"Como nasce um movimento"

Notas de um diálogo com os responsáveis de Comunhão e Libertação durante um encontro internacional em Agosto de 1989
Luigi Giussani


Como nasceu a experiência do movimento de Comunhão e Libertação? Quais os fatores que a fizeram surgir e qual é, ainda hoje, o seu ponto de origem? Gostaríamos de saber como foi o começo para o senhor.

Sinto-me um pouco embaraçado para responder, pois um testemunho daquilo que aconteceu e que chegou a despertar e a dar continuidade a uma experiência como a nossa já foi até publicado. Porém, é verdade que sempre se pode falar daquilo que se ama: mesmo caindo em repetições, dizemos igualmente coisas novas, porque o coração verdadeiro é sempre novo.
Como nasce um movimento, como nasce uma experiência cristã? De um testemunho, através de um dom do Espírito – mas insistirei sobre isso depois.
Um grande jornal italiano resumiu recentemente a figura de Andrea Emo como a de um grande pensador ignorado, publicando uma antologia de pensamentos desse autor, entre os quais: "Durante muitos séculos a Igreja foi protagonista da história, depois assumiu o papel não menos glorioso de antagonista da história. Hoje é somente a cortesã da história". Pois bem: nós não queremos viver a Igreja como cortesã da história. Se Deus entrou no mundo, não foi para ser cortesão, mas redentor, salvador, ponto afetivo total, verdade do homem. É essa paixão que nos atormenta e determina hoje a nossa ação. Evidentemente, na contingência de uma decisão, é possível errar, mas o objetivo pelo qual agimos é somente este: que a Igreja não seja cortesã, mas protagonista da história. Essa imanência da Igreja à história começa por mim, por você, onde estou, onde você está.
Em um recente discurso do Papa aos jovens, na Escandinávia, há uma frase que resume todo o conteúdo da mensagem que queremos gritar a todo o mundo. "Como todos os jovens do mundo" diz o Papa, "vocês estão em busca daquilo que é importante e central na vida. Embora alguns de vocês estejam distantes, do ponto de vista geográfico, e alguns possam estar também distantes da fé e da confiança em Deus, vocês vieram aqui porque estão realmente em busca de algo importante sobre o qual embasar suas vidas. Vocês querem estabelecer raízes sólidas e percebem que a fé religiosa é parte importante da vida plena que desejam. Permitam-me dizer-lhes que eu entendo os seus problemas e as suas esperanças. Por isso desejo hoje, jovens amigos, falar-lhes a respeito da paz e da alegria que podem ser encontradas, não no possuir mas no ser. E o ser se afirma conhecendo uma Pessoa e vivendo segundo o Seu ensinamento. Essa Pessoa se chama Jesus Cristo, nosso Senhor e Amigo. Ele é o centro, o ponto focal, Aquele que reúne tudo no amor."
Se for lícito, gostaríamos de repetir: "Nós não conhecemos outra coisa a não ser isto!".

