Roma e o dom do Espírito

Reflexões
Julián Carrón

Reflexões após a audiência com Bento XVI de 24 de março. Contribuição à reflexão da Escola de Comunidade sobre “O dom do Espírito”. Notas das palavras de Julián Carrón no encontro de responsáveis dos universitários de Comunhão e Libertação e no Conselho de Presidência de CL. Milão, 22 e 24 de abril de 2007


1. A urgência de um passo
Nos últimos meses, participamos de uma série de eventos, um mais bonito que o outro: os Exercícios de dezembro, o encontro com o Papa em Roma, a Páscoa. Roma, sobretudo, é um exemplo evidente daquilo de que precisamos nos dar conta.
Para nos ajudar a estar diante desses gestos – repito, sobretudo do gesto de Roma – temos a sorte de uma coincidência única: nestas semanas, justamente, o tema da Escola de Comunidade é o capítulo sobre “O dom do Espírito” (L. Giussani. “Passos de experiência cristã”. In: O caminho para a verdade é uma experiência. São Paulo, Companhia Ilimitada, 2006, pp. 129-142). Vejamos o que escreve Dom Giussani: “Os Apóstolos tinham-se deparado com uma realidade excepcional, fascinante, profundamente persuasiva” – a ponto de arrastar os outros atrás de si –, mas não tinham entendido: “Não se davam conta por completo do que ela era” (p. 129). Os apóstolos não tinham entendido.
Perguntemos a nós mesmos: o que o gesto de Roma tem a ver com essa provocação da Escola de Comunidade? De que forma a Escola de Comunidade nos ajuda a entender ou a entrar em seu significado? A questão está aqui: sendo que não somos pedras, fomos tocados por esse evento absolutamente excepcional, mas – paradoxalmente –, mesmo depois de participar de um gesto assim, como os discípulos, podemos continuar perdidos; e aí os gestos, em vez de serem uma ajuda, transformam-se em pretexto para o ceticismo.
Eu percebi isso anteontem, quando fazia Escola de Comunidade com um grupo de jovens recém-formados. Logo depois da leitura do primeiro tópico deste novo capítulo (“A experiência do Divino”, pp. 129-132), um deles disse, depois que eu os provoquei lembrando o gesto de Roma: “Este é o meu problema: depois de Roma, apesar da beleza que aconteceu, nestas últimas duas semanas tenho experimentado um sentimento de impotência e solidão imenso, vivendo os meus dias sem significado nenhum”. Alguém que, depois de participar de um gesto absolutamente excepcional, se vê nesse estado após duas semanas, não consegue deixar de dizer: “E agora, o que mais precisa acontecer para que alguma coisa mude? Por que é que eu iria a um gesto como esse da próxima vez?”. É a insinuação do ceticismo. Nem participar de um fato excepcional é capaz de vencer o ceticismo. Essa é a questão. Temos de tentar responder a isso, pois é neste momento que vemos se todo o percurso que fizemos até aqui leva ou não a uma certeza maior. Do contrário, mesmo depois de depoimentos nos quais as pessoas fazem um lista de fatos excepcionais, o que resta, no fim, o que aparece na última linha, é o verme do ceticismo, que pode fazer tudo se tornar inútil.
Nós somos como os apóstolos, fazemos o mesmo percurso: eles tinham participado de um evento excepcional, mas não tinham entendido. Minha pergunta é muito simples: como podemos saber se entendemos o que vivemos em Roma? No capítulo da Escola de Comunidade que citei, justamente, nós encontramos a resposta. Dom Giussani diz que os apóstolos tinham-se deparado com um fato excepcional, e estavam fascinados, como nós, mas mesmo assim não entendiam, pois faltava a eles alguma coisa, faltava acontecer alguma coisa: essa coisa se chama “dom do Espírito”. Que significa dom do Espírito? Se o dom do Espírito não tivesse acontecido aos discípulos, se não tivessem entendido, no final teriam ido embora perdidos: “Nós achávamos, nós esperávamos que esse profeta poderoso em obras e palavras...”. Nós também poderíamos dizer: “Nós esperávamos que indo a Roma...”. É a mesma coisa. O passo que precisamos dar é esse que é dito na Escola de Comunidade, e a relação disso com o gesto de Roma é uma maneira de entender o que é o Espírito, senão ele continua a ser para nós uma espécie de fantasma. Como esse ponto não é secundário – sem ele, cresce o ceticismo –, acho importante enfocá-lo, sem sair pela tangente.

2. Um critério novo
Como podemos entender se entendemos?
