Haec est generatio quaerentium Eum, quaerentium faciem Dei Iacob

Palavra entre nós
Julián Carrón

Esta é a geração daqueles que O buscam,
que buscam o rosto do Deus de Jacó (Sl 23, 6)


Notas da colocação de Julián Carrón na Assembleia Internacional de Responsáveis de Comunhão e Libertação. La Thuile, 20 de agosto de 1998


“O verdadeiro protagonista da história é o mendicante. Cristo mendicante do coração do homem e o coração do homem mendicante de Cristo” 1.
Hoje participamos de um gesto através do qual Cristo se manifesta diante de cada um de nós como mendicante do nosso coração. “Deus poderia obrigar os homens - escreve Sigrid Undset - a seguir o caminho que traçara para eles, a obedecer, como fazem as estrelas. Mas ele se fez homem e depôs sua onipotência ao entrar no mundo dos homens. (...) A onipotência que rege o cosmo mendiga entre a multidão das almas humanas, pedindo para poder dar, para poder repartir as riquezas misteriosas do seu próprio ser”. Este gesto de que participamos é a iniciativa de Cristo que uma vez mais mendiga o nosso eu, é o sinal da ternura de Deus, de Cristo, para conosco, da estima cheia de positividade de Cristo por nós. O início da história que nos alcançou é todo iniciativa de Deus que tem compaixão do seu povo. O livro do Êxodo faz com que a história do povo judeu comece com estas palavras de Deus: “Eu vi a aflição de meu povo no Egito e ouvi o seu clamor. (...) Desci para libertá-lo”.
Mas não somos realmente protagonistas deste gesto se o nosso coração não é mendicante de Cristo. Nós participamos como protagonistas deste momento, estamos presentes com toda a nossa pessoa nesta iniciativa de Cristo para conosco, se o nosso coração, hoje, agora, mendiga Cristo.
Assim, Cristo nos ajuda a fazer o caminho da vida. Do contrário, já teríamos parado, pois sem o acontecimento da sua presença não seria possível, de fato, caminhar para o nosso destino. Com a sua presença, Ele nos ajuda a atravessar todas as circunstâncias em que se desenvolve a nossa vida. As circunstâncias são um fator essencial da nossa vocação, como ouvimos no ano passado: nelas se revela a presença de Cristo, o rosto verdadeiro de Cristo.

1. Qual é a circunstância em que nós todos hoje vivemos? Ela é definida sobretudo pelo fato de que o eu não existe mais. É dessa miséria em que vivemos que Cristo nos resgata. Assim, podemos entender o porte deste gesto de ternura para conosco. Mas, para não dizer frases sem sentido, que significa que o eu não existe mais? Com isto não se quer dizer que não existam pessoas: somos tantos aqui, existem tantas pessoas no mundo. “O eu não existe mais” quer dizer que não conseguimos perceber os fatores originais do nosso eu, a pergunta original que nos constitui. Padre Giussani nos dizia que a propensão que existia há trinta anos para as perguntas originais hoje não existe mais. No máximo, as perguntas são reconhecidas como presentes, mas em um nível em que não se compreende o que significa empenhar-se com elas.
Se o homem não consegue perceber com clareza os seus fatores originais, o que acontece? Mesmo que não percebamos com clareza os fatores do nosso eu, não é por isto que todos nós não tenhamos uma certa consciência de nós mesmos, do real, não é por isto que a vida pára: continuamos a levantar de manhã, ir para o trabalho, etc. Mas, na medida em que não entendemos realmente o nosso eu, a relação conosco mesmos e com o real, a consciência com a qual nós nos levantamos de manhã, com a qual começamos a fazer as coisas, a trabalhar, é determinada pela nossa reação. Recordemos o exemplo que padre Giussani fez há algum tempo: quando a pessoa não entende o que é uma colher, não sabe o que fazer com ela, começa por segurá-la de forma errada, o primeiro movimento é errado. Assim, quando a pessoa não tem consciência clara da realidade, acaba por fazer o que vê os outros fazerem, ou seja, acaba por adaptar-se à maneira como os outros se relacionam com as coisas, à maneira como eles vivem a relação com tudo. E, pouco a pouco, a mentalidade da cultura que está à nossa volta começa a penetrar em nós. Mas, atenção: como a mentalidade (disse-nos padre Giussani nos Exercícios da Fraternidade) é o ponto de vista do qual o homem parte para todas as suas ações, se nós tomamos esta mentalidade do contexto à nossa volta, tornamo-nos pouco a pouco passivos diante da mentalidade mundana, pois é impossível viver dentro de um contexto geral sem ser por ele influenciados.