"E o Verbo se fez carne"
Como semelhante verdade apareceu no meu horizonte, de modo que de repente abraçou a minha vida? Eu era um jovem seminarista em Milão, um rapaz íntegro, obediente, exemplar. Mas – se bem me lembro o que diz Concetto Marchesi num texto de literatura latina –, "a arte precisa de homens comovidos, não de homens reverentes". A arte, isto é, a vida – se deve ser criativa, ou melhor, se deve ser "vida" – precisa de homens comovidos, não de homens reverentes. E eu tinha sido um seminarista bem reverente, salvo um parêntese em que o poeta italiano Leopardi, por um mês, manteve-me "ligado" mais que Nosso Senhor.
Como escreve Camus: "Não é por meio dos escrúpulos que o homem se tornará grande; a grandeza vem por graça de Deus, como um belo dia". Para mim, tudo aconteceu como a surpresa de um "belo dia", quando um professor do primeiro ano do colégio – eu tinha 15 anos – leu e explicou a primeira página do Evangelho de São João. Era obrigatório ler aquela página ao final de cada missa; eu a tinha ouvido milhares de vezes, então. Mas aconteceu o "belo dia": tudo é graça.
Como diz Adrienne von Speyer, "a graça nos inunda. Isso constitui a sua essência [a graça é o Mistério que se comunica; a essência do comunicar-se do Mistério é que nos inunda, nos invade]. Ela não esclarece ponto por ponto, mas irradia a sua luz como o sol. O homem sobre o qual Deus derrama a si mesmo deveria ser tomado pela vertigem, de modo a ver somente a luz de Deus e não mais seus próprios limites, sua própria fraqueza [por isso é ignóbil a atitude de quem se escandaliza com o entusiasmo de um jovem para o qual aconteceu o "belo dia"]. Deveria renunciar a qualquer equilíbrio (buscado por si), deveria renunciar a um diálogo entre si e Deus como dois parceiros, ser um simples recebedor com os braços abertos que não conseguem agarrar, uma vez que a luz se derrama sobre tudo e permanece inapreensível e representa muito mais do que um movimento nosso possa acolher".
Após 40 anos, lendo esse trecho de Von Speyer, percebi o que me aconteceu quando o professor explicou a primeira página do Evangelho de São João: "O Verbo de Deus, ou melhor, aquilo de que tudo consiste, fez-se carne", dizia, "então a beleza se fez carne, a bondade se fez carne, a justiça se fez carne, o amor, a vida, a verdade se fez carne: o ser não está num hiperurânio platônico, fez-se carne, é uma pessoa entre nós". Lembrei, naquele momento, uma poesia de Leopardi, que estudara naquele mês de "fuga", ainda no ginásio, intitulada À sua dama. Não era um hino a uma das suas "amantes", mas à descoberta que de repente tinha feito – naquele vértice da sua vida do qual decaiu em seguida – de que aquilo que buscava na mulher amada era "algo" além dela, que se manifestava, se comunicava nela, mas estava além dela. Esse belíssimo hino à Mulher termina com uma apaixonada invocação: "Se das ideias eternas/ a única és tu, que de modo sensível/ desprezou do eterno juízo ser vestida,/ e entre despojos caducos/ provar os tormentos de funérea vida;/ ou se outra terra, nos superiores círculos,/ entre mundos inumeráveis te acolhe,/ e, mais bela que o Sol, próxima estrela/ te ilumina, e mais benigno ar respiras;/ de cá, onde são os anos infelizes e breves,/ este hino de desconhecido amante recebes". Naquele instante, pensei que o que Leopardi expressava era, 1800 anos depois, uma mendicância daquele acontecimento que já havia acontecido, do qual São João dava a notícia: "O Verbo se fez carne". O Ser (beleza, verdade) não apenas "se dignou" revestir de carne a Sua perfeição e carregar os afãs da vida humana, mas veio para morrer pelo homem: "Veio entre os seus e os seus não o acolheram", bateu à sua porta e não foi reconhecido.
Bem, isso é tudo. Pois a minha vida desde muito jovem foi literalmente invadida por isto: seja como memória que persistentemente tocava meu pensamento, seja como estímulo para um resgate da banalidade cotidiana. O instante, desde então, não foi mais banalidade para mim. Tudo aquilo que existia – portanto, tudo que era belo, verdadeiro, atraente, fascinante, até como possibilidade – encontrava naquela mensagem a sua razão de ser, como certeza de presença e esperança mobilizadora que levava a abraçar tudo.
Naquela época, eu possuía na minha escrivaninha uma figura de Cristo, de Carracci, sob a qual tinha escrito uma frase de Möhler (o famoso precursor do ecumenismo, do qual eu tinha lido a Simbolica e outros textos): "Penso que não poderia mais viver se não O ouvisse mais falar" [1]. Hoje, quando faço o exame de consciência, sou obrigado a pedir à misericórdia de Cristo, mediante a piedade de Maria, que me faça retornar à simplicidade e à coragem daquela época; porque quando um tão "belo dia" acontece e se vê de repente algo de muito belo, é impossível não dizê-lo ao amigo próximo, é impossível não se pôr a gritar: "Olhem lá!". Foi assim que aconteceu.

Studium Christi
Aconteceu já no seminário, com os colegas de carteira, na grande sala de aula (éramos muitos). Desse modo, um grupinho se juntou – porque vigora sempre a mesma lei: alguns ficam mais próximos, sentem-se mais afins à sua visão, ao seu coração, à sua vida – e nasceu o primeiro verdadeiro núcleo do movimento, ao qual chamamos Studium Christi. A cada mês – depois a cada quinze dias –, fazíamos uma espécie de apostila intitulada Christus, em que cada um testemunhava uma pesquisa pessoal sobre a relação entre a presença de Cristo e algo que lhes interessava: o estudo, os acontecimentos etc. Um outro grupo de colegas ironizava a nossa tentativa; esse grupo se juntou e se denominou Studium Diaboli. Tudo é possível na liberdade. Mas, após um ano e meio, o reitor do seminário (que depois se tornou cardeal de Milão) me chamou e me disse: "Vocês estão fazendo uma coisa belíssima, mas isso divide a turma; portanto, não a façam mais". Quando já era bispo de Milão, contava, exagerando poeticamente – como era do seu temperamento –, que numa noite de inverno, enquanto nós seminaristas íamos em massa para o refeitório e ele estava atrás de nós sem que percebêssemos, eu disse aos colegas mais próximos: "O reitor matou-nos o ‘Cristo’" (eu realmente não me lembro disso).
São, porém, acontecimentos que não é possível deter. Aquela semente que descrevi animou a nossa amizade durante toda a história do seminário, nos impôs a escolha dos autores que leríamos, tornou-se o motivo da preferência de alguns autores (por exemplo, Möhler, Soloviev, Newman, entendendo aquilo que se podia entender), e animou o nosso estudo de teologia, que não permaneceu certamente uma doutrina cristalizada.