Leiamos o texto: “Sem o acontecimento do seu Espírito, o homem pode defrontar-se com Cristo como com um grande homem, uma figura de homem excepcional, rebelde a qualquer redução categórica, talvez estranha, irresistivelmente persuasiva para a expectativa comum das pessoas simples, entusiasmante para o frescor enérgico dos homens apaixonados pela justiça, perigosíssima para as formas responsáveis pela ordem estabelecida: Ele foi tudo isso para os homens de seu tempo. Ou, então, um homem tão grande, talvez, a ponto de parecer um comovente e dramático mito: e pode ser isso para o cético desespero do homem de hoje. Mas, sem o acontecimento do seu Espírito, o homem – os Apóstolos ou nós – permanece no limite obscuro dessas perspectivas; para o homem, Cristo continua sendo um rosto enigmático e misterioso. [...] Cristo seria, assim, um novo objeto a enfrentar, um novo risco a ser corrido cegamente, não um critério novo, uma outra luz, nova, finalmente” (pp. 130-131). É este o ponto: podemos entender se entendemos o que aconteceu em Roma ou nos Exercícios (Exercícios dos universitários, 8 a 10 de dezembro de 2006; nde) se nos surpreendemos ou não maravilhados (por isso é um dom do Espírito) pelo fato de que se introduziu um critério novo com o qual julgar tudo, e se começamos ou não a olhar para o real (para nós mesmos, para as coisas que temos de fazer, para as atividades, para os gestos). Se o que aconteceu não se torna um critério novo a respeito de tudo, isso significa que não entendemos. E nós não chegamos a isso por sei lá qual tipo de raciocínio.
Em primeiro lugar, portanto, a questão é um reconhecimento: eu vejo que entendi se surpreendo em mim mesmo um critério novo. O Espírito não é algo fantasmagórico, não é uma figura mítica, estranha: nós nos damos conta de que Ele entrou em nós e nos fez “entender” pela maneira como, depois de Roma, nos referimos a tudo. Se eu continuo a ser cético, isso significa que eu não entendi, que devo ainda pedir o dom do Espírito e olhar para o que aconteceu. Como eu disse na carta ao Movimento, precisamos nos identificar. Isso não encerra a questão, mas a abre. Devemos pedir o dom do Espírito para entender o que aconteceu. Como os apóstolos, participamos de um fato excepcional, mas dá para ver que ainda não entendemos, pois esse fato ainda não se tornou um critério novo a respeito de tudo.
Dou um outro exemplo. Outro dia, na Escola de Comunidade de que eu falava, depois que eu disse essas coisas, uma menina – não vou me estender sobre os pormenores – contou a respeito de uma ótima oferta de trabalho que seu marido havia recebido. Ela até dizia coisas interessantes, sugestivas, do ponto de vista de que estamos falando, mas eu a interrompi: “Escute, querida, se o seu marido tivesse ido a Roma cego e voltasse vendo, e depois recebesse essa oportunidade fantástica de trabalho na Suíça, do que é que você falaria aqui hoje?”. “De que meu marido voltou a ver!” “Então, por que é que nós estamos aqui falando do trabalho na Suíça?” A pessoa percebe que entendeu porque entra uma luz totalmente nova na maneira como ela enfrenta tudo – tudo o que lhe acontece e com o qual ela entra em relação.
Para nos ajudar a entender o que Roma significou, devemos olhar para o que aconteceu depois da audiência. Nós mesmos podemos reconhecer, quando nos olhamos em ação, se esse “critério novo” de que Dom Giussani está falando entrou em nós. É impossível que, depois de participar da assembléia desta manhã, cada um de nós não tenha tentado dar uma resposta à pergunta que eu fiz. Cada um de nós, agora, deve comparar a idéia que tinha na cabeça com o que a Escola de Comunidade diz.
Se alguém, depois de participar do evento de Roma, afirma – como dizia o depoimento que eu citei – que durante duas semanas viveu uma impotência total e uma falta de sentido, isso está em contradição com o que a Escola de Comunidade diz, quando afirma que nós entendemos, que reconhecemos que “Cristo é o ponto de vista que explica todas as coisas” (p. 132). Como podemos saber se Cristo se tornou o ponto de vista? Dom Giussani responde: “No acontecimento desse Dom, a solidão humana é dissolvida” (p. 133). Se, depois de participar do gesto de Roma, eu me vejo numa solidão total, numa falta de significado, isso quer dizer que não entendi. Daí nasce o ceticismo. Eu não digo isso como uma repreensão, mas simplesmente para chamar a atenção para a necessidade de nos identificarmos e nos ajudarmos a entender o que nos aconteceu, a necessidade de pedir o Espírito, como os apóstolos, pois só “no acontecimento desse Dom a solidão humana é dissolvida”, “a experiência humana não é mais a de uma impotência desoladora [portanto cética], mas a experiência de uma consciência e de uma enérgica capacidade” (p. 133).