Há, enfim, uma identificação do eu com a nossa reação, com o nosso sentimento. Esta é a mentalidade que, a partir de 1968, tornou-se a mentalidade de todos: a exaltação do instinto. Mas, depois, de 1968 até hoje, o que aconteceu? Passou-se da exaltação do instinto, como único critério de ação (para o qual tudo é lícito, tudo é permitido), para a exaltação da lei, do ser “adequados para”. Assim, vivemos em uma situação paradoxal: de uma lado é exaltado o instinto, até o ponto de que quem não concordar com esta mentalidade é considerado fora do mundo; e, de outro lado, cresce por toda parte o número de regulamentos, de todo tipo, para evitar o transbordamento da instintividade: todos são impelidos a fazer o que bem lhes parece, mas, se erram, se ultrapassam os limites, o peso da lei cai sobre suas cabeças - como se vê nestes dias, ouvindo o rádio e lendo os jornais, no caso Clinton -. O instinto e a lei, neste percurso, de 1968 a 1998, a secularização progressiva do mundo ocidental destruiu o reconhecimento de qualquer experiência ou tradição que venha antes do Estado; portanto, o Estado é praticamente a única lei acima do indivíduo e dos seus instintos. Não há mais povo: com efeito, um povo vive se o eu de cada um vive. Sem o eu não há povo, sem o eu sobra o Estado com a sua violência (quando esta mentalidade entra na Igreja, chama-se “clericalismo” ou “moralismo”): existimos nós com os nossos instintos e depois a lei que cai sobre a nossa cabeça, o poder administrado para evitar o transbordamento da instintividade.
Esta exaltação do instinto tem como conseqüência uma concepção determinista da liberdade. Ou seja, a liberdade não existe mais: tudo se torna uma reação instintiva à provocação do real. Tanto é verdade, que todos os termos que têm a ver com a liberdade, em particular o pecado, são substituídos por uma terminologia médica. O equivalente do pecado, hoje, é a doença. Nos Estados Unidos, por exemplo, existe todo um debate sobre o problema da prevenção do homicídio, do suicídio, da violência, e do papel que os médicos possam ter a respeito disto. Não existe mais liberdade. Um amigo nosso, que mora na Espanha, tendo ido aos Estados Unidos para o casamento de um colega, ouviu-o dizer: “Estou tranquilo quanto ao casamento; fomos ao psicólogo e estamos aptos, podemos enfrentar com tranquilidade esse negócio”. Cesana, no Congresso dos Movimentos, contava a propósito disto um episódio significativo. Ao falar com alguns psicólogos na Universidade, dirigiu-lhes esta pergunta: “Qual é a diferença entre educação e psicologia?”, e não obteve resposta. A diferença, acrescentou então ele, está no fato de que a educação diz respeito propriamente à liberdade. Uma educação com a qual a liberdade não tem nada a ver é reduzida, de fato, a técnica psicológica.
Esta redução do eu acaba por reduzir também a concepção da salvação. A religiosidade é reduzida à busca do bem-estar, como se vê na New Age e em certos fenômenos religiosos (as seitas, por exemplo): tudo tem o objetivo de tirar a dramaticidade. A religião é concebida como fuga, como um “estar bem”, como bem-estar. Isto, muitas vezes, penetra também a nós, que concebemos como nosso ideal essa ausência de dramaticidade. Pois a dramaticidade é estar diante de um Tu: sem este Tu nós não estamos com tudo o que somos diante do Infinito, é como se as dimensões do humano não estivessem totalmente presentes: isto faz-nos ver a falsidade de uma posição como esta.
Uma expressão dessa situação é a indecisão. “Nunca vi, disse padre Giussani, tantas pessoas tão indecisas sobre o que escolher ou o que fazer”. Com efeito, se o eu não existe mais, se não há um tu que desperte o eu, por que alguém deveria decidir? Lembro-me da resposta de um jovem a um sociólogo que acusava os jovens de não decidirem mais nada: “Coloquem na nossa frente algo verdadeiro, interessante para a vida, e vocês verão como nos decidiremos”. Se não há um tu diante do qual se aposta a vida, o eu não toma nenhuma decisão.
Aos poucos isto se torna uma solidão na qual o eu vive. Não é uma solidão que se possa superar tão facilmente, pois é uma solidão no fundo da questão: com efeito, sem uma Presença não existe mais nada que seja presente. Pensem em uma criança perdida num parque de diversões: tudo está ali, tudo é para ela, mas ela é tomada pelo medo da solidão; é como se sem a presença dos pais não houvesse nada presente para ela. Ao contrário, quando encontrar seus pais, tudo começará de novo a existir, tudo se tornará de novo presente. Pois quando não existe mais nada presente, “resta somente a erva amarga do tédio”, como diz Miguel Mañara.
Esta solidão se traduz em uma falta de certeza na afirmação das coisas, pois falta o nexo com o infinito. Diz Eliot: “Sois todos pessoas para as quais nada aconteceu, no máximo um choque contínuo com eventos externos. Passaram pela vida como se estivessem dormindo”. A vida torna-se isto: um choque contínuo com eventos externos. Não é que a vida pare, mas é tudo um choque sem que nada aconteça; o homem está no mundo, mas sem laços, separado do mundo. Como dizia Sartre: “As minhas mãos, que são as minhas mãos? A distância incomensurável que me divide do mundo dos objetos e me separa deles para sempre”. Então, o que sobra? Imagens, pensamentos, sentimentos. Mas, uma vez que estes não podem mais ser verificados, tudo acaba em uma incerteza radical, como se não fosse possível ter certeza de nada, como se não se visse o fim desta situação como um final positivo.