"Veio entre os seus e os seus não o acolheram"
Após uma dezena de anos, com vários episódios, tendo-me formado professor no mesmo seminário teológico, encontrei no trem um grupo de estudantes e comecei a falar de cristianismo com eles. Achei-os tão alheios às coisas mais elementares que nasceu em mim, como um ímpeto incontido, o desejo de fazê-los conhecer o que eu tinha conhecido, para que também para eles pudesse surgir o "belo dia". Deixei, a pedido do reitor, o ensino no seminário (com efeito, dedicava-me mais aos jovens do que a preparar as aulas) e escolhi ensinar religião nas escolas públicas de nível médio.
Lembro-me perfeitamente daquele dia tão importante para a minha vida. Enquanto subia pela primeira vez os quatro degraus da calçada à entrada do liceu Berchet, dizia a mim mesmo: "Venho aqui para dar a esses jovens aquilo que me foi dado". Sempre repito isso, porque essa é a única razão pela qual fizemos tudo o que fizemos (e continuaremos a fazer até quando Deus nos permitir). A única razão de cada movimento nosso é que O conheçam, que os homens conheçam Cristo. Deus tornou-se homem, veio entre os seus: que os seus não O conheçam é o pecado mais grave, é a injustiça incomparavelmente maior.

Cristo, centro do cosmo e da história
"Cristo, centro do cosmo e da história." Quando ouvi João Paulo II repetir essa frase no seu primeiro discurso (literalmente a mesma frase, meus amigos daquela época podem confirmar isso; desde o início foi um texto habitual da nossa meditação), a emoção que senti despertou em mim a lembrança de toda a dialética que se desenvolveu entre mim e os próprios jovens na escola, e a lembrança da tensão profunda com a qual nos reuníamos em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Sempre repetia aos jovens: "Vem e vê", ou "Verás coisas ainda maiores do que esta", como diz Jesus no Evangelho; ou então, como diz uma oração da missa, "Que a Tua Igreja se revele ao mundo"; ou ainda, "Deus, glória do Seu povo". E eu dizia: "Que significa, por exemplo, ‘Deus, glória do seu povo’, senão uma mudança que Cristo, através do mistério da Sua permanência na Igreja, produz na pessoa em particular e na sociedade? Essa mudança é o milagre que lhe dá glória".
Isto nós pedimos a Deus por tantos anos, só isto: que Cristo nos ajude a viver a Igreja, para que também por meio da nossa vida, da nossa ação, da nossa companhia, dos nossos projetos, Ele se mostre sempre mais no mundo aos homens preferidos pelo Mistério do Pai, para que apareça sempre mais a glória de Deus através de uma adesão a Cristo que mude a nossa vida e a vida do mundo, transformando-as. Esse é o único objetivo pelo qual nos encontramos e continuaremos a nos encontrar enquanto Deus quiser.
Nos primeiros dias de aula de religião eu perguntava aos rapazes, nas escadas ou nos corredores: "Vocês acham que o cristianismo está presente aqui, na escola?". Quase todos me olhavam surpresos e riam. Quem respondia, dizia: "Não!". E eu rebatia: "Então, ou a fé em Cristo não é verdadeira, ou requer uma modalidade nova". Foi o início da dialética aberta pela afirmação de que Cristo é o centro do cosmo e da história, o elemento central para conhecer o homem e o mundo, a origem de uma possível paz para o coração do eu e para a sociedade, a razão de um ímpeto afetivo desconhecido e incomparável (algo de análogo atingia Sócrates quando interrompia subitamente o seu discurso – entre os seus alunos estavam Platão, Xenofonte etc. – e dizia: "Não é verdade, meus amigos, que quando falamos da verdade esquecemos até as mulheres?").