Portanto, eu percebo que entendi porque esse critério novo entra na minha vida, a solidão se dissolve e eu encontro em mim uma enérgica capacidade. Tanto assim que os apóstolos, em vez de ficar encolhidos, com as portas fechadas por medo de todo o mundo, foram à luta. Assim, se nós entendemos, é olhando que nós o descobrimos outra vez: olhando para o que aconteceu, para a maneira como nos surpreendemos depois de Roma, pois trata-se de um dom (como foi para o cego de nascença de que falamos nos Exercícios). Cada um de nós pôde dizer alguma coisa de Roma, da mesma forma como todos podiam dizer alguma coisa de Jesus: um homem excepcional, rebelde, irresistivelmente persuasivo... mas eles não tinham entendido. Uma pessoa entendeu quando se surpreende tendo um critério novo, um juízo novo a respeito de tudo. Mas o juízo – atenção – não é uma questão intelectual: é que eu me vejo olhando, julgando, entrando na realidade com uma luz nova, com um ponto de vista novo; eu me levanto de manhã e olho para mim mesmo invadido por algo novo, que não posso tirar de mim. O dom do Espírito é um evento, é algo que me invade tão poderosamente que eu não posso deixar de assistir às aulas, de pegar o carro ou o metrô e ser todo invadido por essa Presença que se torna um juízo novo, que é um critério novo.
Esta é a vitória sobre o ceticismo: o fato excepcional continua como algo que me invade, como o ponto de vista que explica, que dá sentido, que dá significado a cada pormenor, a cada atividade. Não emprego um raciocínio, mas surpreendo em mim mesmo um ponto de vista novo, que dá sentido e significado a todas as coisas.
Agora nós percebemos o quanto estamos longe de ter entendido. Não digo isso para nos desencorajar, mas porque é preciso que nos ponhamos em movimento, que nos identifiquemos, que peçamos, olhando para o fato, para aquilo que aconteceu. Se duas semanas depois o ceticismo consegue se insinuar, é porque, no fundo, a pessoa não entendeu o que aconteceu em Roma, ou seja, a força de Cristo vivo, ressuscitado, que por meio de seu Espírito nos tomou a todos. O encontro de Roma foi a demonstração da força do Espírito. Alguém que, depois de ter visto isso, essa força do Espírito, se sente sozinho não entendeu que aquilo que se tornou evidente de fato é que nós não estamos sozinhos; seu juízo não mudou: ele continua a se conceber como antes, sozinho, continua a olhar para si mesmo com um critério antigo. Mas esse critério é falso, pois em Roma mostrou-se a força de Alguém que me permite dizer: “Não estou sozinho”. Sem a presença do Espírito de Cristo vivo e ressuscitado, do Espírito do Ressuscitado, esse gesto não teria existido. Podemos dizer: “Fiquei impressionado com isto, com aquilo...”, tudo isso é ótimo, mas é somente a superfície. E, se ficarmos na superfície, depois nos perguntaremos: “Como é que tudo isso continua?”, sem entender que novidade se fez presente, a novidade pela qual todas as dúvidas são eliminadas, todos os fechamentos são superados. Dá para ver que a pessoa entendeu pelo fato de que tudo isso é superado (a questão não é nos tornarmos intelectuais!).

3. Lançar-se no trabalho: identificação e pedido
Escreve Dom Giussani: “A experiência do seu encontro com aquele Homem, da sua longa convivência com aquele Homem – apaixonada, ansiosa, incerta – toma de repente a forma de uma outra experiência, absolutamente imprevista, desconcertante – a experiência da realidade divina, o encontro, a convivência com Deus –, luminosa, segura, forte” (p. 131). Ou essa passagem acontece ou não acontece, e ela é um dom. Todos desejamos chegar a esse ponto, mas temos de ter a consciência de que estamos a caminho, e não perder a coragem.
Os discípulos estavam desconcertados pela morte de Jesus, e mesmo depois da ressurreição ficaram fechados em casa. Mas o que foi que fizeram? Pediram. Nós também, como os discípulos, podemos pedir para entender cada vez mais o alcance do que vimos, para começar a reconhecer o significado do gesto excepcional de que participamos, como um ponto do qual não há retorno, e como comprovação daquilo que a Escola de Comunidade diz sobre o dom do Espírito.
Todos podemos nos ajudar a entender. Como?
Pela identificação e pelo pedido. Não é um pedido que justifica a preguiça, mas um pedido que se faz olhando e um olhar que se torna pedido. Quando olhamos, surge o pedido de entender cada vez mais, de modo tal que, com o tempo, se revele o alcance do que vivemos.