Neste contexto, é preciso tentar entender o desenvolvimento do passo que estamos dando (depois dos Exercícios da Fraternidade deste ano 2 e do Encontro de Responsáveis 3 e dos Exercícios do ano passado). Parece que podemos entrever, como relevante desenvolvimento possível, esta questão: como se pode ter certeza das coisas, da existência das coisas, da consistência das coisas? Pois a impressão é de que tudo conspira para tirar a possibilidade de uma certeza a respeito da existência das coisas. Uma vez que não é possível se fazer um caminho humano dentro do real, a pessoa nunca chega a nenhuma certeza, não consegue julgar a experiência que faz. Vi isto com clareza na minha experiência: só depois de encontrar o Movimento é que me dei conta de que começava a dizer com certeza: “Isto é verdadeiro, isso não”, que podia falar com certeza das coisas e podia trazer para cada afirmação exemplos que documentavam a verdade daquilo que eu dizia. Mas, se falta um caminho, tudo se torna em última instância incerto.
Neste caminho há um primeiro sintoma que já Santo Agostinho identificava, que revela que algo não vai bem: a inquietação do coração. Por isto, a primeira decisão de todos nós é sermos leais com essa inquietação. “A simplicidade - diz padre Giussani em Vivendo na carne - é não esconder esta inquietação do coração”. Pois a batalha, atualmente, é contra o coração: tudo se volta para negar a inquietação do coração. “Tudo conspira - diz Rilke - para calar sobre nós, um pouco como se silencia uma desonra, talvez um pouco como se silencia uma esperança inefável”. Por isso, o antagonista do poder (do poder que constantemente divulga esta mentalidade “redutiva”) é a verdade do eu.

2. O que desperta o eu? O que vence essa solidão, essa distância do mundo? Todos nós fomos educados a reconhecer que o caminho da vida é “viver o real”. No capítulo X de O senso religioso, padre Giussani escreve: “Qual é a fórmula do itinerário até o significado último da realidade? Viver o real. (...) Como poderá [a nossa experiência de vida] tornar-se potente em nós? No impacto com o real. A única condição para sermos sempre e verdadeiramente religiosos [ou seja, homens] é vivermos sempre intensamente o real. A fórmula do itinerário até o significado da realidade é viver o real sem censuras, isto é, sem renegar nem esquecer nada. Não seria, de fato, humano, isto é, racional, considerar a experiência limitando-se à sua superfície, à crista de sua onda, sem chegar ao profundo de seu movimento” 4. Mas onde está a diferença entre “viver o real” e o continuo choque com eventos externos, pelo qual, como dizia Eliot, vivemos a vida como se estivéssemos dormindo? Dito de uma outra forma: qual a diferença entre o carpe diem e a “densidade do instante” de que nos fala padre Giussani? Como podemos encontrar resposta à pergunta sobre o que significa “viver o real”?
Para fazer entender a experiência elementar e original do homem, padre Giussani recorre a esta famosa imagem: “Suponhamos - escreve ele em O senso religioso - estarmos nascendo, saindo do ventre de nossa mãe na idade que temos neste momento, no sentido de ter desenvolvimento e consciência como podemos tê-los agora. Qual será o primeiro sentimento em sentido absoluto, isto é, o fator primeiro de nossa reação diante do real? Se eu abrisse pela primeira vez os olhos neste instante, saindo do seio de minha mãe, seria dominado pela maravilha e estupor pelas coisas, como por uma ‘presença’” 5. Imaginem que nós todos abríssemos os olhos pela primeira vez nesta idade, diante do Mont Blanc: todo o nosso eu seria dominado pelo estupor desta presença: “O ser, não como entidade abstrata, mas como presença que não é feita por mim, mas que encontro, uma presença que se me impõe. (...) O estupor, a maravilha desta realidade que se me impõe, desta presença que me toma, está na origem do despertar da consciência humana” 6, ou seja, do eu.
O que desperta o eu? Este impacto com o real, com uma realidade que aparece diante de mim como um dado, ou seja, como algo que me é dado, como um dom, um dom que não sou eu que faço, um dom de um outro. A primeira atividade diante desse dom é receber, é reconhecer, é, como ouvimos dizer outras vezes, uma amizade. Não apenas um choque, portanto, mas a evidência das coisas que suscita uma atração, até chegar à afeição pelo mistério que elas contêm. Nós nos surpreendemos atraídos pelas coisas: as coisas despertam em nós uma atração. Não somos como uma pedra que não se comove diante do real: nós percebemos o impacto que as coisas produzem em nós: affectus. Esta presença, esta evidência das coisas que é o reconhecimento desta presença inexorável, desperta em mim uma atração, me comove, e eu me sinto amarrado a esta presença.
Portanto, a experiência mais original é esse nosso laço com a profundidade do real. Bem diferente de uma distância! A experiência original não é distância do real: é apego ao real despertado pela atração que o real provoca em mim, é uma simplicidade de olhar para a evidência das coisas, uma evidência que mergulha na consistência original da realidade. Contra isto se despedaça toda a mentalidade dominante, que toma parte no pré-juízo ou preconceito que tende a negar a consistência última e, portanto, a evidência da realidade. Mas um preconceito como este não faz parte da experiência elementar: é introduzido por um interesse estranho, que não faz parte dessa experiência. A experiência original é a de uma evidência que mergulha na consistência original da realidade, de um olhar que não fica somente na superfície, mas vai ao fundo do seu motivo, ou seja, até reconhecer Aquele que faz esta presença.