O desenvolvimento dialético do conteúdo da mensagem lentamente polarizou a curiosidade, a raiva e a afeição dos rapazes, tornando-se o ponto mais discutido da escola por doze anos (tempo que permaneci ali como professor de religião): Cristo e a Igreja eram o tema cotidiano, objeto de ferrenhas discussões.
"Que alternativa temos?", eu dizia então e repito agora, "a alternativa política?". A propósito disso há uma frase de Camus, escrita em 1953: "Aquilo que a esquerda aprova [a esquerda era então o símbolo da honestidade redentora da energia política] passa em silêncio ou é julgado como inevitável: 1) a deportação de milhares de crianças gregas; 2) a destruição física da classe camponesa russa; 3) os milhões em campo de concentração; 4) os sequestros políticos; 5) as execuções políticas quotidianas; 6) o anti-semitismo; 7) a estupidez; 8) a crueldade. A lista está aberta". Mas já basta. Não é pessimismo, mas é difícil não fazer entrar nessas categorias a política atual.
"Qual é", perguntava então, "o outro campo de esperança alternativa, mais sério do que a política, mais cheio de resultado? É a ciência?". Há apenas trinta anos, "ciência" era uma palavra cem vezes mais "divina" do que é agora. Tantos anos depois, teríamos de ouvir João Paulo II afirmar: "A ciência da totalidade (porque não é ciência se não tem a pretensão de abraçar o horizonte total) conduz espontaneamente à pergunta acerca dessa totalidade". A paixão pelo horizonte total leva inexoravelmente à pergunta sobre o sentido desse horizonte, mas dentro disso não é possível encontrar resposta.
O desenvolvimento do nosso interesse pela vida em todos os seus aspectos teve e tem como referência a Sua presença: "Nós acreditamos em Cristo morto e ressuscitado, em Cristo presente aqui e agora". Isto fez com que nos interessássemos pela política segundo a totalidade da sua acepção, na consciência perfeita de que não é da política que vem a salvação; e fez apaixonarmo-nos de novo pelo estudo, pela ciência, não por idolatria ou por promoção, mas por uma seriedade que escavasse um leito sempre mais preciso para o conhecimento, o qual, em última instância, tem a sua consistência em Cristo. Pela experiência da Sua presença nasceram uma paixão pela vida social e política e uma paixão pelo conhecimento (o Meeting de Rímini, mesmo como tentativa, mas de forma tenaz e apaixonada, nasce desse duplo interesse, ou melhor, da raiz que criou esse duplo interesse).
Santo Agostinho, em Contra Iulianum, observa: "Esta é a horrenda raiz do vosso erro: tendes a pretensão de que o dom de Cristo consista no seu exemplo, ao passo que esse dom é a Sua própria pessoa". Todos falam com reverência do exemplo de Cristo, dos valores morais, mesmo aqueles que escrevem na "Voce Repubblicana"; estes, aliás, ensinam, pregam aos cristãos que devem viver os valores morais para sustentar o Estado. Mas o dom de Cristo é a Sua presença: isso é o novo no mundo e não haverá nada de mais novo do que isso.
Escreve Milosz numa poesia: "Sou apenas um homem, necessito de sinais sensíveis, construir escadas de abstração me cansa logo. Desperta, então, ó Deus, um homem num lugar qualquer da terra e permite que olhando-o eu possa admirar-Te". Cristo é a resposta a essa suprema invocação humana. A encarnação de Cristo corresponde à exigência própria da natureza do homem, corresponde de modo inconcebível a uma necessidade sensível, a uma necessidade do homem vivo e apaixonado.

