constantinopolitano).
[6] Giussani, L. Por que a Igreja, Tomo 2: O sinal eficaz do divino na história. São Paulo, Companhia Ilimitada, 1994, pp. 151-186.
[7] Cf. Sl 8, 5-6.
[8] Veja nota 2.
[9] Claudel, P. O anúncio feito a Maria. Rio de Janeiro, Agir, 1968 [2ª ed.]; cf. também Giussani, L. “O amor como geração do humano. Leitura de O anúncio feito a Maria de P. Claudel”. In: Le mie letture. Milão, Rizzoli, 1996, pp. 104ss.
[10] Jacques Hury, um dia antes do casamento com Violaine, descobre que esta contraiu a lepra beijando em um ímpeto de compaixão a Pedro de Craon. Para Jacques, esta é a prova irrefutável da traição de Violaine e do castigo de Deus, e por isso a repudia, fiando-se somente no que viu. Anos depois, Jacques, em um último diálogo com Violaine, quando esta já está prestes a morrer, compreende o seu erro: “Jacques Hury – Enganaste-me cruelmente. Violaine – Enganei-te? Não, aquela flor de prata em meu seio não mentia. Jacques Hury – Em que podia eu crer, Violaine? Violaine – Crendo em mim, quem sabe não me terias curado? Jacques Hury – Eu não devia crer em meus olhos? Violaine – É verdade. Devias crer em teus olhos; é justo. Não se desposa uma leprosa. Não se desposa uma infiel. Não te arrependas de nada, Jacques. É melhor assim. [...] Violaine – Para que me servia este corpo, se me ocultava tanto o coração a ponto de que tu não o visses, mas somente àquele sinal externo sobre o invólucro miserável? Jacques Hury – Fui duro e cego. Violaine – Ora estou toda despedaçada, e o perfume se exala. E vede que agora tu crês em tudo, só porque pus a mão sobre tua cabeça” (Claudel, P. L’Annunzio a Maria. Milão, Vita e Pensiero, 1931, pp. 144-146. O trecho acima não se encontra na edição brasileira, pois esta se baseou na versão definitiva da obra, de 1948. A edição italiana baseou-se numa versão intermediária do drama, publicada em 1911. Cf. Claudel, P. O anúncio feito a Maria. Op. cit., pp. 133-156).
[11] Giussani, L. O senso religioso. São Paulo, Companhia Ilimitada, 1993 [2ª ed.].
[12] “...si ille a quo auditur multum excedit visum videntis, sic certior est auditus quam visus” (“...se aquele do qual se ouve dizer algo é muito maior do que a vista daquele que vê, então o ouvido é mais certo do que a vista”; Santo Tomás. Summa theologiae II IIae, q. 4, art. 8). “...manifestat quod auditus per accidens melior sit ad intellectum [...] inde est quod inter privatos a nativitate utrolibet sensu, scilicet visu et auditu, sapientiores sunt caeci, qui carent visu, mutis et surdis qui carent auditu” (“[Aristóteles] afirma que o ouvido em certos casos é melhor para compreender [...], eis por que entre aqueles que são privados de nascença de um dos dois sentidos, ou seja, da vista e da audição, são mais sábios os cegos, que carecem da vista, do que os mudos e surdos, a quem falta a audição”; Santo Tomás, In libros de sensu et sensato, lectio 2, nº 10-15). Cf. também Giussani, L. Por que a Igreja, Tomo 1: A pretensão permanece. São Paulo, Companhia Ilimitada, 1991, pp. 105.
[13] Cf. Jo 14, 9-11.
[14] Cf. Jo 15, 5.
[15] Cf. Gl 2, 20.