Nós fomos educados a partir sempre da experiência, pois a experiência é o emergir da realidade à consciência do homem, é o tornar-se transparente da realidade ao olhar humano. Assim, a realidade é algo com o qual a pessoa se depara, é um dado, e a razão é aquele nível da criação no qual esta se torna consciente de si. Na experiência vem à tona com clareza o que é o real e o que é a razão. Pensem em uma criança diante de um brinquedo. A presença do brinquedo desperta nela uma exigência de conhecer como funciona. A criança não pára até que saiba como funciona. É uma exigência que não se detém antes de chegar ao fim. Nesta simples experiência, que todos fazemos, se revela a definição de razão: exigência de conhecimento total despertada pela presença da realidade. É como se a própria realidade despertasse no homem uma exigência de ir até o fundo dela, uma exigência que não encontra resposta nos fatores que constituem as circunstâncias externas, os fatores já conhecidos, mas obriga a ir além.
Qual a diferença, então, entre estar constantemente expostos ao choque dos eventos e viver intensamente o real, entre o carpe diem e a densidade do instante? A diferença está no fato de que no instante se toma consciência da realidade segundo todos os seus fatores, até chegar àquela Presença que é a origem de toda presença. Alguém que tomasse consciência do seu eu e dissesse “eu” com a consciência do real segundo todos os seus fatores não poderia deixar de dizer, a menos que se introduzisse uma mentira: “Eu sou Tu que me fazes neste instante”. Sem este caráter de acontecimento do real, a realidade não nos interessa mais. Quando nos detemos na superfície, o real perde a sua novidade, como acontece diante de tantas coisas que consideramos como já conhecidas: não nos interessam mais. Temos o nosso quarto cheio de coisas que não nos interessam mais.
Tocou-me muitíssimo nestes últimos tempos o caso de um amigo que vivera os últimos anos sob a bandeira do carpe diem: sofreu um grave acidente de carro e ficou três meses em coma. É um espetáculo vê-lo agora. Ele me dizia: “É como se, logo que abro os olhos de manhã, não pudesse evitar de pensar nEle, naquela Presença: todas as coisas me falam dEle. Agora entendo o que significa viver com a consciência dessa Presença”. Está contentíssimo, como eu nunca o vira. O que mudou? A realidade é a mesma de antes. Mudou ele, que reconhece, que não considera óbvia a vida que a cada instante lhe é dada. Imaginem que nós todos, a cada instante, fôssemos ajudados a nos darmos conta do acontecimento que a realidade, a vida, como dom, é: acontecimento do ser! Mais do que simples superfície! Mas na vida normal não é assim! Imaginem uma pessoa que, ouvindo da amada: “Eu lhe quero bem”, responda: “Já sei”. A primeira vez que ouviu da pessoa querida esta frase estava todo cheio de comoção, mas agora pensa que já sabe disso. Ao contrário, o fato de que depois de cinco minutos diga: “Eu lhe quero bem” deve despertar uma comoção ainda maior, pois é mais verdadeiro, durou cinco minutos mais. Se abolimos o mistério último do real, tudo se torna sem interesse.
Na experiência do real se revela, portanto, a natureza da razão, e se revela também a natureza da realidade. A realidade tem sempre um ponto de fuga, remete sempre a um outro. Se um de vocês, logo que chegasse em casa, abrisse a porta e encontrasse na sua frente um buquê de flores, a primeira reação seria: “Mas quem me mandou?”. Por que a pessoa pergunta “quem?”, se vê somente as flores? Por causa da própria natureza da realidade: por sua natureza, a realidade remete a um outro. Se a pessoa perde esse “ser remetido para”, perde o melhor do real. Se pensamos estar desfrutando mais o real vivendo o carpe diem, perdemos o melhor do real, pois o melhor do real é que nos remete a um Outro, Àquele que corresponde à espera verdadeira do coração. O que corresponde mais: o vaso de flores ou aquele que manda o vaso de flores? Quem enche mais o coração de comoção, de ternura?
Mas se todos fazemos esta experiência original, por que então sucumbimos à mentalidade dominante? Por que pouco a pouco aprendemos de outro lugar a nossa mentalidade? Como disse padre Giussani nos Exercícios, “o cerne da questão se esclarece na luta que se desenvolve a respeito da maneira de ler e de analisar a relação entre razão e experiência” 7. Se nós fazemos essa experiência, ser realmente razoáveis significa submeter constantemente a razão à experiência: “‘Razoável’ designa aquele que submete a razão à experiência” (Jean Guitton). Assim começa a vitória sobre a mentalidade dominante. Tantas vezes em nós encontramos uma resistência a submeter a razão à experiência. Ora, enquanto não se submete a razão à experiência que se faz, nós acumulamos muitas “experiências”, mas é só um choque contínuo, uma sucessão de reações em que não acontece nada, que não introduz nenhuma novidade. Podemos ter muitas “experiências” na vida, mas, tão logo terminam, continuamos a pensar como antes: não aprendemos nada, esvaziamos o acontecimento como dizia padre Giussani nos Exercícios. A experiência da vida não serve para nada, se não se submete a razão à experiência.