"Somos uma só coisa"
Aquilo que o novo arcebispo de Colonia, cardeal Meisner, afirmou no seu discurso de posse, coloca o tema que agora é preciso tocar: "A palavra eterna do Pai se fez carne. E agora na Igreja ficou audível e tocável por todos os homens". Mas a Igreja é feita de quê? De você, de mim. Foi essa a descoberta imediata e espontânea que, no mês de outubro em que entrei na escola como professor de religião, seguiu à mensagem lançada.
Se Deus tornou-se homem e está aqui e se comunica conosco, tu e eu somos uma só coisa. Entre mim e você, estranhos, fica eliminada a estranheza ou, como a chamava São Paulo, a inimizade: somos amigos. Para contrastar, chamava a atenção dos rapazes mais adiantados: "Vocês ficaram cinco anos juntos na mesma sala, na mesma carteira, estão cheios de conivências, mas não de amizade; tiram férias juntos, estudam juntos, divertem-se juntos, mas não são amigos: são companheiros provisórios, entre vocês não há nada que dure, ninguém está em relação com nem sente interesse pelo destino do outro".
Dizia isso justamente porque Cristo se faz presente exatamente através, dentro, da nossa unidade, aquela unidade na qual se introduz o gesto com o qual Ele nos agarra, o sacramento do Batismo. Agarrando-nos no Batismo, Cristo nos colocou juntos como membros do mesmo corpo (cf. capítulos 1-4 da Carta aos Efésios). Ele está presente aqui e agora, em mim, através de mim, e a primeira expressão da mudança na qual a Sua presença se documenta é que eu me reconheço unido a você, é que nós somos uma só coisa.
Como escreve São Paulo na Carta aos Gálatas, capítulo 3 (outro trecho que eu sempre citava): "Todos vós que fostes batizados vos tornastes uma só coisa com Cristo. Não há mais judeu nem grego, nem escravo nem livre, nem homem nem mulher, mas todos vós sois um, uma só pessoa em Cristo Jesus". Qualquer utopia criada pelo homem jamais chegou a imaginar essa unidade que o evento de Cristo realizou em nós. Se o reconhecemos, age, e a nossa vida se torna mais humana.
Cristo torna a nossa vida mais humana. Por isso a outra frase do Evangelho que representava o desafio com que eu entrava na escola e que repetia em todas as aulas era: "‘Quem me segue terá a vida eterna, e o cêntuplo aqui’. ‘Quem me segue terá a vida eterna’, e isso pode não lhes interessar" – dizia – "mas ‘terá o cêntuplo aqui’ – isto é, viverá cem vezes melhor a afeição pelo homem ou pela mulher, pelo pai e pela mãe, terá cem vezes mais paixão pelo estudo, amor pelo trabalho, gosto pela natureza – é impossível que isso não lhes interesse".
Aquela exigência expressa por Milosz na poesia citada é propriamente a de encontrar alguém – visível, tocável –, seguindo o qual se possa experimentar o cêntuplo. "Desperta, então, ó Deus, um homem num lugar qualquer da terra e permite que olhando-o eu possa admirar-Te": isso é Cristo para o homem.
Mas Cristo está em você e em mim, e isso é tremendo (tremendum mysterium): é a fonte da nossa responsabilidade e da nossa humildade, impossível de ser evitada, porque somos o sinal físico da Sua presença.
Éramos quinze quando eu dizia que a nossa comunidade é o sinal real, ainda que contingente, provisório, ridículo, mas grande, pelo qual Cristo se torna objeto de uma experiência presente. De quinze que éramos, no último ano de ensino no liceu, na mesma reunião, passamos a cerca de trezentos. Mas não interessa o número. Após doze anos poderíamos ser três, dois (esse é o significado do matrimônio como sacramento; o matrimônio é, deveria ser, o sinal para a comunidade, porque nele se encontra aquela unidade que não nasce da carne e do sangue, mas de Cristo).
A comunidade, dilatada sem limites, é o Mistério dessa identidade pela qual e na qual eu posso realmente dizer com temor, tremor e amor a Cristo: "Tu". Essa descoberta foi um passo preciso num certo encontro diante do mar, numa torre, em Varigotti.

A comunidade é o lugar da memória
A memória é a consciência de uma presença que começou no passado e que dura: a memória é consciência da presença de Cristo.
Como dizia Pavese: "A memória é uma paixão repetida". Nós vivemos uma paixão por Cristo, uma paixão repetida, porque infelizmente em nós não pode haver uma continuidade intrépida.
Pavese diz ainda: "A riqueza de uma obra [isto é, de uma geração ou da nossa vida como geração] é sempre dada pela quantidade de passado que ela contém". Mas deve tratar-se de um passado que possa estar no presente de forma mais poderosa do que como lembrança, porque a lembrança achata, é como uma roupa gasta. A memória de Cristo é memória de um passado que se torna tão presente a ponto de determinar o presente mais do que qualquer outro presente. Memória tornou-se a palavra capital da nossa comunidade: a comunidade é o lugar onde se vive a memória.
Gostaria agora de detalhar alguns aspectos dessa realidade comunial, palavra que indica uma companhia que não nasce da carne e do sangue, mas de Cristo, e cuja vida é a memória. "A memória se encheu de sangue", afirmava Santa Catarina de Sena. A memória se "enche" do sangue da cruz e da glória da ressurreição, porque não é possível conceber a cruz de Cristo sem a ressurreição. Por isso, dizia justamente Claudel, a paz, que é a herança que Cristo nos deixou como sinal da Sua presença ativa e operante, "é feita em partes iguais de dor e de alegria".