Vocês se lembram de quando falei da mendicância, na praça de São Pedro? Eu disse que cada um de nós precisava tomar consciência de si e usar a razão também naquele momento. A força do Espírito é aquilo que nos move, que é capaz de mover todos os recursos do meu eu, para que eu possa entender. Quem precisa entender sou eu, não os outros. Do contrário, tudo acontece sempre fora de mim, no fundo não diz respeito a mim mesmo, não interfere na minha vida – a ponto de me fazer entender –, e por isso eu me torno cético. Qual é o instrumento da minha capacidade de entender? A razão, que se escancara para deixar entrar algo absolutamente novo, um critério novo. E isso é um trabalho.
Por que é que o que nos aconteceu não toma o coração? Por que o coração continua distante e, no fundo, não fica tocado, não é “garantido” (como diz o texto de Dom Giussani sobre a Quaresma, “Deus é misericórdia”, publicado no site do Movimento)? Uma pessoa me contava que, depois da viagem de ônibus até Roma, assim que se sentou na praça pensou: “Pronto, chegamos”. Acreditava que já tinha feito tudo. Quando ouviu que “o verdadeiro protagonista é o mendicante”, sentiu o contragolpe disso. “Só aí eu percebi que não tinha feito a coisa mais importante.” Nós podemos participar de um gesto, fazer tudo, e continuar parados: se eu não estou presente com toda a minha pessoa, posso ter feito tudo, mas é como se o centro do eu não se tivesse mexido. Isso se chama “racionalismo”. É extremamente difundido, mesmo entre nós, e é a grande questão. Por isso, quando o Papa convida a “ampliar a razão”, diz uma coisa que tem a ver em primeiro lugar conosco. Podemos fazer tudo sem pedir nada, pois não temos nenhuma necessidade; pertencemos a uma organização, mas o nosso eu não tem nenhuma necessidade.
Não podemos continuar a fazer discursos como “especialistas” do Movimento. É preciso que aconteça algo que comprove que entendemos. O que nos salva de recair constantemente na repetição das palavras, o que nos põe contra a parede, é a verificação do que nos aconteceu depois de Roma. Nesse sentido, Dom Giussani é uma ajuda absolutamente excepcional. Ele nos diz: meu caro, você só entendeu se um critério novo se introduziu na sua vida. Como quando nos apaixonamos: nós nos pegamos usando o tempo livre, o dinheiro, tudo, de uma outra forma, pois uma coisa nova se introduziu, uma coisa que ou existe ou não existe. Esse é o sinal de que entendemos. Ao contrário, “‘se alguém não tem o Espírito de Cristo, não pertence a Cristo’ (cf. 1Cor 2,11), ou seja, é um estranho, incapaz de captar-lhe o feitio íntimo, a natureza secreta: incapaz de se tornar familiar do mistério de Cristo” (p. 130).
Eis por que o gesto de Roma é esclarecido e iluminado pela Escola de Comunidade sobre o dom do Espírito – pensem o tipo de companhia que Dom Giussani é para nós! Se ficarmos diante daquilo que acontece, nós nos daremos conta da graça que nos foi dada em Roma: a permanência do carisma de Dom Giussani, que continua por meio dos textos e dos pontos de referência. A comprovação dessa permanência está naquilo que o Papa disse: o que feriu Dom Giussani feriu também seus filhos espirituais, ou seja, nós.
Se percebêssemos isso! É a coisa mais desconcertante, pois esta é a companhia concreta de Cristo à nossa impotência. Assim, como eu lembrava antes, “no acontecimento desse Dom, a solidão humana é dissolvida. A experiência humana não é mais a de uma impotência desoladora”. Pelo contrário, “a existência se torna uma imensa certeza” (p. 133), justamente porque em Roma, de modo espetacular, tornou-se presente um Outro, uma Presença que age entre nós, sem a qual aquele gesto não teria existido, não se explicaria. O mito da organização de CL não consegue explicar um gesto como esse. Pensem em cada um de vocês, cada um com a sua história, pensem em como todos foram arrebatados por um fato que os tocou, que não é mecânico. Uma Presença que age: isso se tornou evidente como a luz do dia. “A força do homem é um Outro, a certeza do homem é um Outro”. Por isso, “a existência humana é uma amizade inexaurível e onipotente” (p. 134).
Este é o início, apenas o início – como a ponta do iceberg – do que estamos para começar a entender daquilo que vimos: o simples fato de começar a vislumbrá-lo introduz realmente um critério novo. Quanto mais entendermos o que vimos, mais se tornará uma certeza, portanto algo luminoso, seguro e forte. Esse é o caminho que temos pela frente, amigos.