Por isso, nos Exercícios, padre Giussani insistiu tanto na questão do conhecimento (que não é uma questão filosófica, mas de uma nova consciência de si e da realidade); nós sucumbimos à mentalidade comum porque não somos realmente razoáveis, pois há uma resistência a submeter a razão à experiência. O verdadeiro início da mudança do eu é quando começamos a submeter a razão à experiência. “A mudança do eu depende de um conhecimento diferente, no qual o eu se lança, no qual é introduzido”. “A mudança, antes de mais nada, está na ordem do conhecimento”. Por que esta insistência? Porque, diz ele, “tudo o que o homem faz depende de uma maneira como concebe. (...) A cultura [ou seja, a maneira de conceber que temos] é aquilo do qual o homem retira todo o seu comportamento, no qual se inspira o seu comportamento como origem de tudo” 8. Um eu verdadeiro é aquele que se move com uma consciência de si diferente, nova, finalmente verdadeira. Assim, vivendo o real, trazemos por dentro toda a novidade que aconteceu. Pois o ambiente não é sociológico, mas é dimensão da pessoa: não é “onde estamos”, mas se “estamos”.
Se aquilo a que nos referimos até aqui é a estrutura original da experiência, dá para entender como começa o caminho que leva à solidão de que falamos. Padre Giussani dizia nos Exercícios que esse “início imperceptível consiste em uma separação, começa com uma separação entre o sentido da vida e a experiência” 9: ou seja, este início imperceptível consiste em uma alteração do nexo original com as coisas enquanto provenientes do Mistério, em uma alteração da relação surpresa com ele. Uma separação entre o sentido da vida e a experiência: se isto começa, então o homem tira a sua mentalidade de outro lugar, fora da experiência que fez. Todos nós sentimos como essa experiência original vai desfalecendo, sentimos uma surpreendente incapacidade de ir ao fundo da realidade ou de aderir a ela, uma incapacidade de ser realmente razoáveis. Demonstram-no as reduções de que padre Giussani nos falou: redução do acontecimento a ideologia, redução da realidade como sinal a aparência, redução do coração a sentimento. Mas tudo isto vem daquela imperceptível separação entre a razão e a experiência que se faz. “A tentação da inteligência moderna - escreveu P. Emmanuel - é acreditar-se separada do seu objeto”. Assim começa, com a nossa própria conivência, o desastre que nos leva cada vez mais para a solidão, para a incerteza sobre tudo.

3. Vimos o que pode despertar o eu. O primeiro despertar do eu no encontro com a realidade. Mas se isto não se sustenta, o que pode redespertar o eu? O que pode realmente vencer a solidão?
Como podemos responder a esta pergunta? Segundo o método que aprendemos. Vimos que a realidade torna-se transparente na experiência (por isso, a questão da vida, como se diz em O senso religioso, não é um problema de inteligência, mas de atenção). Onde começaram a ser vencidos a nossa solidão e aquela distância do real de que falamos? O que despertou a cada um de nós? Foi o impacto com o Mistério presente em um povo, o encontro com um fenômeno humano como aquele que aconteceu a João e André: “O coração deles, naquele dia, havia-se deparado com uma presença que correspondia inesperada e evidentemente ao desejo de verdade, de beleza, de justiça que constituía a sua humanidade simples e não-presunçosa. Desde então, mesmo traindo-o e entendendo-o mal mil vezes, não o teriam mais abandonado, tornando-se ‘seus’” 10. O eu renasce nesse encontro, nesse olhar. A pessoa se depara com uma presença que corresponde à sua espera, às suas exigências. “Desde então, mesmo traindo-o e entendendo-o mal mil vezes, não o teriam mais abandonado, tornando-se ‘seus’”: a razão reconhece aquela presença e termina num afeto a ela (“tornam-se ‘seus’”).
É a vitória sobre a distância entre o eu e a realidade. Uma, ou muitas vezes, vimos como no encontro com este povo isto acontece, aconteceu e acontece. Não devemos buscar em outra parte. Vimos, na nossa experiência, onde está a vitória sobre a solidão e sobre a distância. Tal como André e João, se somos leais à nossa experiência temos de reconhecer que a mudança da nossa vida, a novidade da nossa vida não foi o resultado de um pensamento ou de um projeto nosso, mas do encontro com um povo. Portanto, o nosso eu não existe sem o encontro com um povo. O cristão não existe sem o povo. Este povo é o herdeiro do povo judeu, que era anúncio profético do que em Cristo se tornou realidade: “Aquele Homem, o judeu Jesus de Nazaré, morreu por nós e ressuscitou. Aquele Homem ressuscitado é a Realidade da qual deriva toda a positividade da existência de qualquer homem” 11. Quem fez este encontro entende até que ponto toda a positividade da sua vida deriva da existência daquele Homem: “O meu coração está cheio de letícia porque Cristo vive”.
Este povo é a Igreja de Cristo, que para nós tem uma fisionomia precisa: o nosso carisma. “Vi assim acontecer a formação de um povo, em nome de Cristo. (...) O que poderia parecer no máximo uma experiência individual tornava-se um protagonismo na história, por isso instrumento da missão do único Povo de Deus” 12.