A dramaticidade de uma luta
Antes de tudo, a vida de comunidade nunca eliminou a dramaticidade, nunca pretendeu de alguém um passo forçado. Sempre foi uma proposta apaixonada, mas bem consciente do esforço que se exigia de quem a recebia. Certamente, a verdade carrega na comunicação de si a própria evidência, e o anúncio de Cristo é de tal forma correspondente àquilo que o homem deseja e espera, que ser invadido por ele é como uma onda de evidência que não pode evitar suscitar um sobressalto positivo. Mas logo em seguida surge uma resistência. Eu observava aos rapazes: "Enquanto eu falo, vocês ficam aí prestando atenção e o seu rosto inequivocamente diz ‘é’, mas logo depois, a tentação diabólica, o pecado original, enche vocês de ‘mas, se, talvez, porém, quem sabe’, ou seja, de ceticismo, para fazê-los fugir da evidência que brilhou para vocês. Aparece uma resistência e se abre a dramaticidade de uma luta".
A dramaticidade é inerente a todo relacionamento (não há um só relacionamento humano que não seja dramático). No relacionamento com Cristo, ela atinge sua profundidade maior. E a dramaticidade não consiste numa exasperação histérica, mas em dizer "Tu" com a consciência da diferença e do caminho a ser feito.
"Primeiramente, a minha vontade [onde a resistência se coloca em primeiro lugar] e depois a minha inteligência", escreve um dissidente lituano, "resistiram longamente, mas no fim me rendi e venci [o vencedor é quem afirma a si mesmo]. Não foi uma capitulação ante o adversário. Foi a reconciliação com o Pai [com a origem constitutiva de si]: a Sua posse de mim é a minha libertação" (nem em O senso religioso, que contém os apontamentos ditados por mim naqueles primeiros anos de escola, essa identificação entre ser possuído e ser livre está desenvolvida).
Após somente um ano de início do movimento, com os rapazes da primeira e segunda séries do colegial, publicamos uma antologia de Dionísio, o Areopagita, com o texto grego na frente, que continha uma das frases mais lindas que já li: "Quem jamais poderá falar do amor pelo homem que é próprio de Cristo, transbordante de paz?". É o coração da frase citada antes: "A Sua posse é a minha libertação".

O pedido, gesto supremo do homem
Assistindo à dramaticidade vivida por aqueles primeiros jovens que participavam – naquela época, quando éramos algumas centenas, ficávamos juntos discutindo de manhã até a noite, mesmo fora da escola –, entendi pela primeira vez, depois de todos os anos no seminário, o que quer dizer pedir.
O pedido é a expressão suprema do homem, e é a mais elementar: em qualquer condição o homem pode realizá-la, mesmo sendo ateu. Aliás, quanto mais um homem sente dificuldade tanto mais ela lhe é consonante. Em Os noivos, de Alessandro Manzoni, a certa altura o ateu – o Inominado – exclama: "Deus, se existes, revela-te a mim". Não há nada de mais racional do que isto: "Se existes" é a categoria da possibilidade, dimensão irrenunciável de uma razão autêntica, "revela-te a mim" é o pedido.
Todos nós seremos julgados quanto ao pedido, porque mesmo na jaula dos leões ou atolados na lama, nós podemos gritar, pedir. Na Semana Santa, a liturgia ambrosiana (é estupendo a que ponto de ternura chega a Igreja) nos sugere uma forma comovente de pedido: "Mesmo que eu esteja atrasado, não feches a Tua porta. Vim bater. A quem Te busca aos prantos, abre, Senhor piedoso; acolhe-me no Teu banquete, doa-me o pão do Reino".
Eu jamais disse aos primeiros jovens que se reuniam: "Rezem". Aqueles que vinham, mesmo não participando do conteúdo, participavam do gesto da oração. Após um pouco de tempo, todos faziam a comunhão cotidiana. Eu lhes repetia que o sacramento é a oração maior, a essência da oração, porque é pedido de todo o próprio eu: um homem participa dele mesmo sem saber pensar, sem saber dizer, sem saber nada, pede com a sua presença: "Estou aqui". Como fazer, então, para hierarquizar valores e conteúdos? Que devemos fazer para poder desenvolver a vida? O pedido deve pedir o quê? A afeição por Cristo!
Santo Tomás de Aquino escreve: "A vida do homem consiste no afeto que principalmente o sustenta e no qual encontra a sua maior satisfação" (que no sentido latino do termo quer dizer realização, completamento). A coisa mais linda na história do nosso movimento é que centenas, e depois milhares de jovens aprenderam e vivem a afeição por Cristo, a única que permite verdadeira afeição pelo amigo, pela mulher, por si.
Mas como alcançar essa capacidade de afeição por Cristo? Antes de tudo, sobretudo, além de tudo, pedindo-a. A história religiosa da humanidade, isto é, da Bíblia, termina com esta frase: "Vem, Senhor Jesus". É um pedido "afetivo", uma expressão vibrante de "apego". Até poucos anos, era essa a fórmula que sempre sugeríamos. Agora acrescentamos uma outra: Veni Sancte Spiritus. Veni per Mariam. É a mesma, mais desenvolvida e consciente.

Uma afeição totalizante
Uma afeição que sustente a vida, na qual o homem encontre a sua realização, deve ter como conteúdo, como objeto, algo que possa pertinere ad omnia (dizer respeito a tudo). A propósito disso, há uma frase de Romano Guardini: "No âmbito da experiência de um grande amor, todas as coisas se tornam um acontecimento". Se é um grande amor o que há entre um homem e uma mulher, os sangrentos acontecimentos da praça Tienanmen, um canto que se ouve, o sol perante os olhos, tudo o que acontece, enfim, se torna acontecimento no seu âmbito.
É preciso que o objeto do amor seja tal a ponto de poder englobar tudo. Por isso, Comunhão e Libertação (antigamente se chamava Gioventù Studendesca) nunca organizou gestos que não fossem inequivocamente educativos. A escolha da montanha para as férias, só para dar um exemplo, não é casual (não começamos com o mar porque o mar distrai mais). A sanidade do ambiente humano, a imponente beleza da natureza, favorecem sempre o renovar-se da pergunta sobre o ser, sobre a ordem, sobre a bondade do real – o real é a primeira provocação mediante a qual desperta-se em nós o senso religioso. Com a necessária disciplina, de que sempre cuidamos com rigor (a disciplina é como o leito de um rio: a água passa sobre ele mais pura, mais límpida, mais rápida; a disciplina é necessária enquanto é reconhecido um sentido de tudo), as férias na montanha foram propostas à experiência das pessoas como uma profecia, ainda que fugaz, da promessa cristã de realização, como uma pequena antecipação de paraíso, e cada detalhe devia transmitir aquela promessa e realizar aquela antecipação.
Aquilo de que todos normalmente nos repreendem é o sinal da nossa grandeza: que tudo aconteça dentro do horizonte da presença de Cristo, isto é, da nossa companhia. Repreendem que a experiência do amor por Cristo invada tudo, seja totalizante: mas tudo o que for dividido e separado da Sua presença será destruído! A divisão é o começo da destruição. Por isso, nós sempre odiamos a palavra censura. "Não é possível censurar nada", eu dizia, "e não em nome de uma paixão pela psicanálise, mas para que tudo venha à luz, seja claro, explicado e ajudado".

Uma letícia no fundo da dor
O sinal de uma vida que caminha na afeição por Cristo, ou seja, que adere e participa da Sua companhia, é a letícia. "Eu vos disse essas coisas para que a minha alegria esteja em vós e para que a vossa alegria seja plena", afirmou Cristo pouco antes de morrer.
Somente a alegria é mãe do sacrifício: não é razoável o sacrifício se não for atraído pela beleza do que é verdadeiro. É a beleza – "esplendor da verdade" – que chama ao sacrifício. Como diz a Bíblia, no Eclesiástico: "Um coração feliz é também sereno diante da comida, gosta daquilo que come".
Essa alegria e essa letícia estão presentes também no fundo da dor mais aguda, que a um certo ponto não se pode evitar: a dor pelo próprio mal. Pertencer à nossa companhia significa, aliás, começar a pressentir que a dor maior é a dor pelo próprio mal, pelo pecado. Ninguém pode dizer: "Não cometerei mais pecado", porque a coerência com a lei de Deus, isto é, seguir Cristo, é um milagre da graça, não uma capacidade nossa. Por isso o ponto em que a liberdade do Mistério e a liberdade do homem se abraçam é o pedido.

A grandeza do instante
Uma outra descoberta tornou-se normal na nossa história: a grandeza do instante, a importância do momento, do contingente, que é o ponto de encontro da infinidade de solicitações com que o Mistério nos convoca (não temos, portanto, nada de mais amigo do que as circunstâncias inevitáveis: elas são sinal objetivo do Mistério que nos chama). Ainda na liturgia ambrosiana acha-se esta bela oração: "Tu, ó Deus, concede à Igreja de Cristo celebrar Mistérios inefáveis nos quais a nossa exiguidade de criaturas mortais torna-se sublime num relacionamento eterno e a nossa existência no tempo começa a florescer como vida sem fim. Desse modo, seguindo o Teu desígnio de amor, o homem passa de uma condição mortal a uma prodigiosa salvação".