Mas, atenção, não há encontro com este povo, com esta companhia, se uma vez mais o nosso olhar fica na superfície, com um uso redutivo da razão. “Pois o encontro - diz padre Giussani em Vivendo na carne - não é com esta companhia, e o valor não é esta companhia, mas esta companhia se torna valor se você reconhece o que está dentro do encontro”, o que esta companhia carrega dentro de si. E antes havia dito: “Antes que você saiba que a companhia é como que a tenda sob a qual Cristo está presente, você está empenhado com a companhia, de maneira tal a chegar até Cristo, quando está cordialmente inclinado a buscar o seu rosto verdadeiro e o seu destino, a verdade do seu destino. Então a companhia começa a se tornar lugar revelador de Cristo. (...) Em uma casa onde haja muita afeição, uma densidade de afeição como a de vocês, se não se está atento a isto, corre-se o risco de perder-se ao invés de encontrar-se”. Não é uma suspeita sobre a companhia. É que o ponto culminante desta companhia é encontrar aquilo que está dentro dela, pois é ali que acontece o encontro com Cristo. “Onde acontece e como acontece o encontro com Cristo - perguntava-se Giussani - ? Acontece na realidade humana em forma humana. Por isso, o empenho com o encontro humano que você está fazendo é condição para entender melhor o encontro com Cristo”. Em uma outra palestra, Giussani dissera: “Nestes dias estou de fato plenamente convencido, é plenamente evidente para mim que é através de uma experiência normal que a pessoa entende quem é Jesus, que a pessoa pode entender que Jesus é possível. (...) É de uma experiência sensível, tirada da experiência cotidiana, que se pode entender com facilidade quem é Jesus”. Com efeito, “se não se parte de uma experiência humana, não se entende: é aquela adesão justaposta, ligada como por justaposição, aquela adesão exterior que todos têm em relação ao ‘Credo’”.
A pessoa se dá conta, assim, de que Cristo está presente. “Pensem - diz ainda padre Giussani - que grande coisa é o fato do Mistério ter-se feito homem, ter nascido como todos de uma mulher, e de que, no contexto da história humana, toque e torne verdadeiro, mudando-o, o nosso eu, como inteligência (ou seja, como percepção das coisas) e como afeição. É um olhar, no sentido literal do termo, a uma espera do seu coração: uma presença que o olha e o ama. O eu humano renasce neste olhar, neste encontro, que é resposta que se fez carne no coração desta carne”. Cristo está presente hoje no tempo da história, desenvolve a sua presença agarrando-nos no Mistério (Batismo), e através do seu Espírito recria o eu humano no seu corpo, chegando ao nível da nossa experiência, através das circunstâncias presentes: através deste povo Cristo ressuscitado continua a ser presente no tempo e no espaço. O método que ele escolheu para ficar sempre conosco é o método sacramental: o povo é o grande sinal da sua presença. Por isso, diante desse povo decide-se a nossa existência, como de fato todos nós experimentamos.
Entende-se, então, o que é a fé: “A fé é reconhecer uma presença excepcional, ser tocados por ela, de uma forma impossível de comparar com outras ocasiões já vividas e que portanto poderiam também acontecer no futuro, e aderir àquilo que ela diz de si, pois, se a pessoa não aderisse ao que essa presença diz de si, haveria contradição com o juízo de excepcionalidade que se deu, que a pessoa é obrigada a dar”. Reconhecer e aderir. No encontro com Cristo presente em um povo o nosso eu desperta: razão e afeição. Quando é realmente simples, o coração do homem se torna reconhecimento e adesão a essa presença.
Por isso a fé é um juízo, não um sentimento! “A fé é um juízo e não uma emoção, é um juízo que afirma uma realidade”: o Mistério presente. Sem fazer uma experiência, sem um caminho como esse, Cristo se torna uma abstração. “a fé é racional, na medida em que floresce no limite extremo da dinâmica racional como uma flor de graça, à qual o homem adere com a sua liberdade”.
Por isso, se nós submetemos a razão a esta experiência que acabamos de descrever, começa uma verdadeira, nova mentalidade, que é a vitória plena sobre a mentalidade comum.

Quais são as características dessa mentalidade?
a) Esta experiência revela a verdadeira natureza do eu. Desde que conhecemos Cristo, tornamo-nos homens e não somos mais crianças. “Quando encontrei Cristo me descobri homem”, dizia Mário Vitorino. Somente na órbita de Cristo eu reconheço finalmente quem sou, somente diante dEle vêm à tona com clareza os fatores constitutivos do meu eu. “Cristo - repete com frequência padre Giussani - é o ponto em que a minha vida de homem torna-se clara com evidência para mim, torna-se clara, cada vez mais clara!”. Por isso, nos Exercícios ele disse que “a fé supera e torna mais claro o senso religioso do homem: revela o objeto do senso religioso, que era inacessível à razão”.
A verdadeira natureza do eu, como razão e afeição, pode então realizar-se. A razão, que reconhece com simplicidade o que ela percebe como excepcional, pode realizar a sua verdadeira natureza, porque tem na sua frente o seu objeto. Ninguém mais tem a capacidade de escancarar, de abrir a razão como Jesus. E da mesma forma a afeição encontra com clareza a quem aderir.
b) Na experiência do encontro com Cristo é revelada também a natureza da realidade. Pois só quando a pessoa encontra essa presença pode finalmente entrar no real. Todas as palavras que exprimem a experiência humana (vida, morte, trabalho, afeto, política) adquirem uma consistência antes inimaginável: o homem, a mulher, o céu estrelado aparecem como sinal da presença boa de Cristo. Sem que Cristo se desvele aos nossos olhos, a realidade, quando está além da nossa medida de compreensão, cedo ou tarde se torna estranha. Pensem em dor, circunstâncias, pecados: quando é que alguém pode entrar no real, neste real do qual no entanto a vida é feita? Só quando a pessoa entra nele com essa Presença no olhar, pois só ela revela o sentido profundo de qualquer circunstância; pois a circunstância se torna sinal, não nos dá mais medo e nós “somos mais que vencedores nAquele que nos amou”. Só uma pessoa que encontrou Cristo não dá um passo atrás, não foge diante do real, das circunstâncias. Pode-se levantar de manhã, ir trabalhar, encarar as circunstâncias porque Cristo está presente: “Sou cheio de letícia porque Cristo vive”. Ou nós adquirimos esta certeza ou nunca entraremos na realidade, mas somente naquele pedaço do real em que podemos entrar segundo as nossas medidas: quando o real coloca na nossa frente uma medida que vai além daquilo que é aceitável para nós, estamos fritos.
c) Por isso é ali, é na experiência do encontro que se revela quem é Cristo. Ele, que não é mais percebido como abstrato, revela-se, na sua natureza, no encontro: eu conheço quem é Cristo através da mudança que ele opera em mim. Não é uma imaginação, amigos, não é através de uma imaginação! Eu conheço quem é Cristo como a criança conhece quem é a mãe para ela através daquilo que acontece, vivendo a vida, todas as circunstâncias da vida, com a mãe do lado. Nós compreendemos quem é Cristo não fazendo uma meditação sobre Cristo, mas vivendo tudo com a sua companhia, vendo o que acontece, a mudança que acontece: assim entendo quem é Cristo. O instrumento para conhecer quem é Cristo é, então, a mudança que vejo em mim. “Como você pode acreditar na ressurreição de Cristo se não é testemunha da mudança que o pertencer a Cristo reconhecido realiza em você?”.
d) Assim se entende o que é a fé em Deus: “A fé em Deus é fé em Cristo”. “Não existe conhecimento do Mistério que não seja uma interpretação redutiva do homem, a não ser naquele Homem, Jesus de Nazaré, cuja natureza Deus assumiu para exprimir-se ao homem, para comunicar-se ao homem como Mistério”, foi dito nos Exercícios. E justamente sobre este ponto “se revela o engano da mentalidade dominante, que pretende que se possa falar de Deus prescindindo de Cristo”.
Estas observações permitem entender o que significa participar de uma experiência como a nossa. Ela é o método pedagógico que dá início, em nós, a uma mentalidade nova e torna a nós possível, graças ao encontro que fizemos, entrar finalmente no real, superar aquela distância e aquela separação que facilmente se tornam solidão e isolamento de tudo. Este método, o pertencer a este lugar, é o concretizar-se “em formas demonstrativas e persuasivas” do dom do Espírito. É um pertencer que é “experiência existencialmente concreta de viver a mentalidade nova em Cristo e a moral nova”. Por isso, o pertencer a um movimento como o nosso nos ajuda, nos facilita porque nos permite fazer uma experiência histórica e totalizante, abrindo-nos para além das nossas medidas: a vida da Igreja nos oferece assim uma proposta que tem a ver com todas as dimensões da vida humana, que é proporcional às exigências infinitas da razão e da liberdade. Naquilo que o Movimento nos propõe podemos nos tornar mais nós mesmos, entrando mais nas circunstâncias e, até, fazendo coisas que a pessoa jamais teria imaginado fazer.
A luta da vida, então, é entre a afirmação de si como critério último e uma afirmação de Deus tal como nos é mostrado pela experiência de que falamos. A vida se torna a luta da verdade contra a mentira, “uma batalha consciente, diária, da verdade contra a mentira”: a verdade não é uma palavra abstrata, é o acontecimento que nós todos experimentamos.
Esta é, portanto, ao menos para mim, a grave tentação: a resistência a submeter a razão à experiência que faço, a resistência a reconhecer até o fundo que só Cristo é aquele que faz com que me torne eu mesmo. E quando essa resistência vence em mim, então estou perdido. Por isto a luta, em cada um de nós, é entre a evidência que temos na nossa frente e a resistência a reconhecer o que vimos.

4. Por isso - última passagem - padre Giussani, com a sua caridade para conosco, uma vez mais, em Roma, abrangeu tudo isso: “A infidelidade sempre surge no nosso coração mesmo diante das coisas mais belas e mais verdadeiras, nas quais, diante da humanidade de Deus e da simplicidade original do homem, o homem pode fraquejar por debilidade e preconceito mundano”, quando a indecisão do início se torna posição, indecisão programada.