O maravilhamento do encontro
De Lubac, em Paradoxos e novos paradoxos, observa que "o conformista [a pessoa que adere à mentalidade comum, isto é, que não adere à Sua companhia] considera até as coisas do espírito segundo seu aspecto formal, exterior. A pessoa obediente, ao invés, considera até as coisas da terra segundo seu aspecto interior e sublime". Por isso, é necessário cultivar uma característica humana que é imediatamente própria da criança e se torna grande quando é própria do adulto: o maravilhamento. Como me escreveram: "Não se comunica senão aquilo que se recebe gratuitamente (como uma criança). E se retém somente porque se fica maravilhado". É preciso, então, incrementar a capacidade de maravilhar-se: "Se não vos tornardes como crianças, não entrareis jamais".
Na segunda parte do primeiro capítulo do Evangelho de João, fala-se de João e André que seguem Jesus. "Jesus se volta e diz: ‘Que estais procurando?’. ‘Mestre, onde moras?’. ‘Vinde e vede’. Então eles foram e permaneceram com ele aquele dia". Imaginemos aqueles dois tímidos que vão atrás daquele jovem homem que os precede: quem sabe com qual maravilhamento o olhavam e o escutavam!
Outra página do Evangelho me toca como essa. Descreve o momento em que Jesus passa no meio da multidão, em Jericó. O chefe da máfia de Jericó, Zaqueu, sobe num sicômoro para vê-Lo, porque era pequeno de estatura. Jesus passa perto dele, o vê no alto e lhe diz: "Zaqueu, desce depressa, pois hoje devo ficar em tua casa" (Lc 19, 5). Imaginemos o que deve ter sentido aquele homem! É como se Cristo lhe tivesse dito: "Eu estimo você, Zaqueu, desce depressa, vou à tua casa". Mas aquele encontro não seria verdadeiro – seria como se não tivesse acontecido há dois mil anos – se não acontecesse agora. Um homem não pode aderir a Cristo se não percebe que é verdadeiro hoje! Os encontros com pessoas que nos olham e nos compreendem como Jesus olhou e compreendeu Zaqueu, e que nós podemos olhar, são os eventos mais importantes da vida. "Olhai todos os dias o rosto dos santos e encontrareis conforto nas suas palavras": é o convite de um dos primeiros documentos cristãos, a Didaquê.

A companhia, lugar do pertencer
A comunidade, a companhia, onde o encontro com Cristo acontece, é o lugar do pertencer do nosso eu, o lugar de onde ele apanha a modalidade última de perceber e de sentir as coisas, de percebê-las intelectualmente e de julgá-las, de imaginar, de projetar, de decidir, de fazer. O nosso eu pertence a esse "corpo" que é a nossa companhia, e dele apanha o critério último para enfrentar todas as coisas. Por isso, o nosso ponto de vista não segue pelo seu caminho, mas se obriga à comparação e ao comparar obedece à comunidade, à companhia. Como dizia Rilke à sua mulher, referindo-se àquele pertencer breve mas exemplar que é a relação homem-mulher: "Onde alguma coisa permanece no escuro, isso é de um gênero que não exige esclarecimentos, mas submissão". Grande é a submissão que nós experimentamos na vida da nossa companhia: é submissão ao Mistério de Cristo que se torna presente na nossa companhia e caminha conosco.
Uma afirmação de Péguy toca bem no ponto: "Quando o aluno não faz outra coisa a não ser repetir não a mesma ressonância mas uma miserável cópia do pensamento do mestre; quando o aluno não é mais que um aluno, mesmo que seja o maior dos alunos, nunca irá gerar nada. Um aluno começa a criar quando introduz ele mesmo uma ressonância nova (ou seja, na medida em que não é um aluno). Não que não se deva ter um mestre, mas uma pessoa deve descender da outra por vias naturais da filiação, não pelas vias escolares do discipulado".
É essa a necessidade da nossa companhia, para que ela seja fonte de missão em todo o mundo: não um discipulado, não uma repetição, mas filiação. A introdução de um eco e de uma ressonância nova é própria do filho que tem a natureza do pai. Tem a mesma natureza, mas é uma realidade nova. Tanto é que o filho pode fazer melhor do que o pai e o pai pode olhar todo feliz para o filho que se tornou maior do que ele. Mas aquilo que o filho faz é maior justamente e somente enquanto realiza mais aquilo que o pai sentiu. Por isso, pela qualidade orgânica viva da nossa companhia, não há nada mais contraditório do que, de um lado, a afirmação da própria opinião, da própria medida, do próprio modo de sentir; e, de outro, a repetição. É a filiação que gera: o sangue de um – do pai – passa para o coração do outro – do filho – e gera uma capacidade de realização diferente. Dessa forma, multiplica-se e se dilata o grande Mistério da Sua presença, até que todos O vejam dando glória a Deus.