Mas dor e pecado são pedagogia de Cristo para a verdade. Uma vez mais o método utilizado por Deus é o real. “O pecado e a dor são o caminho normal - vimos na Escola de Comunidade - para essa verdade. Teoricamente esse caminho se apresenta como um caminho ‘arranjado’, porque o principal, o mais direto, deveria ser a transparência com a qual a consciência racional percebe com simplicidade que as coisas são contingentes: que não se fazem por si mesmas, que Deus é tudo. Não há evidência, do ponto de vista racional, mais perfeita do que essa. (...) Mas, histórica e existencialmente, essa transparência é impossível ou provisória. Santo Tomás, no início do seu Contra Gentes, diz que a razão humana poderia perceber a existência de Deus, mas somente em alguns casos, depois de muito esforço e não sem a mistura de graves erros. De fato, para explicar ao homem que ele tem necessidade de um outro, o Senhor usou como instrumento normal o pecado e a dor: o homem é pobre. A suprema expressão disso é a morte. E o uso de um tal instrumento é um espetacular paradoxo. Por isso, é um sinal de mesquinhez este que nós normalmente alojamos, ou seja, tornar escandaloso para nós mesmos o instrumento pedagógico para chegar à verdade” 13.
A dor é como que o último sinal da ternura de Deus; a dor é como um sinal de alarme (como a criança diante do fogo retira a mão porque queima): sem ela, acontece a destruição. Não escutar este último sinal que nos é dado pelo real é a última afirmação não-razoável do homem.
“Mas há na memória - dizia padre Giussani no retiro dos Memores Domini - algo que pensa cada ferida: o anúncio cristão, tal como aparece na nossa história, é que Deus é fiel a si mesmo, ou seja, à eleição do seu povo”.
“Mesmo a experiência pessoal da infidelidade que sempre surge, revelando a imperfeição de todo gesto, grita dentro de nós a memória de Cristo”. Se, ao invés de nos lamentarmos do nosso mal e nos flagelarmos, deixássemos vir à tona essa urgência da memória de Cristo, perderíamos menos tempo.
Assim, esta urgência existencial se torna um grito, mas não desesperado: é o grito dirigido a uma presença reconhecida e amada. “Que posso eu, ó Senhor, se não vens a mim com a costumeira inefável cortesia”.
Terminamos com as palavras com as quais padre Giussani concluiu a sua colocação em Roma: “Tudo isto significa que a liberdade do homem, sempre implicada pelo Mistério, tem como forma suprema e incontestável a oração. Por isto, a liberdade se coloca, segundo toda a sua verdadeira natureza, como adesão ao Ser, portanto a Cristo. Na incapacidade, dentro da grande fragilidade do homem, está destinada a perdurar a afeição a Cristo. Neste sentido, Cristo, Luz e Força para todo seguidor seu, é o reflexo adequado daquela palavra com a qual o Mistério aparece na sua relação última com a criatura, como misericórdia: ‘Dives in Misericordia’. O mistério da misericórdia ultrapassa qualquer imagem de tranqüilidade ou de desespero; até o perdão está dentro deste mistério de Cristo. Este é o abraço último do Mistério, contra o qual o homem - mesmo o mais distante e o mais perverso ou o mais obscuro, o mais tenebroso - não pode opor nada, não pode colocar objeção; pode abandoná-lo, mas abandonando a si mesmo e ao próprio bem [só diante de uma Presença como esta, reconhecida e amada, evita-se a indecisão programada]. O Mistério como misericórdia continua a ser a última palavra mesmo sobre todas as feias possibilidades da história” 14.


Notas:

[1] L. Giussani. “O homem mendicante, no deserto da vida e da história”. Testemunho na praça de São Pedro por ocasião do Encontro de João Paulo II com os Movimentos Eclesiais e as Novas Comunidades. Litterae Communionis, nº 63, maio/junho de 1998, p. 8.
[2] Cf. L. Giussani. “Deus e a existência”. In: Litterae Communionis, nº 64, julho/agosto de 1998, p. 19; L. Giussani.
[3] Cf. L. Giussani. “Se não fosse teu, meu Cristo, me sentiria criatura finita”. In: Litterae Communionis, nº 59, setembro/outubro de 1997, p. 17.
[4] L. Giussani. O senso religioso. São Paulo, Companhia Ilimitada, 1993 [2ª ed.], p. 171.
[5] Id., ibid., pp. 159-160.
[6] Id., ibid., p. 160.
[7] L. Giussani. “Deus e a existência”. In: Litterae Communionis, nº 64, julho/agosto de 1998, p. 21.
[8] Id., ibid., p. 30 e 22.
[89] Cf. id., ibid., p. 20.
[10] L. Giussani. Em busca do rosto do homem. São Paulo, Companhia Ilimitada, 1996, p. 17.
[11] L. Giussani. “O homem mendicante...”. Op. cit., p. 7.
[12] Id., ibid., p. 8.
[13] L. Giussani. Em busca... Op. cit., pp. 145-146.
[14] L. Giussani. “O homem mendicante...”. Op. cit., p. 8.

(Texto publicado em Literrae Communionis n. 65, setembro/outubro 1998)